quarta-feira, 23 de março de 2011

A claridade do coração

Jorge Adelar Finatto

O certo é que, na vida como na arte, a gente fracassa sempre.

 


A trevosa sintaxe da vida. A escuridão das almas. Fugidias imagens me perseguem. Nos urdimentos do bandoneón, busco outras claridades. O viver longe do abismo, no vero amanhecer, eu busco. Eu, Juan Niebla, venho do neblinoso. Trouxe o calepino?


Tenho andado pela vida à procura de luz. Essa que vem de dentro. A escuridão está em toda parte, principalmente nas almas. As trevas-mestras sustentam o mundo. Bem-vindo o que vem em paz e desarmado. Os regulamentos da amizade eu cumpro. A minha casa está sempre aberta. Nos enquantos, porque amanhã é escuro. Anote por favor.




A treva foi inaugurada com a luz principial. Isto é demanda antiga. A velha contradição. A luta imemorial. Mas também o complemento ideal, uma não existe sem a outra. Em termos de arriscada filosofia, caminho em beira de precipício.

A maldade não tem sala na minha casa. Sou músico de bandoneón e memória, na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes. Espero com o ouvido a chegada do invisível trem. Cego desde os 16 anos, sim, senhor. O resto é o breu e se dissipa quando toco meu instrumento no velho banco.

A vida é dura? Pra completar, é breve. Somos um ato-falho da criação. Sou homem de fé, Deus me perdoe. Se vive. Faço o que é possível, às vezes menos, às vezes mais. Somos ferida em carne viva, vivo pensamento. Se vive. Está anotando?



O certo é que, na vida como na arte, a gente fracassa sempre. Falta aquele grito, aquela palavra, o remate, aquilo que não foi dito nem lembrado. O ora-veja que só a divina obra tem. Deus é artista caprichoso, no atacado e no miúdo, como outro não há. Conseguiu escrever?

Pediram-me um ensaio falado sobre as cores remotas do outono. Mas eu só sei, só vejo isso que sinto.



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Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Admitido por concurso público, ocupa o cargo de músico municipal desde 1940. Toca bandoneón na estação de trem abandonada da cidade. Tem 87 anos, é cego desde os 16.

Fotos: J. Finatto