segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Metrópole à beira-mar

Jorge Finatto
 
 

Antes mesmo de ser lançado, reservei na Livraria Cultura, em Porto Alegre, meu exemplar de Metrópole à beira-mar. O Rio moderno dos anos 20. Da lavra do escritor e jornalista Ruy Castro, a obra oferece um precioso panorama da vida cultural, social e política da cidade do Rio de Janeiro no início do século passado.
 
É um documento rico. Além do texto que se lê com prazer, vale por tirar do esquecimento nomes importantes da arte e da literatura. Entre eles, aparecem com destaque o porto-alegrense Alvaro Moreyra e sua mulher, a mineira Eugenia, primeira repórter brasileira. A casa do casal na Rua Xavier da Silveira, 99, em Copacabana, tornou-se um importante centro de convivência e de resistência cultural e política entre 1918 e 1948.
 
Metrópole à beira-mar vai fundo na investigação, nas descobertas e no entrelaçamento de fatos e personagens. Estou lendo e impressiona a qualidade do material recolhido e o tratamento que lhe foi dado por Ruy Castro (considerado um dos maiores biógrafos brasileiros).
 
O livro não se impõe apenas pela reconstituição de uma época. É objeto de toque pela beleza gráfica, contando, também, com ótimas ilustrações. A bela capa traz uma pintura de J. Carlos, a mesma que ilustrou a capa da revista Para Todos de janeiro de 1927. A publicação era dirigida então por Alvaro Moreyra e J. Carlos. Tenho comigo uma pequena coleção dessas revistas.
 
É gratificante ver que, entre as fontes de pesquisa utilizadas, está a biografia que escrevi sobre Alvaro Moreyra, lançada em 1985. Tantos anos depois de publicada e esquecida, recebo a referência como um reconhecimento àquele trabalho.
 
Comprei mais dois exemplares e dei de presente no Natal. Os felizardos ganhadores têm uma excelente leitura pela frente. E o Brasil ganhou uma obra notável, que nos ajuda a entender a nossa história e a valorizar a nossa cultura.
 
________
Metrópole à beira-mar. O Rio moderno dos anos 20. Ruy Castro. Companhia das Letras. 2019.
Alvaro Moreyra. Jorge Adelar Finatto. Coleção Esses Gaúchos. Editora Tchê. Apoio RBS. Porto Alegre. 1985. 

sábado, 28 de dezembro de 2019

Navegações

Jorge Finatto
 
 

Não gosto de autopromoção e sou péssimo marqueteiro. Em todo caso, vai o lembrete: se alguém se interessar pelo meu recém-lançado NAVEGADOR DE BARCO DE PAPEL (seleção de crônicas, formato pocket book, bom pra ler no metrô, no ônibus, no avião ou sentado na praça), dê sinal através do e-mail do blog. 
 
Aproveito para desejar a todos ótimas leituras nesse 2020 que se anuncia com muitas esperanças (tem que acreditar que vai ser melhor). Que Deus nos proteja do governo e dos que são contra o governo. E olhe pelos de bom coração e bons gestos. E dê uma cutucada nos outros.
 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Clariceando

Jorge Finatto
 
Clarice Lispector
 

EU VINHA TORTO de leituras difíceis, arrastadas, porque livro é um troço que, às vezes, pode ser muito chato. Há livros que nos levam a um rotundo cansaço, seguido de frustração, queremos terminar a leitura o quanto antes, como quem se livra de um pesadelo. Existem outros que sequer conseguimos ler além das primeiras páginas.

Não agradam nosso paladar (paladar, como se sabe, cada um tem o seu). Nem sempre o problema é da obra, por vezes é o nosso gosto que não está bom.
 
Vinha eu sofrido nos tortuosos caminhos de páginas secas, escarpadas, quando tive aquela iluminação que às vezes me salva: quem sabe leio ou releio alguma coisa de Clarice Lispector (1920 - 1977).

O texto clariceano jamais me deixa abandonado no meio do caminho, nunca me enfada. Salvo se enfadar tivesse algo a ver com fada. Sim, porque Clarice tem alguma coisa de fada na escrita que brota de suas mãos ternas e violentas (sua força é capaz de revolver as entranhas de um vulcão).
 
Mas então passei na livraria e lá estava A descoberta do mundo (Editora Rocco, Rio de janeiro, 1999), que reúne os textos que ela publicou no Jornal do Brasil, aos sábados, entre 1967 e  1973. São anotações, crônicas, pensamentos, pequenos contos, novelas.
 
Nesta coluna estou de algum modo me dando a conhecer. p. 137

É verdade, ao escrever para jornal, Clarice abriu portas e janelas do claro-escuro casarão de sua alma, que abriga uma multidão de outras almas nos seus misteriosos aposentos.

É preciso ter coragem e merecimento para aproximar-se da autora de A paixão segundo G.H. A escalada, tão bela quanto difícil, exige que o leitor esteja disposto a despojar-se do comodismo intelectual. Há uma estrada a percorrer e conquistar.

Além de rara escritora, uma linda mulher, que nada ficava a dever às divas do cinema e às beldades expostas nas capas de revista. Em Clarice encontram-se reunidos, como poucas vezes acontece, beleza física e talento.

A natureza esmerou-se na sua criatura.

Estou agora, nessa madrugada gelada de Passo dos Ausentes, conjugando o verbo claricear, me delicio com seu texto alto, transcendente e cotidiano, humano, em que não há sobras, não há poses, mas um rigoroso mergulho em busca da expressão, que traz à tona tesouros escondidos nas profundezas de corações e mentes de mulheres e homens (humanos).

Uma exploradora de águas profundas, Clarice consegue traduzir em palavras aquilo que dorme no mais recôndito de cada ser, e o faz com tal naturalidade que até parece uma coisa simples.

Felizes somos nós, os que podem lê-la no original em português, que presenciamos o milagre de sua criação sem necessidade de oráculos, bebendo na fonte um texto de valor universal.

Peço humildemente para existir, imploro humildemente uma alegria, uma ação de graça, peço que me permitam viver com menos sofrimento, peço para não ser tão experimentada pelas experiências ásperas, peço a homens e mulheres que me considerem um ser humano digno de algum amor e de algum respeito. Peço a bênção da vida. p. 117

Bons tempos em que escritores como  Clarice Lispector escreviam para jornal. O prazer de ir até a banca da esquina e lá encontrá-la brilhando com seu texto na página efêmera do sábado. Não existem mais grandes cronistas no Brasil, faz tempo.

Saudade da época luminosa em que também escreviam em jornal Carlos Drummond, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, José Carlos Oliveira, Guilhermino Cesar, Carlos Reverbel, Tarso de Castro, Joel Silveira, Mario Quintana, Caio Fernando, entre outros. Poupo o leitor de comparações com o que (não) temos atualmente, não vale a pena. Olhemos em frente com esperança.

O que importa dizer é que, sempre que reencontro Clarice, redescubro a alegria da palavra e volto a me sentir um peixe feliz no aquário da biblioteca.
 
_________
Texto revisado, publicado antes em 31.5.2013

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Os quatro de Bagé

Jorge Finatto

A partir da esquerda: Glênio Bianchetti, Glauco Rodrigues, Carlos Scliar,
Danúbio Gonçalves. Arquivo pessoal de Glênio Bianchetti


Visitei a exposição OS QUATRO DE BAGÉ na Fundação Iberê Camargo, no bonito edifício às margens do Guaíba. Passei duas horas entre as salas da mostra, e foi pouco, tal a diversidade e beleza dos trabalhos. Os quatro, todos já falecidos, são Danúbio Gonçalves, Glênio Bianchetti, Carlos Scliar e Glauco Rodrigues. Com exceção de Scliar, nascido em Santa Maria, os demais são naturais de Bagé, a acolhedora cidade gaúcha que faz fronteira com o Uruguai.

Tradição, passado e futuro (fragmento). Glauco Rodrigues, 1997.

Boleadeira e ferradura. Glauco Rodrigues, 1976.

A reunião e a camaradagem dos quatro começaram na década de 1940 e prolongaram-se ao longo da vida. Com forte temática social (mas não só), apontando as dificuldades e humilhações dos trabalhadores nas estâncias, charqueadas e minas de carvão, os artistas desenvolveram uma obra crítica, comprometida com o entorno. Entre as técnicas que utilizaram, a gravura teve especial lugar por facilitar a reprodução e distribuição em grande escala das obras. Nesse sentido, criaram o Clube de Gravura de Bagé e participaram do Clube de Gravura de Porto Alegre, ambos no início da década de 1950. Colaboraram em diversas publicações (como a instigante revista Horizonte, editada em Porto Alegre entre 1949 e 1956) e interagiram com intelectuais de várias áreas.

Pilão. Glênio Bianchetti, déc. 1960.

A exposição revela o alto nível de criação dos quatro. Com sua variedade de temas e técnicas, merece ser conhecida e estudada. Chama a atenção que a amizade entre eles, nascida na juventude, perdurou até a morte, não obstante os diferentes caminhos que cada um trilhou. Há uma história que os entrelaça de forma indelével. Raramente artistas (seres egocêntricos e temperamentais) convivem e se respeitam por muito tempo.Também não deixa de ser curioso o fato de o acaso (ou não) ter reunido pessoas de tanto talento numa pequena cidade interiorana.

E os tomates também. Carlos Scliar, 1975.

A exposição, que se estende até março do ano que vem, ganha notável dimensão na medida em que apresenta parte da obra do grupo ao correr de décadas. Os quatro são dignos de figurar nos melhores museus do mundo. Trata-se de uma das mais importantes exposições já realizadas pelo museu Iberê. Por sua importância, creio que deveria ser levada a diversas cidades do Rio Grande do Sul e a outros Estados.

Carvão e suor. Danúbio Gonçalves, 1956.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Orquídeas, rosas e hibiscos na rua

Jorge Finatto

photo: jfinatto


Caminhando nas RUAS DO BAIRRO, na volta da agência do correio onde fui postar alguns livros, encontrei orquídeas. Estão aconchegadas no tronco de um plátano na Rua Comendador Rheingantz. Quando as vi pela primeira vez, anos atrás, fiquei muito admirado. Orquídeas medrando no asfalto. Cheguei a pensar que eram artificiais, ideia de algum gaiato talvez. Mas não, são verdadeiras.

Do outro lado da rua, tem uma roseira, que dá lindas rosas vermelhas. Perto dali, na Rua Furriel, hibiscos cor-de-rosa. Porto Alegre é uma cidade muito arborizada, disso não se pode reclamar. E não faltam flores em muitas de suas  ruas.

O mundo vegetal ameniza a dificuldade de viver numa cidade tão difícil e avessa à alegria. Alegria que rareia em todo o Brasil. Nem sempre foi assim. Talvez os bons dias estejam chegando logo em frente, dependendo da luta de cada um por mais solidariedade, respeito ao próximo e capacidade de invenção da vida. Preciso acreditar que, em breve, todos brilharão e virão outra vez conviver nas calçadas. Como as orquídeas, os hibiscos e as rosas nas ruas do bairro.

photo: jfinatto

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Enquanto picam livros, o sabiá canta

Jorge Finatto

brinco-de-princesa no quintal. foto: j.finatto
 
 
ALEGRIA s.f. Sentimento de felicidade, de contentamento, satisfação, júbilo.*

Todo ESCREVER é uma viagem em busca da alegria. Alegria de estar vivo num país e num mundo tão tristes, tão desconcertantes quanto belos. Se escreve apesar de tudo e contra tudo que maltrata a sensibilidade, se escreve para celebrar a vida e suas mil faces. Palavras são registros, são retratos, são pinturas, são esboços, são rascunhos, são delírios e são sonhos que vêm de algo maior, que nos envolve e alimenta.

Às vezes me reconheço nas coisas que escrevo. Em outras ocasiões, é um estranho que está naquelas linhas. Gosto quando isto acontece: é como se me libertasse do labirinto pessoal. Tenho a sensação de que escapei do calabouço. Nesse sentido é como se a escrita levasse a um campo aberto pronto para ser trilhado em direção ao infinito.

Li que a coleção "Obras Completas do Círculo de Lectores", da Espanha, será reduzida a papel picado, porque não há mais interessados em comprar e ler os livros. Afirma-se na notícia que existem cada vez menos leitores de livros impressos. Não se vendem mais livros de porta em porta em nenhuma parte. As enciclopédias estão digitalizadas. O mundo digital avança, mudam-se hábitos. A leitura já não seria uma prioridade, prefere-se o mundo das imagens e sons das telas.

A coleção a ser picada é de autores clássicos universais, um tesouro da criação humana.

Diz, também, a tal notícia que não haveria interessados em ficar com os livros (ao invés de picá-los). Será? Talvez não na Europa, mas aqui no Brasil há tantas escolas espalhadas pelo imenso território com carência de livros. O mesmo em países de língua espanhola nos interiores profundos do continente. Aposto que mesmo na Espanha encontrariam quem quisesse receber os livros. Mas aí, decerto vão dizer, há o custo do correio, do transporte, etc, etc. É uma pena.

É preciso talvez dizer aos autores da ideia picadora que livros não foram feitos pra virar confete, mas para os olhos, corações e mentes das pessoas.

No Brasil, em sentido contrário, é cada vez maior o número de clubes de leitura formados por pessoas que se reúnem uma vez por mês, em média, para conversar sobre um livro que todos leram. São eventos que brotam espontaneamente nas comunidades. Participei uma vez de um desses encontros num café e gostei. Isso sem falar que encontrar pessoas de carne e osso nesses tempos de face, instagram e whatsapp é quase uma quimera.

Enquanto isso, no quintal, o sabiá me dá de presente o seu canto. Ele tem ninho nas minhas árvores. Não cobro aluguel. Acho que é mais do que um, pois a cantoria é grande de manhã e à tarde. Ele não exige pagamento pra cantar, não reclama direitos de autor. Não reivindica presença de público.

Canta porque quer, quando quer, o "meu" sabiá. Existe ainda alegria no mundo.

Enquanto picam livros, o sabiá canta no quintal, criam-se clubes de leitura. Resistência.

________

* Dicionário Aurélio. Terceira acepção da palavra alegria. Editora Nova Fronteira, 1999.