quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Literatura pra que mesmo?

Jorge Adelar Finatto


Confesso que sou um leitor tosco, desses que buscam sentido nas coisas que leem. Não apenas gosto de ler como de reler livros, e a cada nova leitura descubro coisas que antes não vi. O tempo é raro diamante. Não pode ser desperdiçado. Lutamos para escolher, entre milhares, o livro que irá nos fazer mais felizes,  mais saciados na busca de beleza e conhecimento, recompensando-nos  pelo esforço da leitura.

Li entrevista de uma escritora em que ela afirma que não acredita que a literatura possa ter uma função, nem que possa ser uma possibilidade de reflexão, de alteridade. Diz também que literatura é literatura, não tem função nenhuma e não  se pode esperar isso dela.

Não tenho pretensão de atribuir "funções" à literatura. Mas não posso disso extrair seu oposto, que é negar a ela qualquer função. Como leitor, busco nos livros prazer, encanto, conhecimento, uma espécie de felicidade que só a leitura pode trazer e que não encontro em outras coisas. 

Esse prazer e essa felicidade estão diretamente relacionados à possibilidade de construção de sentidos que a leitura oferece. O escritor escreve determinada coisa e o leitor estabelece suas  relações, faz descobertas, extrai e constrói significados. A obra literária só ganha vida nos olhos do leitor e ele próprio torna-se criador no ato de ler.

Desde que acordamos de manhã até o segundo antes de dormir, passamos o tempo procurando sentidos. Isso é assim porque temos uma consciência e não podemos apagá-la. Do outro lado, está o inconsciente, um oceano de sentidos ocultos, intuições, memórias pessoais e ancestrais que fazem parte do nosso ser.

Ninguém lê uma página ou uma linha sequer sem essa tentativa de encontrar significados. E se lemos é porque estamos em busca de alguma coisa, algo nos falta, estamos em construção.

O assunto é longo e comporta várias interpretações.  O que eu acho é que escrever e botar um livro no mundo é assunto de muita responsabilidade. Por isso custo a entender o que foi dito na entrevista. Talvez não tenha ainda alcance suficiente para compreender.

Contudo, no dia em que chegar à conclusão de que a literatura não tem função nenhuma, que não serve para refletir, nem para ver o mundo e o outro numa perspectiva diferente, no dia, em suma, em que entender que literatura é literatura, e ficar só nisso, aí então será a hora de parar e fechar o estabelecimento.

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Foto: J. Finatto. Ipê amarelo.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Todos os cheiros

Jorge Adelar Finatto


Os cheiros trazem de volta emoções que ficaram guardadas no sótão da memória.

Entrar no Mercado Público de Porto Alegre, à margem do Guaíba, é fazer uma viagem através do mundo de fragrâncias que nos remetem a sentimentos e tempos distantes. Da infância eu recordo de coisas ali compradas que eram empacotadas com papel e barbante. Cada uma chegava em casa com seu  odor característico. Assim a erva do chimarrão, o café de Minas Gerais, o bacalhau norueguês, o cacau da Bahia, o camarão e o peixe da cidade de Rio Grande. Lembro das idas ao mercado e do contato com aquele universo de cheiros e mil produtos expostos.

Um dia desses retornei ao mercado público e fiquei por lá um pedaço da tarde. Fui atrás de especiarias espirituais que não tardaram a se revelar. Encontrei no ar toques de cravo e canela, vestígios de peixe, baunilha, vinhos, charque, hortelã, cidreira, limão,  manjerona, madeira, melão e por aí vai. Um encantador mosaico olfativo habita aquelas bancas e corredores.

Caminhei naquele movimento colorido como nos tempos de menino, gente indo e vindo, os vendedores falando com os visitantes - e não apenas sobre compra e venda de mercadorias -, como sempre se fez em todos os mercados do mundo, em todas as épocas,  menos, claro, na frieza e dura objetividade do shopping moderno.

Na verdade, quando entrei no mercado público, acho que fui atrás do guri que eu fui.

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Foto: site da Prefeitura Municipal de Porto Alegre:

http://www2.portoalegre.rs.gov.br/mercadopublico/

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Baaria, A Porta do Vento

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Alberta de Montecalvino, a grande dama de Passo dos Ausentes, enviou-me uma mensagem através de Heráclito, o pombo-correio. Invocando a cláusula pétrea da amizade, pede-me que escreva algo sobre o filme Baaria, A Porta do Vento (Itália, 2009), do diretor Giuseppe Tornatore. A película não passará em Passo dos Ausentes porque o cinema que lá havia, o Cine Esplendor, fechou em 1955. Os anos 50 do século XX foram ferozes com os Ausentes.

Resistir a um pedido de Alberta, quem há-de? Vocês já leram o texto que ela publicou neste blog em 14 de junho passado? Não deixem de fazê-lo.

Conheço Tornatore de outros filmes, como Cine Paradiso, Malena e Estamos Todos Bem.  Ele é sentimental e verdadeiro, mas não é bobo. O filme é uma viagem afetiva através do tempo, tendo Baaria, cidade natal do diretor, como cenário. Uma viagem através de um álbum de família no interior de um cartão postal. Lá estão seus pais, irmãos, amigos, lugares. Lá está a pobreza. E também a luta, a esperança. Baaria é uma espécie de gíria que significa porta do vento, palavra de origem árabe ou fenícia. O nome certo da cidade é Bagheria e fica na região da Sicília.

Assistimos à passagem do tempo na vida das pessoas e da cidade, entre os anos 1930 e 1980. As mudanças são testemunhadas pelo olhar de Peppino, desde menino até a velhice. Como qualquer cidade, em Baaria tem o louco, o  nefelibata, o aleijado, as brigas familiares, a solidão das janelas olhando a estrada (tão Passo dos Ausentes), a dificuldade de viver, meninos  brincando, tirando frutas do pomar alheio, namoros, romances, violência.


Tornatore denuncia a máfia e o fascismo, embora não  se detenha a examinar a extensão dessas organizações. A obra mostra um país com muitas feridas, mas sobretudo enaltece o amor familiar e a amizade.

É a história de gente pobre que ficou na Itália após a grande  diáspora. Ainda está por ser contada a outra história, a dos que emigraram, dos que foram expulsos da mãe Itália no último quarto do século XIX, cerca de dez milhões de pessoas. Famílias inteiras separadas para sempre. Essa foi a maneira como muitos países europeus "resolveram" na época seus problemas econômicos, políticos e sociais. Esse Amarcord faltou na obra de Fellini. Quem sabe Tornatore não o fará um dia?

Tem gente torcendo o nariz para Baaria, A Porta do Vento. A meu ver, injustamente.

A trilha musical do velho Ennio Morricone é bela, a fotografia é encantadora.

Eu chorei algumas vezes durante o filme. Emoção derramada por ver na tela fragmentos da vida pequena numa cidadezinha italiana, em tudo tão parecida com o nosso interior do Rio Grande do Sul.

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Fotos: Paris Filmes, divulgação.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O cinamomo

Jorge Adelar Finatto



Existe um edifício na rua Dona Eugênia, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, que tem um pequeno jardim na frente. Neste jardim vive um velho cinamomo.

Passei por lá no último sábado, o tempo estava um pouco nublado e frio. Me dirigia à banca de jornal que tem ali perto, onde costumo ir quando estou pela cidade.

Sempre que passo naquele lugar olho para o meu amigo cinamomo. Às vezes me pergunto se ele ainda se lembra de mim. Eu jamais pude esquecê-lo. Morei naquele edifício quando tinha nove, dez anos.

O cinamomo fazia parte das brincadeiras da meninada do prédio e da rua.

Pouca gente sabe - até porque existem hoje poucos cinamomos - mas essa árvore tem minúsculas flores que, na primavera, produzem um dos mais suaves e doces perfumes que conheço.

O meu velho cinamomo está lá, florido, exalando seu perfume em mais uma primavera das nossas vidas. A todos distribui seu aroma generosamente.

De certa forma, somos sobreviventes de um tempo e de uma cidade.
 

 


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Fotos: J. Finatto

domingo, 26 de setembro de 2010

Navegações

Jorge Adelar Finatto


Não existem chegadas
e partidas definitivas
rijos itinerários nascidos
na rota turbulenta
dos abismos

o que há é esta
necessidade de navegar
que começa não sei
em que rio ou fundão
e depois se expande

um dia toda busca
cristaliza
e se pode, enfim,
recolher as velas
no porto do outro
mundo

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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Foto: J. Finatto

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A queda do Águia Negra

Jorge Adelar Finatto


Os destroços do aeroplano ainda estão espalhados em volta do chafariz, no centro da Praça da Ausência. Essa queda do Águia Negra não foi apenas a décima oitava na vida do piloto Nefelindo Acquaviva. Ao contrário das anteriores, não foi um acidente.

Um traiçoeiro tiro de bombarda, de autoria desconhecida, está na origem do rompimento das relações entre a igreja e a aviação em Passo dos Ausentes.

Nefelindo decolou com o Águia Negra do fundo de seu quintal na tarde de sábado. Sobrevoou cercas e telhados a muito pouca altura. Os vizinhos taparam os olhos e ouvidos com as mãos e abaixaram as cabeças, temendo pelo pior.

O ensurdecedor e absurdo objeto voador - espécie de motociclo com asas de besouro, contruído por Acquaviva no galpão do seu pátio - ganhou altitude a duras penas, descrevendo no ar um preocupante ziguezague.

Quando atingiu a marca de 40 metros, Nefelindo iniciou manobra para contornar a torre da igreja e rumar ao sul, na direção de Porto Alegre. O acalentado sonho do pioneiro da aviação em Passo dos Ausentes é aterrissar um dia na capital do Rio Grande do Sul. Com isso quer realizar dois objetivos: chamar a atenção da sociedade para a existência da cidade esquecida, que nem sequer no mapa está, e divulgar a prodigiosa invenção aeronáutica.

No momento em que começava a volta na torre, ouviu-se o assombroso estrondo do tiro de bombarda, cujo projétil passou a poucos centímetros do aparelho, desequilibrando-o nas alturas. O aeroplano bateu no alto da torre contra a cruz, que se partiu e despencou. Em seguida, a nave precipitou-se vertiginosamente, vindo a cair sobre o chafariz no meio da praça. A água amenizou a queda.

Naquela hora a banda municipal ensaiava no coreto. Os músicos correram e retiraram o que sobrou de Nefelindo de dentro do casulo. O médico, Dr. Fredolino Lancaster, 96 anos, único da cidade, compareceu ao local pouco depois da tragédia e fez o atendimento de urgência. Disse que era um milagre o piloto ter sobrevivido.
 

Dois dias depois, no hospital, pela tarde, todo enfaixado na cama, Nefelindo segurava um charuto entre os dedos, enquanto olhava através da janela. Nuvenzinhas brancas desfiavam entre os fios do negro bigode. Nisso chegou o chefe local da igreja católica, Dom Krauss. O padre usava o chapelão preto em forma de bacia virada para baixo. Dirigiu-se secamente a Nefelindo, com forte sotaque germânico.

- Eu o proíbo de invadir o espaço aéreo da igreja. Se isso acontecer novamente, eu mesmo me encarregarei de atirar contra seu pássaro insano. Acredite, Nefelindo, sou bom atirador.

- Cínico chapeludo - respondeu o aeronauta com a voz cavernosa -, o senhor acaba de decretar o fim do nosso armistício. Nós da aviação não aceitamos ultimatos. Passou o tempo em que a igreja fazia o que bem entendia nesse fim de mundo. Prepare-se para o pior.

- Você não podia andar solto por aí, devia estar no hospício -, disse Dom Krauss, que se retirou furioso do quarto, abrindo espaço com os braços entre as duas enfermeiras que ali chegaram para atender o doente.
                              
               &        &        &

Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneón na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes, foi até o jardim do hospital e, diante da janela aberta do amigo, executou Adiós Nonino, de Astor Piazzolla.

O perfume das madressilvas impregna o ar nesses inícios de primavera.

Somos ruínas vivas em progresso na nossa pequena cidade. Um lugar onde a neblina veio morar com a solidão. 

Mas temos, como nosso aviador, a ambição dos altos voos.

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Mais sobre o Águia Negra no post de 5/5/10.

 

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A pensão do tempo

Jorge Adelar Finatto


O tempo, como se sabe, é um quarto de pensão. Num dia estamos hospedados e, noutro, não estamos mais. O viajante chega ao mundo com a mala  repleta de difíceis trabalhos. Vai morar na pensão. Trata de sobreviver e nessa lida empenha seus melhores dias. Em certo momento, vem o gerente da pensão e avisa que está na hora de ir embora.  Indignado, o viajante protesta: mas como, excelência, eu pago a hospedagem em dia, faço enorme esforço pra não me desentender com os demais hóspedes (o que nem sempre é fácil), levo uma vida honesta, luto pra fazer a coisa certa e, agora, quando a vida começa a melhorar, vem o senhor e me manda embora? Isso não é justo. Peço que reconsidere. O gerente, onipotente, diz tem gente esperando a vaga do quarto, você jamais foi dono de nada, isto aqui é uma pensão, um lugar de passagem, lembra? Nunca houve promessa de quarto eterno. O senhor tem de partir. Mas pra onde, pergunta o perplexo viajante, depois de todos os sacrifícios, é isso que me espera? Não faz sentido.  E quem disse que tem que ter sentido? Arrume a mala e vá para a estação. O seu trem não demora a chegar. O viajante fica em silêncio. Desiludido, fecha os olhos. Uma cálida lágrima escorre pela face.

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terça-feira, 21 de setembro de 2010

Justiças*

 José Saramago


No dia de 22 de Julho de 2005, um cidadão brasileiro, Jean Charles de Menezes, de profissão electricista, foi assassinado em Londres, numa estação de metro, por agentes da polícia metropolitana que o confundiram, diz-se, com um terrorista. Entrou numa carruagem, sentou-se tranquilamente, parece que chegou mesmo a abrir o jornal gratuito que havia recolhido na estação, quando os polícias irromperam e o arrastaram para o cais. Não o detiveram, não o prenderam, derrubaram-no violentamente e dispararam-lhe dez balas, sete das quais na cabeça. Desde o primeiro dia, a Scotland Yard não fez outra coisa que criar obstáculos à investigação. Não houve julgamento. A procuradoria impediu que os polícias fossem incriminados e o juiz proibiu o jurado de pronunciar uma sentença condenatória. Já sabem, se algum dia lhes aparecer por aí uma peruca branca, dessas que aparecem nos filmes, digam ao portador o que as pessoas honestas pensam destas justiças.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Postado originalmente em 25 de fevereiro, 2009.
A grafia é a de Portugal.

Foto de José Saramago (1922 - 2010) : Acervo da FJS

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A parte da orquídea

Jorge Adelar Finatto

A parte da beleza e da justiça que não se distribui, a parte do calor e da ternura que não se dá e nem se recebe, a parte dos sonhos extraviados na travessia, a parte do amor não vivido, essa é a parte da orquídea. 

O que ficará desse tempo seco e sem ar?

Levo no bornal o caderno de anotações, os lápis de cor, a caneta, o telescópio, o lampião, o impossível mapa e a máquina fotográfica pra descobrir a orquídea. 


Encho os olhos e o coração com suas cores, formas e raro aroma. No limite do penhasco, no velho tronco da beira do córrego, sob a sombra da densa nuvem, a orquídea respira e ilumina.

Orquídea, sim, orquídeas. 


 
O resto não importa. 

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Foto: J. Finatto

sábado, 18 de setembro de 2010

Escritores sem leitores

Jorge Adelar Finatto


Escrever pra quê? Será que ainda existem leitores no mundo? Onde estarão, em que escondidas bibliotecas, em que salas e quartos solitários e pouco iluminados resistirão?

A impressão é que, a cada dez novos escritores que surgem, aparece apenas um leitor. As estantes das livrarias estão repletas de livros que ninguém lê. Todos os dias novos títulos vão somar-se ao mar-oceano existente. Quem lê tudo isso?

Às vezes desconfio que tem gente que vai à livraria, compra sua sacola de livros, mas não lê. O livro como objeto decorativo, com poder de ostentação de leituras não acontecidas. Será?

Então a situação é a seguinte: pra salvar os escritores do risco de extinção, de hoje em diante todos vão ser também leitores. Esse o compromisso de cada escritor para a preservação da espécie.

Coisa triste é a criatura escrever, no rigor do esforço e no escasso da vida, e ninguém ler. Quem não precisa de um ora-veja nessa existência, um reconhecimentozinho? Ah, não, ninguém quer saber!

Eu sou solidário com os sem-leitores porque faço parte dessa multidão.

Dia desses um colega blogueiro me contou  que está querendo  pagar alguém pra ler as suas mal-traçadas. Ah, não!  Não podemos permitir que a sombra do desespero tome conta. Então, agora estou visitando a ilha do colega todos os dias.

Tenho visto muitas ilhas desertas, abandonadas taperas virtuais, mostrando que um dia houve vida ali. É duro.

Acredito que os livros nunca vão morrer. São objetos perfeitos na forma e carregam em si o espírito  humano. Mas e os escritores e blogueiros? Sobreviverão nessa penúria de leitores?


Não sei, não sei.

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Foto: J. Finatto

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Setembro, setembros

Jorge Adelar Finatto
































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Fotos: J.Finatto

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Sete anjos velam à beira do poeta

Jorge Adelar Finatto


Sete anjos velam à beira do poeta. A primavera deitou lilases na cidade.  Os olhos estão apagados. As mãos nada mais seguram, nem flores, nem lápis, nem vento. Recorda o longo caminho de passos perdidos: não encontrou seu coração.  Sete anjos velam enquanto o poeta afunda na escuridão. Sete noites, sete estrelas, sete nuvens. Lembra os desaparecidos, os medos noturnos, a seca garganta da solidão, a poesia triste e inútil que cultivou. Sete anjos velam enquanto o poeta cai no esquecimento. Adormece num banco da pequena praça. Um fantasma caminha nas cercanias com seu boné e sua manta. Os anjos em suas vestes  brancas velam o poeta em volta daquele banco. Sonha com Henrique, sonha com Heitor. O difícil silêncio dos que partiram. Depois sente um ermo de fundo de pedra. Em volta da praça nascem hibiscos amarelos, vermelhos, brancos e um outro, de uma estranha cor que não tem nome.

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Desenho: J. Finatto, bico-de-pena, 1979.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O dinheiro do enterro

Frederico Vasconcelos

Dona Marineide dos Santos é uma mulher simples, de poucos recursos e letras. Não é dada a escrever cartas. Mas numa emergência, no dia 4 de novembro, usou o serviço de vale postal da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, em Tietê, interior de São Paulo, para remeter R$ 265 a um parente, em Ribeirão Branco (SP). Era a sua parte nas despesas do sepultamento de um familiar.

Dona Marineide não lida com números. Não sabe que, naquele dia, os Correios realizavam 16,7 milhões de entregas, entre as quais a sua remessa, tão emergencial. Mas o que representa um vale postal entre dois municípios, num universo de encomendas e mensagens telemáticas que exigem um exército de 80 mil empregados?

Dona Marineide desconhece as pesquisas que indicam que os Correios são a instituição de maior confiabilidade no Brasil. Sua dolorosa experiência, contudo, mostrou que o seu dinheiro, tão esperado, não chegou ao destino.

Dona Marineide não conhece a lei sobre os serviços postais, que regula os direitos e obrigações dos Correios, mas foi se informar sobre o extravio. No dia 25 de novembro, Sílvio Faria Filho, agente dos Correios, confirmou por carta que o dinheiro não entrara na agência de Ribeirão Branco.

Dona Marineide não sabe que a lei que regula o serviço postal dispõe que os Correios devem "promover formação e treinamento de pessoal sério ao desempenho de suas atribuições". Não tinha por que duvidar do sr. Sílvio, que dizia que seu dinheiro se extraviara por "falhas da burocracia".

Dona Marineide mora no campo, mas assiste à televisão. Deve ter imaginado que a tal crise chegou a um ponto em que os Correios não tinham como devolver o seu dinheiro. A crise é brava, mas os Correios ainda dispõem de fôlego para aplicar algo como mil vezes o vale postal extraviado para patrocinar uma mostra na Bienal.

Dona Marineide e seus parentes ficaram sem ver a cor do dinheiro. Mas o que representa seu vale postal diante dos R$ 45 milhões que os Correios gastam para agências premiadas de publicidade nos dizerem que os serviços postais brasileiros estão entre os mais avançados do mundo?

Dona Marineide deve ter horizontes limitados; não sabe que os Correios investem R$ 500 milhões por ano para comprar equipamentos e melhorar as técnicas de atendimento. E que obtiveram financiamento externo para contrato de R$ 31,5 milhões com duas multinacionais, que fornecerão novo sistema para rastrear objetos. Quem sabe, no futuro, extravios como o de seu vale postal não ocorrerão.

Dona Marineide não sabe o que é globalização e neoliberalismo, não deve atinar para os tais mecanismos de proteção aos consumidores. Sabe quanto custa uma passagem de ônibus para reclamar o reembolso do que lhe é devido, mas não tem idéia do que sejam as "falhas da burocracia".

Dona Marineide não lê jornais e não deverá ficar sabendo por esta coluna que, 50 dias depois de sua angústia, os Correios -em menos de uma hora- confirmaram a grande injustiça e anunciaram que o dinheiro estaria disponível na agência, naquele dia.

Dona Marineide não imagina, mas a estatal só foi ágil depois que um jornalista levou o fato ao conhecimento da assessoria da presidência da empresa, em Brasília. Convenhamos, diante da complexidade da burocracia, tratava-se apenas do dinheiro para o enterro de um anônimo, não é mesmo?

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Este texto foi originalmente publicado na Folha de São Paulo, edição de 04/01/1999. O blog agradece a autorização para publicação. 
Frederico Vasconcelos é jornalista, repórter especial da Folha de São Paulo. Mantém o Blog do Fred (blogdofred.folha.blog.uol.com.br) ,  um dos mais importantes e acessados da área do sistema judicial brasileiro.
Pelos seus trabalhos, recebeu, entre outros, o Prêmio Esso, o Prêmio Bovespa de Jornalismo, o Prêmio BNB de Imprensa, o Prêmio Icatu de Jornalismo Econômico e foi finalista do "Premio a la Mejor Investigación Periodística de un Caso de Corrupción", do Intituto Prensa y Sociedad e Transparency International Latinoamérica y El Caribe.
Nas horas vagas, dedica-se a outro teclado: toca piano (Jazz e MPB).
E-mail: fvasconc@folhasp.com.br

Ilustração: arte do blog

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Os fascistas

Jorge Adelar Finatto

Os fascistas
escolhem sempre
as prisões
à benignidade do sol

mas os poetas
continuarão
violando
as sombras

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Poema do livro O Habitante da Bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Conversa sobre livros

Jorge Adelar Finatto


Na última sexta-feira, dia 10/9, encontrei-me com cerca de 220 alunos da Escola Estadual João Correia, em Canela, para uma conversa sobre ler e escrever, livros e leitura. Os meus interlocutores eram meninos e meninas de sexta a oitava séries, na faixa etária dos 11 aos 16 anos. O convite da escola surgiu a partir da doação que fiz de exemplares de meu livro Memorial da Vida Breve.

No início do encontro, falei da importância dos livros na minha vida. Cada livro abre portas e janelas no coração e na mente, ajuda nas nossas escolhas, a construir caminhos. Destaquei o ato de escrever e, principalmente, ler.

Escrever, até como desabafo, é uma forma de se conhecer melhor e conhecer o outro. Nem todo mundo precisa tornar-se escritor, mas todos deveriam escrever.


Escrever e ler são atos de busca-vida.

Alunos leram alguns poemas do livro. Na voz deles, os textos ganharam vida, ficaram até mais bonitos. Outros estudantes fizeram pinturas sobre o que leram, que ficaram expostas na parede.

Gostei muito do interesse, das perguntas, das manifestações e da troca que o encontro proporcionou. Saí de lá enriquecido e mais feliz do que quando cheguei.  E, pelo que senti , esses adolescentes têm condições de ir longe  e melhorar o  país. Merece ser ressaltado o trabalho da direção e dos professores, aos quais agradeço na pessoa da professora Andréia Padilha Jardim.
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Foto: ilustração dos alunos sobre textos do livro Memorial da Vida Breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.

sábado, 11 de setembro de 2010

Arrumar a biblioteca, arrumar a alma

Jorge Adelar Finatto

Fazia perto de 20 anos que não arrumava os livros no capricho. Muitas mudanças de casa e de cidade deixam a gente com um  jeito andarilho, desorganizam nossas coisas.

Não há biblioteca que resista aos  cansativos itinerários dos caminhões de mudança da vida de juiz.

Meus livros rasgaram comigo o mapa do Rio Grande do Sul. Nunca nos separamos. Não são apenas folhas de papel. Existe vida pulsando nessas páginas.

Passei cerca de três semanas, em julho, na dura lida de subir na escada, baixar livros das estantes, tirar pó, consertar páginas e capas feridas, agrupar os volumes por gênero e áreas do conhecimento, pôr em ordem alfabética e, finalmente, subir na escada novamente e colocar cada livro no seu lugar.

Aproximadamente mil livros compõem o acervo, entre  obras de poesia, contos, romances, ensaios, novelas, crônicas, diários, biografias, artes, filosofia, artigos, reportagens, etc. Os jurídicos estão num lugar à parte.  Alguns volumes me acompanham desde a adolescência. Comprei-os a partir dos 17 anos, com o salário do primeiro emprego que consegui (porteiro noturno da escola particular onde estudava).

Não venho de uma família de leitores. Os livros não faziam parte dos objetos da casa, não existiam no nosso cotidiano de gente pobre, salvo alguns estritamente necessários na escola, comprados com sacrifício.

Costumo lembrar esta história: certa ocasião, minha mãe comprou uma máquina de costura e junto com ela ganhou dois livrinhos de brinde, duas antologias de poesia, uma de poetas brasileiros e outra, portugueses (são os mascotes da biblioteca). Foram os primeiros livros de literatura que entraram lá em casa.

Muitas e muitas famílias não podem ter um único livro. A sobrevivência leva todos os tostões. O certo é que cada família tenha condições de comprar livros. Nenhuma família sem livros, essa será sempre uma nobre luta. Enquanto isso não acontece, as empresas poderiam criar o hábito de dar livros de presente aos seus clientes.

Voltando à arrumação das estantes, terminada a tarefa, me senti outra pessoa, alguém que podia alegrar-se e orgulhar-se de ver os livros organizados depois de tanto tempo.

A alma ficou mais leve, porque sei que agora, enfim, Saramago vizinha com Sartre, Manuel Bandeira tece boas conversas com Manoel de Barros e Jorge Luis Borges, enquanto Cecília Meireles e Maiakóvski trocam confidências e dão-se as mãos nas caminhadas que fazem pelo bosque cheio de vida e silêncio da biblioteca.

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sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Gullar, palavra na escuridão, completa oitentanos

Jorge Adelar Finatto


10 de setembro de 1930, Rua dos Prazeres, São Luís, capital do Maranhão. Nasce José Ribamar Ferreira. No dia de hoje, cercanias da primavera brasileira, ele completa 80 anos. José Ribamar Ferreira e Ferreira Gullar são a mesma pessoa, o  último é o reconhecido poeta, que resgatou da escuridão gentes, nomes, histórias, dias, vidas que, de outra forma, estariam afundados no subsolo do esquecimento.

O seu Poema Sujo, entre tantos, trabalha a matéria fugidia  e delicada do oblívio, inventa luz e instala memória onde havia uma  espessa camada de pó e silêncio. Constrói sentidos em busca do ser-no-mundo. O poema vertido em forma, em som,  em terra, em lenta e invisível lágrima.

O poeta carrega muitas vozes, muitas vidas, na sua voz, na sua vida.

A Ferreira Gullar, no seu dia, todas as manhãs e palavras, e um pedido: por nós, seus leitores, continue construindo poemas em busca da aurora. 

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Texto sobre o Prêmio Camões 2010, atribuído a Gullar, no post de 07/06.

Foto: Ferreira Gullar. Site oficial do poeta:
http://literal.terra.com.br/ferreira_gullar/

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A cidade perdida: as origens

Jorge Adelar Finatto




Uma cidade de fantasmas habita um lugar ermo, no cume das montanhas, nos Campos de Cima do Esquecimento.

O leitor talvez se pergunte por que, afinal, Passo dos Ausentes, lugar onde escrevo essas linhas, não aparece no mapa do Rio Grande do Sul nem em nenhum atlas.

Muitas vezes também me fiz essa pergunta. Não encontrei até hoje uma resposta plausível. Para nós, habitantes desta cidade esquecida, a invisibilidade é um mistério difícil de entender.

Não nos veem e não nos sentem.

Nós o que vemos é a andança das nuvens nos contrafortes da solidão.

Oficialmente, não existimos. Não estamos no mapa. De onde vem essa ausência?

A Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária,  Geológica e Astronômica de Passo dos Ausentes já encaminhou diversos expedientes aos órgãos do governo, em Porto Alegre, pedindo providências. As respostas são sempre evasivas. “Vamos examinar”, “estamos estudando”, “faltam dados verossímeis acerca da existência da cidade e sua história”.

Mas como? Acaso nos tomam por seres de papel e tinta?

Passo dos Ausentes é uma espécie de Atlântida, a lendária ilha perdida no fundo tenebroso do oceano.

Uma Atlântida invertida, é certo, que caiu para o alto e desapareceu a 1.800 metros de altitude.


Somos seres invisíveis, desaparecidos vivos. Mortos na memória oficial e nos meios de comunicação.

Don Sigofredo de Alcantis, nosso filósofo-mor, costuma dizer que fomos fundados por um grupo de índios guaranis e padres jesuítas. Eles vieram de São Miguel Arcanjo, após a destruição da redução ocorrida durante a Guerra Guaranítica, em meados do século XVIII, quando portugueses e espanhóis acabaram com os Sete Povos das Missões.

Don Sigofredo é o guardião da nossa memória.

A barbicha grisalha, entradas no cabelo, o cavanhaque branco em forma de v, as extremidades do bigode levantadas para cima como a perscrutar o misterioso universo, o velho pensador conta histórias sentado no banco da praça ou caminhando em volta dos seus jardins.

Os dias não se contavam em horas, mas em suspiros, afirma ele.

O rumor do vento nas coberturas de capim santa-fé das cabanas, na beira do Rio dos Ausentes, era a música daqueles inícios.

Depois aqui chegaram cinquenta pessoas, entre crianças, mulheres e homens, todos escravos foragidos de estâncias do sul do estado. Livres, integraram-se na comunidade local.

Após, vieram algumas famílias de andaluzes, fugidas da Espanha por razões não muito bem esclarecidas. Os espanhóis tinham sido recebidos com antipatia nas metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo. Traziam na bagagem ideias utópicas de conteúdo socialista.

O tempo passou. Mais tarde subiram as montanhas indivíduos russos, polacos, alemães, italianos, portugueses e um grupo de judeus e árabes que chegaram juntos.

Ninguém sabe ao certo como e por que essas pessoas vieram parar em Passo dos Ausentes.




Toda essa gente tinha em comum algum trauma de perseguição por razões políticas, filosóficas ou relacionadas à cultura e etnia.

Em Passo dos Ausentes, encontraram refúgio e paz para viver, reconstruir sua história, trabalhar e criar filhos. Não demorou muito para que a cidade se tornasse produtora de boa variedade de produtos agrícolas, de artesanato e de utensílios de pequena indústria. A prosperidade ocorreu no auge da estrada de ferro nos anos de 1940. O declínio veio com o fim da ferrovia na década seguinte.

A população da cidade, que não era grande, passou a diminuir. As pessoas começaram a ir embora em busca de um futuro.

A memória e o afeto têm nos preservado da extinção. Mas não sabemos até quando.

Íngremes e tortuosos são os caminhos através dos paredões de basalto.

Muito frio, chuva, vento e neblina nos separam do mundo.

Don Sigofredo diz que é do nosso modo de ser a saudade das estrelas que desapareceram há muitos milênios. A luz desses astros nos chega viajando pela noite do tempo infinito.

Somos testemunhas de uma claridade que se apagou.

Por que não estamos no mapa?

Somos invisíveis como a nossa história e a nossa cultura.

Às vezes nos reunimos na praça para ouvir a pequena orquestra sinfônica. O Concerto para Violão e Orquestra, de Heitor Villa-Lobos, é a música predileta de Don Sigofredo. Acho que é também a música de Passo dos Ausentes.

Somos poucos e invisíveis.

Na solitude das noites de bruma ouvimos as histórias uns dos outros.

Não sabemos o que será da cidade e de nós.

Mas quem sabe alguma coisa nessa vida?

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Texto publicado em 25/12/2009.
Fotos: J. Finatto

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Negada liberdade condicional a Chapman


Conforme noticiado pela imprensa, o pedido de liberdade condicional feito por Mark Chapman, 55 anos, condenado pelo assassinato de John Lennon, foi negado pela justiça norte-americana. É a sexta vez que isso acontece, sendo  igualmente denegados os pedidos anteriores. Com essa decisão, o condenado somente poderá renovar o requerimento em agosto de 2012.

Assassino de Lennon volta a pedir liberdade condicional


Mark David Chapman, o homem que assassinou John Lennon em 1980, vai ser interrogado esta semana numa audiência, que começa hoje, para decidir se poderá sair em liberdade condicional. Esta é a sexta vez que Chapman, preso há 30 anos numa prisão de Attica, no Norte do estado de Nova Iorque, tenta obter a liberdade condicional.

Leia o texto integral desta matéria, publicada  ontem no jornal Público, de Portugal, versão da internet: 
 
Assassino de Lennon volta a pedir liberdade condicional - Cultura - PUBLICO.PT

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Soledad

Heitor Saldanha




La gente se cansa de esperar
                             de amar
                             de vivir
pero no  se  cansa de existir.

Siempre hay un motivo para continuar.


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Poema do livro Muestra, de Heitor Saldanha. Tradução do português para o espanhol de Atilio Jorge Castelpoggi. Colección Mirto, Buenos Aires, 1963.

Leia entrevista com Heitor Saldanha (1910-1986), neste blog, no post de 29/12/09.

Foto: J. Finatto

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

El largo viaje de placer

Jorge Adelar Finatto



Um livro fascinante, dos melhores que li nos últimos anos. A Longa Viagem de Prazer, contos do escritor uruguaio Juan José Morosoli (1899 - 1957), publicado em outubro de 2009 pela editora L&PM, com tradução de Sérgio Faraco, é dessas obras que lastimamos não ter conhecido mais cedo. São nove  pequenas histórias que tratam da vida solitária e comum de homens e mulheres que vivem no interior do Uruguai.

A grandeza humana e dramática que encontramos nesses personagens é a mesma presente nas grandes obras da literatura universal. A poesia pulsa em cada um desses relatos povoados de densa humanidade, nos quais nós, habitantes  deste estranho mundo, nos reconhecemos como diante de um espelho. 

A maestria literária de Morosoli coloca-o ao lado de importantes autores do continente americano, como Julio Cortázar, Juan Carlos Onetti, Borges, Guimarães Rosa, Steinbeck. Conforme salienta, com rara sensibilidade, o editor, crítico literário e ensaísta uruguaio Heber Raviolo, no excelente prólogo que escreveu para esta edição, os seres morosolianos "se radicam num lugar, num pago, num pueblo, ou andam pelos caminhos sem destino, sem saber o que buscam e nem se de fato buscam, numa espécie de contemplação de si mesmos ou de sua própria condição. El drama del hombre de este tiempo es tal vez  el haber perdido la facultad de sentirse vivir, disse Morosoli, e no tempo estancado, que é o tempo de sua obra, suas personagens parecem empenhadas, obstinadamente, em sentir-se vivas, aferradas, sem o saber, a certas categorias humanas elementares e por isso mesmo essenciais. Viventes de um tempo morto, ou condenado a morrer, é o que poderíamos dizer dos seres morosolianos." (pág. 13).  Ainda segundo Raviolo, o escritor deixou uma obra pequena, "mas sólida e absolutamente pessoal", centralizada nos relatos breves.

Juan José Morosoli nasceu na interiorana cidade de Minas e dela nunca saiu. Cedo abandonou os estudos para começar a trabalhar. Entre outros ofícios, trabalhou como atendente de livraria e bazar, foi dono de dois cafés e teve um armazém e depósito de mercadorias.

Resta esperar que outros títulos de Morosoli sejam vertidos para o português e lançados no Brasil. E quem viajar ao Uruguai não esqueça de trazer os livros deste belo autor.
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A Longa Viagem de Prazer, Juan José Morosoli, tradução de Sérgio Faraco, Coleção L&PM Pocket, Porto Alegre, 2009. R$ 11,00.

Rio de Janeiro cria serviço telefónico para esclarecer dúvidas de língua portuguesa - Cultura - PUBLICO.PT *


A promulgação da lei que cria o serviço surge hoje no Diário Oficial da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O objectivo do serviço, segundo as autoridades, é enriquecer a aprendizagem da língua portuguesa.

Com a lei, a população carioca passa a contar com um serviço que tira as dúvidas sobre o idioma envolvendo questões de ortografia, acentuação, concordância, regência e morfologia.

O atendimento ao público será realizado, de segunda a sexta, por uma equipa de oito professores que irão revezar-se em turnos diários.

O serviço funcionará sob a responsabilidade da Secretaria de Educação e o sistema deverá contar com um número telefónico exclusivo para garantir o anonimato do usuário.

Serviços semelhantes ao Telegramática já funcionam noutras partes do país.

O Rio de Janeiro vai adoptar um modelo semelhante ao implantado em Fortaleza, no Ceará. Naquele estado, existe há 30 anos uma equipa de profissionais para atender a população e que recebe, em média, 150 telefonemas diários. Noutras cidades como Curitiba, Brasília, Jundiaí e Londrina, o poder público também oferece piquetes gramaticais por telefone.
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* Notícia publicada em 17.08.2010, no jornal português Público, versão da internet, editoria de cultura (grafia de Portugal). Veja em:

Rio de Janeiro cria serviço telefónico para esclarecer dúvidas de língua portuguesa - Cultura - PUBLICO.PT

sábado, 4 de setembro de 2010

Notícia de setembro

Jorge Adelar Finatto


A fileira infinita dos postes é uma orquestra de cordas que  toca a música do vento. As últimas tardes do inverno silenciam. Setembro inventa, na fábrica de fazer manhãs, finas cores para tecer dias mais claros. O sol aparece mais cedo entre as frestas da janela. Sinto no ar os primeiros perfumes. Bem-vindo esse tempo, com seu suprimento de pássaros, árvores, flores. Bem-vinda a beleza  que se mostra de graça, sem cobrar ingresso nem direitos autorais. Caminho na calçada e é como atravessar um túnel de luz que nos retira da câmara escura. Não importa o que já sofremos, os tombos que caímos, os que ainda vamos cair.


Setembro chegou. A esperança é nosso sol interior, venham pois as esperanças. Venham os sonhos que nos ajudarão a construir as necessárias mudanças. E venham os amigos, novos, antigos, em luminosa farândola, andando pela setembrina estrada.

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Fotos: J. Finatto 

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

86 anos

José Saramago


Dizem-me que as entrevistas valeram a pena. Eu, como de costume, duvido, talvez porque já esteja cansado de me ouvir. O que para outros ainda lhes poderá parecer novidade, tornou-se para mim, com o decorrer do tempo, em caldo requentado. Ou pior, amarga-me a boca a certeza de que umas quantas coisas sensatas que tenha dito durante a vida não terão, no fim de contas, nenhuma importância. E por que haveriam de tê-la? Que significado terá o zumbido das abelhas no interior da colmeia? Serve-lhes para se comunicarem umas com as outras? Ou é um simples efeito da natureza, a mera consequência de estar vivo, sem prévia consciência nem intenção, como uma macieira dá maçãs sem ter que preocupar-se se alguém virá ou não comê-las? E nós? Falamos pela mesma razão que transpiramos? Apenas porque sim? O suor evapora-se, lava-se, desaparece, mais tarde ou mais cedo chegará às nuvens. E as palavras? Aonde vão? Quantas permanecem? Por quanto tempo? E, finalmente, para quê? São perguntas ociosas, bem o sei, próprias de quem cumpre 86 anos. Ou talvez não tão ociosas assim se penso que meu avô Jerónimo, nas suas últimas horas, se foi despedir das árvores que havia plantado, abraçando-as e chorando porque sabia que não voltaria a vê-las. A lição é boa. Abraço-me pois às palavras que escrevi, desejo-lhes longa vida e recomeço a escrita no ponto em que tinha parado. Não há outra resposta.

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Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Postado originalmente em 16 de novembro, 2008.
A grafia é a de Portugal.
Foto de José Saramago (1922 - 2010) : Acervo da FJS

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Bernardo, eremita

Jorge Adelar Finatto


Bernardo, eremita, foi morar no interior do búzio faz muito tempo. Conversa com os peixes. Caminha no jardim das anêmonas.  O búzio onde vive fica na flor dágua, é uma espécie de ilha, tem vista ampla, mas é pouco poroso e, de tão velho, guarda ainda as impressões digitais do Criador.

As gaivotas bailam no ar azul da manhã, nesses começos de setembro. De boné branco, astrolábio e telescópio, Bernardo descortina os quatro horizontes. Faz silêncio na ilha. Só se ouvem as ondas. O vento austral estufa a camisa, espalha os brancos cabelos.

Bernardo sai pouco a navegar no pequeno barco de madeira. Só ele e os bichos vivem ali. Costuma remar de vez em quando em volta do búzio, margeando as palmeiras e falésias. Faz parte do seu cotidiano conversar consigo mesmo. Estranho, tem dias que resolve dizer a si o que pensa  de certas coisas e acaba ouvindo o que não quer.

Longe da ilha tem um farol pintado de branco e vermelho.  Nunca foi até lá, mas admira a persistente luta do faroleiro contra a escuridão. Bernardo queria ter essa força também.

Solitário, pensa: quem sabe um dia descubro alguém pra partilhar a vida?

As gaivotas sobrevoam a ilha. Às vezes, ele sonha viajar até o continente. Talvez saindo da concha encontrará a moça do cabelo preto escorrido e do vestido floreado. Mas já se passaram vinte e cinco anos.  Em que coral, em que ilha distante viverá a moça do vestido floreado?

A maré sobe, os peixes nadam em festa à flor do arrecife. Bernardo recolhe os instrumentos e retira-se com o boné branco para o interior da côncava morada. A música primitiva do vento sopra nas trompas do búzio.

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Foto: J. Finatto