segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O sobrado dos ausentes

Jorge Adelar Finatto 

as prímulas do tio Ernesto. photo: j.finatto
 

Toda casa tem um fantasma. A casa da minha infância tinha vários...

O retrato pendurado na parede de madeira. O semblante sereno, um quase sorriso, o olhar que mira ao longe. É o fantasma do tio Ernesto, o mais amado por todos. Nunca teve um trabalho, queria só ler e escrever e fazer travessias pelas montanhas dos Campos de Cima do Esquecimento. Gostava de muito conversar e viajar. E de tomar chimarrão comendo rapadura.

Era o mais feliz. E o mais devotado aos livros. O mais bonito também, segundo as mulheres da família. Sua pátria espiritual era a Espanha de Cervantes, Juan Jamón Jiménez, Unamuno, Ortega y Gasset, Salvador Espriu, Lorca.

Um dia, ninguém sabe por quê, tio Ernesto foi viver tão longe, tão retirado em si mesmo, que cismou de não falar mais palavra. Passou a habitar o telhado do velho sobrado. A avó lhe alcançava comida e água pela janela da água-furtada. Ali ele esticou uma lona e fez uma espécie de cabana.

No inverno, escrevia cartas que reuniam a família junto do fogão a lenha para escutar a sua leitura. Eram histórias inventadas. Ele morreu aos 55 anos. Foi difícil retirar o corpo do interior da cabana inclinada onde dormia em posição de feto.

O quarto de Ernesto, no andar térreo do sobrado, nos fundos, tinha um canteiro de prímulas ao pé da janela. De todas as cores, as florzinhas nunca param de florescer, em todas as estações do ano, sem que ninguém cuide delas.

Isso aconteceu no tempo das lamparinas, dos lampiões e dos vaga-lumes salpicando o escuro com suas lanterninhas faiscantes.

Era no tempo da maria-fumaça resfolegando e largando fumaça na estação de Passo dos Ausentes.

Os fantasmas acabavam voltando para casa um dia. A avó os recebia na porta com um largo abraço e uma manta para cada um, as mantas que cosia durante os anos de ausência. Eram homens e mulheres, filhos, filhas, tios, tias, primos, primas.

A casa tinha muitos quartos. Eu gostava quando alguém chegava de madrugada no trem noturno vindo de Porto Alegre. O barulho do sino no portão de pedra era o sinal. As luzes dos quartos se acendiam umas após as outra. Ninguém mais dormia. Era o alvoroço.

Às vezes algum, alguma, vinha com filho no colo, às vezes com três, como a tia Melinda. Era um tal de fazer chá, café, aprontar biscoitos, servir pão quente, chimias, sopas e ouvir as primeiras histórias.

O tio Nelson, que era contra-almirante, um dia voltou velho, a cabeça de crespos cabelos brancos combinava com a farda da mesma cor. Os olhos azuis muito claros e cansados.

No velho sobrado, todos descendiam da bisavó negra e do bisavô branco.

Veio só, deixou a família no Rio de Janeiro, veio pra morrer ao lado da avó quase centenária (mãe dele). Disse que queria terminar os dias no quarto onde passou a infância a brincar com navios de montar e viagens imaginárias. Morreu numa tarde de sexta-feira, segurando a mão da avó que, sentada ao lado da cama, ouvia dele como era a vida no mar. Eu estava num banquinho junto dela.

Um fogão a lenha campeiro. O corredor que termina na sala grande iluminada, as cadeiras em volta da mesa de peroba rosa. A janela ainda recende a flor de laranjeira.

O postigo em forma de losango, a bilha de louça esmaltada no canto da cozinha.

Uma trança de cebola esticada perto do fogão. Um silêncio de inverno.
 
Em certos dias os fantasmas saem dos retratos e reúnem-se aos vivos (os vivos e suas turvas e sofridas memórias), ao redor da mesa.

Resta o vaso branco com as flores possíveis.
 
Cortinas transparentes que o vento embala.

Os pinheiros, os plátanos, as palmeiras sob o azul de um dia qualquer.

O quadro onde se lê "O sândalo perfuma o machado que o fere".
 
Os livros na estante, os olhos ausentes de Ernesto (apagaram, apagaram). Um nome, um número, um epitáfio ao relento.

O menino Jorge conversa com os fantasmas todas as noites antes de desaparecer, também ele, na bruma da memória e do sono. Fala da infância, dos banhos no rio, da pescaria dos dourados, da festa dos peixes depois da enchente. Das saídas noturnas com os tios e primos em maio para espiar a viagem das estrelas cadentes nos Campos de Cima do Esquecimento.

O sobretudo azul-marinho está pendurado no cabide ao lado da porta de entrada do sobrado. O guarda-chuva ainda molhado de sonho. Os óculos dobrados sobre o jornal de um dia. O ruído do pêndulo do relógio.

A ventania sopra nos salgueiros da solidão.

O que é afinal esse tempo em carne viva? O que é quase todos terem desaparecido?

Nas noites de inverno, eles continuam chegando de muito longe no trem noturno.

A casa toda se acende, abraços se espalham pelas salas, quartos, corredores. O coração estremece.