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sábado, 28 de abril de 2018

Encontro com escritores: António Lobo Antunes

Jorge Finatto

António Lobo Antunes. fonte: site Portal da Literatura
                                                                                                       
Tinha chegado a LISBOA vindo de Zurique. Passei no hotel e fui em seguida aos Pastéis de Belém, ali ao lado do Mosteiro dos Jerônimos, para uma taça de café e o indizível pastel de nata da casa. Mais de um, na verdade, como não deixa mentir este corpinho. Como sempre, o lugar estava cheio de turistas.
Fiquei ali cerca de uma hora, entre o café, os pastéis e o jornal. Depois saí a passito pela rua apesar do frio. Quando passava em frente ao Palácio de Belém, sede da Presidência da República, notei um alvoroço de estudantes.
No dia seguinte, lendo o jornal Público, soube que os adolescentes tinham se encontrado para conversar com António Lobo Antunes no programa "Encontro com Escritores no Palácio de Belém" que reúne escritores e alunos, uma iniciativa do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa.
Tratei aqui do escritor Lobo Antunes e remeto o raro leitor àquelas singelas impressões.¹ É um autor que vale a pena, dos mais importantes da atualidade, volta e meia lembrado para o Nobel.
Lendo a notícia, lamentei não estar lá entre os felizardos estudantes. Vejam algumas coisas que ele falou. Falou em tom quase íntimo (sem rodeios, subterfúgios, sem interpretar um personagem), como costumam ser suas falas públicas.²
"O meu pai era um poço enorme de silêncio e eu cheio de cuidado para não cair lá dentro. O silêncio foi alastrando. Passou à minha mãe."
"O que me continua a seduzir é a quantidade de mistério à nossa volta. Tudo é mágico".

Diante da pergunta: já escreveu sobre tudo o que quer? Responde:

"Se calhar, vou tentar fugir à pergunta. Tudo isto para mim continua a ser um mistério indecifrável, por que é que escrevo esta palavra e não outra..."

Nos livros que escreve não vê pessoas, mas ouve vozes:

"Para mim escrever é conversar com vozes."

Sobre o trabalho do escritor:

"Não me peça conselhos." Abordando as dificuldades do ofício, afirma que nenhum livro é bom à primeira:

"Escrever é um ofício de paciência."

Algumas referências literárias: Lorca, Rilke, Antero de Quental, Dinis Machado, Cesariny, Balzac, Evelyn Waugh.

Ao final da interlocução, faz um pedido aos jovens:

"Não se esqueçam de mim."

O que me faz pensar, raro leitor, neste sábado de outono: o que será a escrita senão o desejo humano e imenso de não ser esquecido?
 
Marcelo Rebelo de Sousa e Lobo Antunes.
fonte: Correio da Manhã, Lisboa.
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¹ As breves eternidades do senhor Lobo Antunes:
²Público, jornal. Reportagem de Isabel Lucas. Edição de 7 de fevereiro de 2018, quarta-feira. Lisboa.

domingo, 22 de junho de 2014

O Lobo Antunes perdido

Jorge Adelar Finatto

 
E aqui ando eu, todo arrepiadinho, a esgalhar uma crônica. Estamos em janeiro, este lugar é frio como o caraças, tenho as mãos geladas. As pernas também. Não despi o sobretudo. De vez em quando o telefone aos gritos: não atendo. Se calhar morri.

António Lobo Antunes, Quarto Livro de Crônicas, p.  325, Publicações Dom Quixote, Portugal, 2011.

Tem gente que passa a vida a ler livros. Eu não alcancei essa ventura. Sempre li quando pude, nos interstícios entre o trabalho, o cuidado da família, os estudos, a leitura de livros técnicos a que a profissão obriga. 
 
Li obras importantes enquanto levava os filhos pequenos na pracinha. Meu filho mais velho aprendeu a andar de bicicleta enquanto eu lia A Montanha Mágica, de Thomas Mann, e Angústia, de Graciliano Ramos. A filha brincava na areia com baldinho e pá enquanto eu lia O Nome da Rosa, de Umberto Eco.
 
Inventava tempo para ler. Valeu a pena, e como! As horas mais intensamente vividas foram essas com os filhos e os livros.
 
Levo sempre um livro comigo. É um antídoto para o tédio e a angústia das salas de espera, das filas, dos aviões. E uma boa companhia no território republicano dos cafés. Raramente sento à mesinha sem um livro.
 
Por conta desse hábito, sofri um duro prejuízo há uma semana. Fui a um café na cidade de Gramado. Antes de entrar resolvi pagar uma conta no caixa-eletrônico do banco. Coloquei o livro sobre a máquina enquanto manuseava o cartão e o documento. Pendurei ao lado o guarda-chuva (chovia bem naquele sábado, 14/6/14). Fiz o pagamento e saí.
 
Sentei à mesa perto da janela, um vasinho de violeta ao centro, pedi um cappuccino. O costume. No instante em que fiz o gesto de abrir o livro, o quinto volume das crônicas do António Lobo Antunes (que trouxe de Lisboa, não existe no Brasil), me dei conta de que o esquecera na agência bancária.
 
Abandonei o cappuccino fumegando na xícara e me fui rua afora, apressado no frio e na chuva,  com o coração aflito. Inútil. O livro não estava mais lá. Não havia ninguém na agência (fechada no fim de semana).
 
Nos poucos minutos que durou o meu esquecimento, alguém tomou o Lobo Antunes e escafedeu-se. Aquilo estragou meu dia. Durante a semana, fiz contatos com o banco para saber se a criatura tinha devolvido o livro. Não.
 
Em suma, perdi o Lobo Antunes que busquei do outro lado do Oceano Atlântico. Não tenho sentimentos negativos em relação a quem me levou o livro, mas também não vou testemunhar a seu favor no Juízo Final, pelo contrário. O mínimo que lhe desejo é um judicioso purgatório.
 
Como diz o ditado, mais tem Deus a dar que o diabo pra tirar. Trouxe na mala, também, o volume 4 das crônicas. Isso serve de algum consolo. Tenho lido vários livros nos últimos tempos, mas sempre, no intervalo entre uns e outros, pego na estante as crônicas do Lobo.
 
Criou-se entre mim e esse autor - um animal solitário na floresta de palavras a percorrer iluminadas trilhas e a descobrir cálidas fontes - um encantamento, uma cumplicidade, que só a literatura consegue explicar. E nisso ninguém toca.
  

quinta-feira, 1 de maio de 2014

As breves eternidades do senhor Lobo Antunes

Jorge Adelar Finatto
 
photo: António Lobo Antunes*
 
Não sou especialmente simpático também, falo pouco, custa-me exprimir o amor que sinto, envergonho-me de, em certas alturas, me apetecer chorar. Claro que não choro: fico bravio, brusco, irónico, a liquefazer-me de afecto por dentro.*
                                                                     António Lobo Antunes

Às três horas dessa madrugada ventou forte. Tremeram as folhas dos plátanos e pinheiros em volta da casa. Eu estava recostado na poltrona do escritório, naquele instante de neblina entre o sono e a vigília.

Começaram uns trovões pros lados do Contraforte dos Capuchinhos. O som vinha de longe. Relâmpagos riscavam o ar sobre as montanhas. Agora chovia.
 
Na mesa estão os livros que leio nessas horas perdidas que me custam o peso de diamantes. As horas de lume intenso. As imperdíveis. Nos volumes está a vida inventada, concentrada, sem desperdícios, sem cinzas.
 
Entre o raio e o trovão, peguei o António Lobo Antunes pra ler. Nos últimos dias tenho lido crônicas, dando um tempo aos textos maçudos. Aproveitei a passagem por Lisboa, antes de voltar ao Brasil, em fevereiro, pra comprar livros de autores portugueses. Nessa leva vieram os volumes quatro e cinco das crônicas do romancista Lobo Antunes (escritor e psiquiatra, nascido em Lisboa em 1942), reconhecido em Portugal e no estrangeiro, lembrado para o Nobel.
 
Os textos curtos têm de ter a essência do relâmpago. Devem iluminar de súbito a escuridão, sem demora, afastando-se dos truques dos ilusionistas, porque o tempo urge, o do raro leitor em especial.

(Não sou nem tenho pretensão a ser crítico literário, Deus me livre. Mas também não sou um leitor vadio. Arrisco uns bacorejos de vez em quando.)
 
Os pequenos textos precisam pegar o coração do leitor de forma ágil e inesperada, com simplicidade e energia.
 
O senhor António é um lobo solitário na sua arte. Não existem muitos de sua espécie na natureza.

Pelo jeito que escreve, é um sujeito recolhido, de pouca fala, algo nele permanece ausente de si e dos outros. Está sempre noutro lugar. A sua medida no mundo é a escrita, esta é sua aldeia, ali estão tudo e todos.

O tempo do escritor se desdobra em muitos tempos, em vidas inumeráveis.

O senhor Antunes tem urgência de escrever, aflige-se no intervalo entre um romance e outro. Tamanho desconforto semelha-se a uma combustão espiritual na ausência da palavra criadora. Talvez nesse interstício habite o cronista. 
 
O senhor Lobo é um animal ferido, sofrido, esquivo, como o são de resto os de sua estirpe, escritores que trabalham enfurnados no sofrimento feliz que é escrever, e daí afloram diamantes. Esses que, uma vez descobertos, não paramos mais de olhar. Não há embromações na sua prosa nem maneirismos de estilo.

Diz direto e concreto, mas sem perder a poesia. Coisa difícil. As possíveis levezas estão envoltas na bruma da condição humana, na cerração da circunstância que recorta o indivíduo, todo indivíduo, no tecido da realidade.
 
Enquanto escreve, o senhor António vai matando a sua e a nossa morte, criando territórios de eternidade, efêmeros embora, para suportar o deserto, desde que fomos expulsos do Paraíso.
 
Falei aqui, mais de uma vez, da mala de livros que trouxe, do peso e da trabalheira de andar com ela em trens, táxis, hotéis e aeroportos. Mas eu afinal estava certo ao sofrer assim. No frio dos quartos de hotel, antecipava já a espécie particular de felicidade que é ler o Lobo.
 
António Lobo Antunes é dessa família de escritores que nos fazem varar madrugadas de chuva e relâmpago em busca de suas pegadas na areia da praia ventosa. Ele nos deixa a sensação de que podemos ser e sentir sempre mais. A seu lado, vivemos um tempo que não nos destrói.
 
A breve eternidade das palavras.

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*photo reproduzida do site do jornal rascunho, em matéria sobre o autor:
http://rascunho.gazetadopovo.com.br/vozes-da-rua/#exlibris

Quarto livro de crônicas. Editora Dom Quixote, Portugal, 22ª edição. Trecho da crônica O António a dar corda à esperança, p. 286, grafia portuguesa.