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segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Um dirigível pras estrelas

Jorge Finatto
 
ilustração: Maria Machiavelli


ESSA MANIA de escrever pra ninguém é mesmo coisa de doido, difícil de compreender, algo que se prestaria a estudos profundos sobre as razões que movem o ser humano.

Escrever para a nuvem, como se faz num blog, é mais ou menos como mandar uma carta para o espaço dentro de uma garrafa. Provavelmente não estaremos aqui para receber a resposta, quando e se vier.

Um arqueólogo da internet, daqui a alguns séculos (ou segundos, do jeito que as coisas andam depressa), escavará a superfície tênue da blogosfera atrás de registros feitos por antigos blogueiros em cavernas virtuais. Talvez encontre este texto.

O fato é que hoje, nestes confins, por força de um gelado outono (ou invencível melancolia), o cronista escreve para a nuvem e não consegue traçar a primeira palavra do texto de amanhã.

Não há leitores à espera destas mal-traçadas. Acho que nem haverá, além dos arqueólogos da internet. As pessoas têm mais o que fazer, vida difícil, tempo escasso, mil livros pra ler, passam bem sem leituras virtuais.

O problema, se é que existe, é do cronista nefelibata, que não encontra a primeira palavra. O tempo é de acender a lanterna em busca do caminho.

As palavras estão hibernando nos dicionários. Inspiração é só um estado de espírito, e escrever é mais do que isso.

Vivemos um tempo de secas esperanças, mas é preciso seguir em frente.

Como tarda amanhecer quando a escuridão é tamanha!

Nessa hora erma e côncava, vou mesmo é sair por aí no meu dirigível amarelo, deslizando entre nuvens, numa viagem pra fora do planeta.  Quero ir subindo, subindo, numa longa curvatura de silêncio em direção às estrelas. Carrego comigo um novo calepino (como da primeira vez).

No meu dirigível pras estrelas.
 
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Texto revisto, publicado antes em 13.4.2014.
 

domingo, 20 de julho de 2014

O impossível voo de Francisco Orange Junge Mit Flügeln dos Santos Passos, neto de Francisca Hände Guter von Geburt, parteira, viúva e vidente, em direção a Lisboa, de onde nunca mais voltou nem mandou notícias

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto



De como Francisco Orange caiu com seu balão em pleno Terreiro do Paço, em Lisboa, após sobreviver a uma tempestade no Oceano Atlântico. Do que sucedeu depois que foi preso pelas autoridades portuguesas e por que decidiu  ir viver na aldeia de Carvalhal e cantar o fado no Bairro Alto.

O nome é longo e misterioso como os pensamentos do personagem desta insólita história: Francisco Orange Junge Mit Flügeln dos Santos Passos. Era um dos loucos da cidade.

Em Passo dos Ausentes, a palavra louco foi expulsa dos dicionários e das falas. Não é pronunciada em respeito a ilustres antepassados e a alguns dos atuais habitantes. Para o Dr. Fredolino Lancaster, único médico da cidade, 92 anos, ainda no pleno exercício do ofício:
 
- A expressão deve ser evitada. As palavras têm fio cortante, são capazes de rasgar mesmo tecidos mais rijos. Com palavras reabrem-se facilmente velhas feridas. Com palavras até mesmo se mata. Chamar alguém de doido, em Passo dos Ausentes, é rematada crueldade, conhecendo nossas origens e nossos ancestrais. De resto, quem é inteiramente são neste mundo, quem não cometeu uma loucura alguma vez, em pensamento ou ação? Quem não guarda no ermo de si um difícil remorso? Apontar alguém como maluco é uma leviana redução do outro.
 
- Digamos que temos aqui temperamentos sensíveis, insondáveis, determinados, brilhantes às vezes, herança de séculos de isolamento e ruminação do nada.

- O oblívio e a solidão produzem seus frutos - pondera o sábio esculápio.
 
Francisco Orange, o menino com asas, passou a infância calado, morando com a avó no Sobrado dos Espelhos. Contam os que alguma vez viram seu corpo imaculado que o infante nasceu com um par de asas azuis sobre os ombros. A octogenária Francisca Hände Guter von Geburt, parteira, viúva e vidente, que criou o neto na ausência dos pais, nunca fez segredo sobre suas asas, embora nunca as mostrasse a ninguém.

Até o dia em que Francisco Orange, aos 10 anos, proibiu-a de tocar no assunto, sob pena de jogar-se do Penhasco das Almas que Voam. Exatamente como fizeram seus pais, de mãos dadas, 10 dias depois do seu nascimento. Nunca ninguém soube por quê. Falou-se (aqui ninguém nos ouça) que foi caso de incesto entre irmãos, que resultou em inesperada e oculta gravidez.

Como se recusasse a conviver com outras crianças, aprendeu a ler, escrever e fazer contas em casa com um preceptor germânico. Oscar Edouardt Mann nasceu em Lübeck, Alemanha, em 1905. Veio parar em Passo dos Ausentes em 1930 com sua misteriosa mala preta de couro. Nunca mais saiu daqui. Muitos dizem que o convívio com Oscar tornou o menino ainda mais recluso e ausente. O mestre conseguiu incutir no espírito do aluno suas duas grandes paixões: a antimatéria e os mundos paralelos.

A adolescência encontrou Francisco Orange fazendo projetos mirabolantes de viagens espaciais e construindo coisas que voam. Primeiro foram as enormes pandorgas azuis, as maiores e mais bonitas que iluminaram estes céus.
 
Depois vieram as minúsculas e coloridas borboletas de papel de seda. No início de maio, costumava jogá-las do alto da Torre do Relógio, em quantidade tal que se espalhavam por toda a cidade.
 
Nefelindo Acquaviva, construtor de aeroplanos, dirigíveis e balões de fundo de quintal, com vários desastres no currículo, convidou o menino para aprender a arte da navegação pelo ar. Daí em diante iniciou-se uma longa parceria entre o jovem incomunicável e o mentor nefelibata. Vários aparelhos foram construídos pelos dois. Pilotados por Acquaviva, todos vieram ao chão, sendo incompreensível que a morte ainda não o tenha colhido.

Aos 20 anos, Francisco Orange construiu sozinho um primeiro e pequeno dirigível, que deixou o mestre orgulhoso. Com a geringonça, aventurou-se aos ares até desaparecer nas alturas e lonjuras das montanhas azuis dos Campos de Cima do Esquecimento no frio glacial de julho. Não retornou. Uma expedição de busca foi organizada na Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Musical, Geológica, Astronômica, Antropológica e Antropofágica de Passo dos Ausentes, por iniciativa de seu presidente, o filósofo Don Sigofredo de Alcantis.
 
A expedição encontrou o navegante dez dias depois, no Contraforte dos Capuchinhos, magro, esquálido, enrodilhado no alto de um cipreste, a poucos metros de um penhasco. O arvorista Guilherme Tadeus Baum salvou-o, utilizando um complicado sistema de cordas e polias.

Momentos após o salvamento, o dirigível afundou no abismo.
 
Acostumado a terríveis desastres com suas estrovengas voadoras, Acquaviva sentiu imenso júbilo pela frieza e determinação de seu discípulo, quando o viu descer estropiado do Jeep da Sociedade Histórica na Praça da Ausência, onde um grupo de ruidosos admiradores o esperavam.

Francisca disse então a um incrédulo Don Sigofredo de Alcantis:
 
- É o modo que ele encontrou de ser feliz, quer ficar mais perto dos anjos, de Deus e dos pais. Deixem o Francisco em paz. Deus sabe o que faz. Ele tem a proteção de São Francisco. Nasceu com as duas asinhas azuis sobre os ombros. Eu sempre soube que o meu menino ia voar um dia. 
 
Juan Niebla, músico cego, tocador de bandoneón na estação de trem abandonada, observador atento das histórias da cidade, relatou o último voo de Francisco Orange durante uma reunião da Sociedade Histórica:
 
- Foi numa manhã de novembro de 1975. Os ventos de finados andavam loucos por aí. Francisco Orange tinha então 25 anos, batizou o balão recém-construído de Terra dos Ausentes, no qual ele e Acquaviva trabalharam por 4 anos. Disse que ia embora para Portugal, de onde viera o trisavô materno, natural de Carvalhal.

- De nada adiantaram os nossos apelos como sabem. Desamarrou as cordas e ganhou os ares no quintal de Acquaviva, sumindo em direção ao Oceano Atlântico. Não mais se soube dele até o dia em que o nosso astrônomo, Palomar Boavista, pesquisando na hemeroteca Biblioteca Pública de Porto Alegre, deparou-se com aquela notícia do Correio do Povo, gerada pela France-Presse.
 
- A foto de um enorme e remendado balão azul caído no Terreiro do Paço, em Lisboa, à margem do Tejo, com aquele homem magro, vestindo mastigada roupa preta, com barba negra abundante e olhos fundos, não deixava dúvida. Ali estava o menino com asas de Passo dos Ausentes. O aparelho - o que restou dele - foi recolhido pelas autoridades. O insólito viajante teve de explicar-se à polícia durantes alguns dias - contou Niebla.

- No dia em que partiu de Passo dos Ausentes, os tristes ventos de novembro o empurraram rapidamente para o Atlântico. Cinco dias depois uma tempestade o derrubou em Cabo Verde. Sobreviveu por milagre. Com auxílio de gentis almas, após um ano de trabalho, consertou a nave e levantou âncora novamente. Dois dias mais tarde, foi colhido pelo mau tempo em pleno deserto do Saara, no sul do Marrocos, vindo a cair outra vez. Acolhido por beduínos, sobreviveu. Ficou dois anos no deserto com aquela tribo, arrumou o aparelho e alçou voo para Portugal.
 
- As pessoas do deserto foram as melhores que conheci na vida. Com elas não sentia o gelo da solidão me queimando por dentro. Não sei o que vai ser feito da minha vida. Provavelmente vou desaparecer entre as nuvens qualquer dia, ou afundar num penhasco - declarou à repórter da France-Presse, encerrando a entrevista, enquanto a polícia o levava.

A esperança de que Francisco Orange volte um dia para casa com seu solitário balão vai se dissipando com o passar dos anos. Afinal, tudo envelhece no mundo e as coisas passam.

Nunca mais tivemos notícia do nosso menino com asas. Informes distantes dão conta de que foi viver na aldeia de Carvalhal e que, em certos dias de saudade das montanhas azuis dos Campos de Cima do Esquecimento, vai cantar o fado na Tasca do Chico, no Bairro Alto, na ensolarada Lisboa.

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Texto revisto e ampliado, publicado originalmente em 6 de agosto, 2012.
 

domingo, 25 de maio de 2014

Os gatos e o medo de voar

Jorge Adelar Finatto

ilustração: Maria Machiavelli

Dizem que os gatos pressentem quando o dono vai morrer.

Desde que Nefelindo Acquaviva me convidou pra fazer com ele o vôo inaugural do dirigível O Invencido (que construiu no galpão do quintal de sua casa, como todas as estrovengas voadoras que criou) meu gato Pituca não saiu mais de perto de mim.
 
Nefelindo Acquaviva é considerado o pai da aviação em Passo dos Ausentes. Um doido com alma de Ícaro.

O que seria do mundo sem os doidos, ele costuma perguntar, apontando ambas as mãos para o peito. E ele mesmo responde: ainda andaríamos de quatro e moraríamos em grutas úmidas, malcheirosas e povoadas de morcegos.

Tudo que alguma vez voou nesses céus dos Campos de Cima do Esquecimento passou pelas mãos de Acquaviva, com exceção dos balões misteriosos sobre os quais já falei aqui. Da mesma forma, todas as geringonças que se espatifaram no chão também foram obra dele. Ele coleciona 22 quedas com seus objetos voadores, não incluídos aí os tombos na fase de decolagem, mais de trinta.
 
Sim, eu temo pela minha vida. Como temi das outras vezes em que concordei em acompanhá-lo em vôos abissais pelo Vale do Olhar. Mas sou amigo do nosso Santos Dumont e é difícil dizer não a um amigo.

A vontade de voar é tão antiga quanto a presença do ser humano neste mundo de Deus.

Se o Criador não nos deu asas, deu-nos pra compensar a capacidade de sonhar e é o que fazemos na maior parte do tempo, do contrário a vida seria insuportável.

Da última vez em que saí pelos ares com Acquaviva, estávamos a bordo do Besouro Voador, espécie de motociclo com São Cristóvão ao lado, dentro do qual eu estava, e duas pequenas asas. O aparelho começou a soltar vários estouros em pleno vôo, a 100 metros de altitude, até que parou de funcionar.

Caímos em queda oblíqua em direção à igreja. Cerca de meio minuto depois, arrebentamos e atravessamos o vitral principal. Desabamos na frente do altar, diante do padre, em plena missa das seis da tarde.

O acidente causou um sério desentendimento entre a Igreja Católica e a Aviação em Passo dos Ausentes, que culminou com o rompimento de relações.

Há muito que Nefelindo e o padre Krauss trocam farpas por questões filosóficas e em razão de um outro acidente aéreo que quebrou a torre da igreja.  O padre acha que os ataques são propositais, parte de um plano de Acquaviva para acabar com a Igreja.

Por milagre, não morremos ali mesmo, no meio dos cacos coloridos do vitral. Impossível não lembrar as fortes palavras que o senhor pároco nos dirigiu na ocasião, impublicáveis neste espaço.

A questão é: como posso dizer não a Acquaviva sem magoá-lo, sem ferir de morte seu sonho de voar no mais pesado que o ar? Por outro lado, como dizer sim, sem morrer depois?

A única pessoa, além de mim, que sempre aceitou voar com ele é Juan Niebla, o músico cego do bandoneón, que toca na estação de trem abandonada. Mas Niebla está com 89 anos.
 
Em janeiro último, Acquaviva terminou de construir O Invencido, utilizando o motor de seu antiquíssimo fusca. Quando entrei no galpão naquela manhã de sábado, ele tomava chimarrão sentado cabisbaixo sobre um pelego, encostado na carroça que também faz as vezes de cama.Vestia o gasto macacão azul-marinho e as botas pretas de cano longo.

A negra cabeleira escorrida e o grosso bigode nem de longe denunciam o jovial homem de 70 anos.

Ao me ver, seu rosto se iluminou e ele abriu um sorriso. Veio lépido na minha direção, me pegou pelo braço e disse que tinha algo para mostrar lá no Ninho do Esqueleto. Com emoção, retirou o enorme lençol que cobria o dirigível.

- Faltam poucos dias pra ficar pronto, só mais uns detalhes. Olha a maravilha. Nunca ninguém construiu algo assim. Um dirigível compacto, pra duas pessoas, com seis pequenas janelas pra admirar tudo lá de cima. Tem um beliche, uma geladeirinha, um minifoguareiro, um armarinho, um mínúsculo banheiro e o painel com os instrumentos de navegação, entre os quais aquele telescópio pra ver as estrelas. Não só chegaremos a Porto Alegre desta vez como vamos até o mar. Prepare-se, partiremos em meados de maio. O dia glorioso se aproxima.

O Pituca não sai mais do meu lado. Onde quer que eu vá o gato vem atrás. Mia de um jeito estranho e insistente, quase não me deixa trabalhar no escritório.

Desconfio que ao invés de uma placa comemorativa, no dia da glória, vamos ganhar um epitáfio: Aqui jazem dois idiotas, gravado na lápide do túmulo que reunirá o que sobrou de nossos corpos, se é que alguma coisa vai restar depois do desastre anunciado.
 
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Texto revisto, publicado em 23 de abril, 2013.

domingo, 13 de abril de 2014

Um dirigível para as estrelas

Jorge Adelar Finatto
 
ilustração: Maria Machiavelli

Essa mania de escrever para ninguém é mesmo uma coisa de doido, difícil de compreender, algo que se prestaria a estudos profundos sobre as razões últimas que movem o ser humano.

Escrever para a nuvem, como se faz num blog, é mais ou menos como mandar uma carta para o espaço dentro de uma garrafa. Provavelmente não estaremos aqui para receber a resposta, quando e se vier.

Um arqueólogo da internet, daqui a alguns séculos (ou segundos, do jeito que as coisas andam depressa), escavará a superfície tênue da blogosfera atrás de registros feitos por antigos blogueiros em cavernas virtuais. Talvez encontre este texto.

O fato é que hoje, nestes confins de abril, por força de um gelado outono (ou invencível melancolia), o cronista escreve para a nuvem e não consegue traçar a primeira palavra do texto de amanhã.

Não há leitores à espera destas mal-traçadas. Acho que nem haverá além dos arqueólogos da internet. As pessoas têm mais o que fazer, vida difícil, tempo escasso, passam bem sem leituras virtuais.

O problema, se é que existe, é do cronista nefelibata, que não encontra a primeira palavra. O tempo é de acender a lanterna em busca do caminho.

Enfim, a questão é que as palavras estão hibernando nos dicionários. A inspiração é só um estado de espírito e escrever é mais do que isso.

Vivemos um tempo de secas esperanças, mas é preciso seguir em frente.

Como tarda amanhecer quando a escuridão é tamanha!

Nessa hora erma e côncava, vou mesmo é sair por aí no meu dirigível amarelo, deslizando entre nuvens, numa viagem pra fora do planeta.  Quero ir subindo, subindo, numa longa curvatura de silêncio em direção às estrelas.

Carrego comigo um novo caderno para escrever (como da primeira vez).

No meu dirigível para as estrelas.