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sábado, 18 de abril de 2020

Incidente na Praça Maurício Cardoso

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto
 
VULTO NA PRAÇA. A luz amarela seria poética, não fosse o perigo dos assaltos. Um observador oculto espreita entre as buganvílias.

Quem vem lá? Difícil saber na escuridão sem trégua. A noite de domingo até podia ser romântica. Mas há indivíduos dormindo nos bancos da Praça Maurício Cardoso em Porto Alegre. Dois bêbados urinam sob a pérgula.

A cidade não tem piedade dos seres delicados. Mas há que vencer o mal com o bem. É essa a hora do menestrel, do cavalo fiel, da capa, da espada e do alaúde.

Eis que emerge da treva tremenda o Cavaleiro da Bandana Escarlate, montado no seu cavalo branco. Vem galopando desde muito longe, desde os Campos de Cima do Esquecimento, desde o fim do mundo.
 
Vem para a batalha final.

Atravessa a praça no garboso corcel de arado, cuidando aqui e ali pra não amassar as flores. Um cara passa correndo atrás de outro pela rua afora, gritando coisas impublicáveis.

O cavaleiro veste a capa de seda preta. A máscara negra não permite lhe descubram o segredo. Traz o antiquíssimo alaúde a tiracolo.

O mimoso instrumento pertenceu a um seu trisavô que veio fugido da Itália. Aqui se estabeleceu no ramo dos embutidos e depois mourejou em negócios obscuros.

O cavaleiro tem genealogia, portanto. Mas o que passou, passou.

Neste momento ele cruza pro outro lado da rua e estaciona o alvo eqüino (com trema, por favor) debaixo do balcão da Meiga Donzela Dionéia (com acento, por favor, não obstante o desprezível (des) acordo ortográfico).

O nosso herói saca com grande donaire o lustroso instrumento.

Dedilha então os primeiros acordes. A melodia acorda a Musa que, entre estremunhada, descabelada e furiosa, vai até a janela do balcão saber do que se trata. Não acredita no que vê.

- O que quereis, ó, Cavaleiro do Alaúde em Riste? - pergunta com voz sinistra. - Acaso não percebeis que altas horas são? Não vos dais conta do ridículo? Estamos em 2020, please!

E prossegue a Incontornável camena:

- Deixai-me dormir, ó, Misterioso Mascarado. Amanhã é dia de pegar no batente outra vez, voltar pra dureza inglória da vida. Retornai ao vosso castelo de areia e vento, ó, Romântico Senhor, poupai-me. Do contrário, obrigar-me-ei a chamar os homens da lei para vos untarem com rudes afagos, que é o que deveras mereceis.

O Cavaleiro da Bandana Escarlate silencia o mimoso instrumento. Baixa a cabeça. Parece não acreditar no que acaba de ouvir. Cavalgou durante dias por estradas cheias de perigos. Mais de uma vez viu-se forçado a jogar-se no matagal com o esbaforido e lácteo corcel por força de grosseiros caminhões.

Para não comprometer ainda mais o idílio, decide retirar-se. Num gesto de rara nobreza, joga uma rosa branca ao balcão. Depois ergue alto o alaúde na mão esquerda, empina o pangaré e grita:

- Eu voltarei na primavera, ó, Estressada Dionéia, Musa Minha Indomada. A rejeição é uma refeição que se come fria. Mas jamais esfriará este esgualepado coração.

Ao proferir essas sonantes palavras, escorrega do gentil animal e estatela-se na gelada calçada, magoando a triste cabeça que a escarlate bandana - agora rasgada - antes cobria.

Aos poucos recompõe-se o Nobre Cavaleiro. Junta o alaúde, apruma-se sobre o valoroso eqüídeo (nessa altura, tanto faz como tanto fez o trema) e parte no trote.

Enquanto cruza de volta a Praça Maurício Cardoso, um insensível abre a janela num edifício próximo e manda:

- Vá tomar no seu caju (aqui é suprimida a expressão original pela fruta, a fim de manter o decoro mínimo).

Assim que, sem perder a altivez, o nosso Ilustre Menestrel Medieval desaparece na noite escura da grande cidade.

Um bêbado atira uma pedra e quebra a luminária da praça. Fim.  
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Texto revisto, publicado antes no blog em 27 de abril, 2010.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Homem é tudo frouxo

Jorge Adelar Finatto
 
Estrela Antares, rodeada por nebulosa amarelada (esquerda). Nasa
 
Em um domingo absolutamente banal, procuro alguma coisa que fuja ao absurdo trivial. Devia haver mais solenidade num dia desses na vida de um ser humano. Um pouco mais de tempero. Um pouco menos de tédio e cansaço.
 
Olho para os lados e o que vejo? Os semelhantes vivem momentos de grande intensidade filosófica, estética e emocional. Nada parecido com o enfado que é a minha jornada dominical.
 
Aposto que na casa ao lado os vizinhos celebram, entre acordes de Bach, a descoberta da cura contra a mediocridade e a melancolia. Por isso os vejo andar pelo quintal, quase flutuando, com aquele ar de quem encontrou as respostas.
 
O sujeito escondido e antipático da casa da esquina, o qual desconfio faz coisas inconfessáveis, não parece nem um pouco preocupado com o vírus ebola, com os terríveis ataques de Israel a civis em Gaza e com o medo ancestral da morte que me assolou a noite inteira, agravado pelo fato de ter que usar bengala nos últimos dias, porque o joelho esquerdo me dá dores rasgadas a cada passo e nem dormir consigo porque dói também deitado.

O preço a pagar pelas caminhadas nas montanhas atrás de destroços de estrelas cadentes nos Campos de Cima do Esquecimento.
 
A minha mãe diz ao telefone, pra me "consolar", que homem é tudo frouxo. "Se tivessem de parir, morriam todos na véspera. De enjoo." E assim parece ser.
 
Se ao menos eu pudesse subir num raio de luz até Antares e de lá admirar como são felizes, nas tardes de domingo, os habitantes dessa que é a estrela mais brilhante da Constelação de Escorpião.
 
Tudo acontece no domingo fora do meu território irrisório. Sinto uma inveja perversa da felicidade estampada na cara dos viventes da minha rua. Nenhuma angústia, nenhum remorso, nada. Todos sabem o que fazer, para onde ir, o que ler, o que ouvir e o que dizer, nenhum desassossego ou fastio.
 
Enquanto eu fico aqui com a bengala, diante da janela, esperando por uma magia que, sinceramente, acho que nunca vai acontecer.