segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O passarinho de óculos

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto, 23/11/2014

 
Tem um passarinho que usa óculos entre os que costumam vir comer frutas nos potes da sacada do escritório. Ele pousa no galho pensador da caneleira diante da janela e fica ali descansando, pensando na vida com aqueles oclinhos. Esse aí da foto é um irmão dele que apareceu à tardinha querendo saber se ele estava comigo. Não, o meu amigo já tinha ido embora.
 
O passarinho de óculos é solitário. Ele não anda em bando como os outros. Às vezes, quando se demora por aqui, vêm seus irmãos e o levam pra casa antes que fique tarde. Ele só pode voar quando o dia ainda está bem claro. 
 
Um dia ele saiu do ninho sem os óculos. Foi um desastre. Voou em linha reta, sem desviar dos obstáculos, deu de cara em alguns deles. Caiu vários tombos. Os irmãos tiveram de resgatá-lo e levá-lo de volta para o ninho. Em casa foi advertido por todos da família de que não podia sair a voar sem os óculos, onde já se viu.
 
Em certos dias, o passarinho entra no escritório. Aos pulinhos, ele vai pelas estantes, sobe nos livros, no antigo rádio de válvulas. Gosta também de ficar dentro do balaio de vime e olha tudo em volta com curiosidade.
 
O passarinho de óculos é azulzinho como o céu depois de um dia de chuva, um azul claro, lavado.

Ele sabe que é diferente, e não só porque usa óculos. Também sente o mundo com lentes de aumento. Às vezes queria ser como os outros pássaros, que andam por aí aproveitando o ar e as árvores, sem se preocupar com o sentido da vida.
 
Quando tira os óculos, é como se entrasse numa outra dimensão. Uma neblina suave envolve as coisas, os contornos se confundem, as cores se dispersam. Fica tudo diferente, engraçado. Parece até um sonho. 
 
O maior medo do meu amigo é um dia deixar de enxergar o mundo. Como poderia voar de bengala? Não, melhor nem pensar nisso. Poder olhar e sentir todas as coisas, não existe nada mais bonito.

A gente voa dentro de si mesmo no fim das contas. Os melhores voos acontecem no espírito.