Jorge Finatto
Jarra com margaridas e papoulas. Van Gogh, 1890 |
Dizem que na pintura não se deve procurar nada, nem nada esperar, além de um bom quadro e uma boa conversa e um bom jantar como felicidade máxima, sem contar os incidentes menos brilhantes.
Vincent Van Gogh, maio, 1890.¹
A vida é um negócio impossível de entender às vezes. Quem gosta de ver justiça no mundo não raro se frustra e perde a graça. Vivemos num planeta habitado por mastodontes ferozes e egoístas.
Leio no jornal que no dia 4 de novembro de 2014, em Nova York, a Sotheby's vai leiloar a pintura Jarra com margaridas e papoulas. Van Gogh fez este trabalho na pequena cidade de Auvers-sur-Oise, perto de Paris, poucas semanas antes de morrer. A notícia informa que o lance inicial não poderá ser inferior a 23,6 milhões de euros, estimando-se que deverá atingir "facilmente" os 40 milhões.
O quadro pertence a "uma importante coleção europeia" e teve antes outros proprietários. Observo que este leilão é só mais um passo no itinerário milionário do comércio que envolve as obras do mestre holandês. O anúncio diz ainda, suponho que para emprestar um tom dramático ao leilão e aumentar o valor do objeto, que as flores teriam sido colhidas pelo pintor no lugar onde, poucos dias depois, viria a suicidar-se.
Trata-se de uma colina na qual Van Gogh pintou também o famoso Trigal com corvos, nas cercanias do cemitério interiorano onde está enterrado ao lado do irmão Theo. Estive lá pela primeira vez em 2002.
Pode ter colhido ali as flores, está bem. Mas de onde veio essa "informação"? Reli as cartas que escreveu a Theo na época e não encontrei referência às tais flores (ele costumava comentar detalhes das pinturas com o irmão).
Quanto ao suicídio, é hipótese praticamente descartada. Conforme minudente análise feita no livro Van Gogh, a vida², tudo indica que o tiro que o matou foi disparado, acidentalmente ou não, por um jovem de Auvers que costumava incomodar o pintor. O desentendimento que levou ao tiro nunca restou esclarecido. Cansado de viver e não querendo causar problema ao agressor e sua família, Van Gogh teria inventado a versão do suicídio horas antes de morrer.
Mas o que eu quero considerar é a brutal ironia das coisas. Van Gogh morreu em rigorosa miséria afetiva e material aos 37 anos, em 1890. Dizem que vendeu um único quadro em vida, A videira vermelha. Teve de seu neste mundo somente a roupa do corpo, velha e surrada, um chapéu de palha e outro de feltro, um cachimbo, uns poucos livros e materiais de pintura, tudo custeado pelo irmão mais novo, Theo, que o sustentou, amorosamente, até o fim.
Morreu num obscuro quarto do Auberge Ravoux, sem janela e com apenas uma mesa, um armário embutido e uma cadeira de palha.
Uma claraboia deixava entrar um sopro de luz no solitário ambiente. Deitado na cama de metal (que rangia) ele via, através da abertura, um punhado de estrelas quando a insônia o fustigava.
A maior riqueza deste homem difícil, temperamental e sofrido foi o que trazia dentro da alma. A pintura foi sua única maneira de comunhão. Fracassou em todo o resto, porque ninguém quer saber dum sujeito esquisito, ensimesmado, de olhos muito vivos e coração ingênuo. Um que anda por aí com a caixa de pintura às costas a pintar e a conversar anjos que só ele vê.
Leio no jornal que no dia 4 de novembro de 2014, em Nova York, a Sotheby's vai leiloar a pintura Jarra com margaridas e papoulas. Van Gogh fez este trabalho na pequena cidade de Auvers-sur-Oise, perto de Paris, poucas semanas antes de morrer. A notícia informa que o lance inicial não poderá ser inferior a 23,6 milhões de euros, estimando-se que deverá atingir "facilmente" os 40 milhões.
O quadro pertence a "uma importante coleção europeia" e teve antes outros proprietários. Observo que este leilão é só mais um passo no itinerário milionário do comércio que envolve as obras do mestre holandês. O anúncio diz ainda, suponho que para emprestar um tom dramático ao leilão e aumentar o valor do objeto, que as flores teriam sido colhidas pelo pintor no lugar onde, poucos dias depois, viria a suicidar-se.
Trata-se de uma colina na qual Van Gogh pintou também o famoso Trigal com corvos, nas cercanias do cemitério interiorano onde está enterrado ao lado do irmão Theo. Estive lá pela primeira vez em 2002.
Pode ter colhido ali as flores, está bem. Mas de onde veio essa "informação"? Reli as cartas que escreveu a Theo na época e não encontrei referência às tais flores (ele costumava comentar detalhes das pinturas com o irmão).
Quanto ao suicídio, é hipótese praticamente descartada. Conforme minudente análise feita no livro Van Gogh, a vida², tudo indica que o tiro que o matou foi disparado, acidentalmente ou não, por um jovem de Auvers que costumava incomodar o pintor. O desentendimento que levou ao tiro nunca restou esclarecido. Cansado de viver e não querendo causar problema ao agressor e sua família, Van Gogh teria inventado a versão do suicídio horas antes de morrer.
Mas o que eu quero considerar é a brutal ironia das coisas. Van Gogh morreu em rigorosa miséria afetiva e material aos 37 anos, em 1890. Dizem que vendeu um único quadro em vida, A videira vermelha. Teve de seu neste mundo somente a roupa do corpo, velha e surrada, um chapéu de palha e outro de feltro, um cachimbo, uns poucos livros e materiais de pintura, tudo custeado pelo irmão mais novo, Theo, que o sustentou, amorosamente, até o fim.
Morreu num obscuro quarto do Auberge Ravoux, sem janela e com apenas uma mesa, um armário embutido e uma cadeira de palha.
Uma claraboia deixava entrar um sopro de luz no solitário ambiente. Deitado na cama de metal (que rangia) ele via, através da abertura, um punhado de estrelas quando a insônia o fustigava.
photo: j.finatto. último quarto de Van Gogh |
A maior riqueza deste homem difícil, temperamental e sofrido foi o que trazia dentro da alma. A pintura foi sua única maneira de comunhão. Fracassou em todo o resto, porque ninguém quer saber dum sujeito esquisito, ensimesmado, de olhos muito vivos e coração ingênuo. Um que anda por aí com a caixa de pintura às costas a pintar e a conversar anjos que só ele vê.
Em suma, meu caro Vincent, trabalhaste como um louco (acreditavas que assim poderias expulsar os fantasmas que te assombravam), te esfolaste, te arrebentaste no fundo da caverna úmida e fria que foi tua existência (iluminada pelos tocos de vela quando pintavas à noite em teu triste quarto).
Coloriste com sangue teus quadros, e tudo isso para quê? Depois da tua morte, gente esperta passou a ganhar rios de dinheiro às tuas custas, sem nenhum merecimento, sem nada contribuir, sem qualquer proveito para a sociedade, nenhum gesto solidário. É gente que cultua - não a arte e a dignidade do ser humano -, mas o dinheiro, a vaidade e o poder.
Coloriste com sangue teus quadros, e tudo isso para quê? Depois da tua morte, gente esperta passou a ganhar rios de dinheiro às tuas custas, sem nenhum merecimento, sem nada contribuir, sem qualquer proveito para a sociedade, nenhum gesto solidário. É gente que cultua - não a arte e a dignidade do ser humano -, mas o dinheiro, a vaidade e o poder.
Pois é, meu amigo, como vês, por aqui nada mudou. E vem aí mais um leilão. Continuamos no mesmo mundo infernal onde padeceste. Isso tudo não merece sequer uma lágrima. Talvez desprezo, náusea e um suspiro pelos que, como tu, não têm como se defender da indiferença e da arrogância que habita os corações.
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¹Cartas a Theo. Vincent Van Gogh. Editora L&PM, tradução de Pierre Ruprecht, Porto Alegre, 2007.
²Van Gogh, A vida, de Steven Naifeh e Gregory White Smith, publicado em 2012 no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Denise Bottmann.
A escada:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/09/a-escada.html
¹Cartas a Theo. Vincent Van Gogh. Editora L&PM, tradução de Pierre Ruprecht, Porto Alegre, 2007.
²Van Gogh, A vida, de Steven Naifeh e Gregory White Smith, publicado em 2012 no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Denise Bottmann.
A escada:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/09/a-escada.html