segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A biblioteca é um refúgio

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto, 23.01.2014

 
A biblioteca é um bosque onde me refugio quando a barra da realidade pesa. Isto acontece quase todos os dias do ano. Por essa razão é um lugar que estimo tanto. Tenho uma relação de afeto com meus livros.
 
A minha não é, contudo, uma biblioteca de bibliófilo. Embora eu faça parte de uma confraria de bibliófilos (que edita preciosidades literárias, quatro obras por ano), a minha biblioteca é uma oficina de trabalho, não é um relicário e menos ainda um santuário.
 
Os livros são feitos por mãos humanas e por isso são imperfeitos e belos. Nada mais artificial do que estabelecer com eles alguma solenidade. A única solenidade que os livros reclamam é a leitura.

Não trato os volumes por vossa excelência, mas por tu, como deve acontecer entre amigos.
 
Escrevo e sublinho nas páginas sem nenhuma culpa. E é possível encontrar exemplares em mais de uma peça da casa por onde estive ao longo do dia ou da noite.
 
Cada um tem um jeito de ficar sozinho. O meu é com um livro na mão.
 
Passei o domingo de chuva na biblioteca. Arrumei os livros que trouxe da viagem. Uma mala pesada com obras não editadas no Brasil. Referi os nomes de alguns dos autores aqui esses dias.
 
Não é tarefa fácil acomodar novos livros entre os antigos. Tive que dar uma boa mexida nas estantes. Novos personagens e escritores se incorporaram ao pequeno acervo, trazendo sua cálida existência e sua claridade.

photo: j.finatto, 23.01.2014

 
Tenho uma ligação emocional com meus livros. Não vou dizer que não tenho um forte sentimento de posse em relação a eles. De modo que não fico exatamente tranqüilo quando me levam uma obra por empréstimo. Dependendo do livro, fico mesmo com o coração na mão. Mas recebo poucos pedidos.
 
De tempos em tempos faço uma revisão e avalio quais são os livros imprescindíveis. Isto é, aqueles que levarei para a ilha deserta quando, desiludido da vida, partir para lá um dia. Os que não se enquadram nessa categoria costumo dar.
 
É uma maneira de fazer a literatura circular, além de não afundar a casa em livros. Um livro que para mim não é tão interessante, para outra pessoa pode ser uma dádiva espiritual.
 
De resto, não me iludo com a posse de qualquer coisa nessa vida. Não somos donos de nada. Temos apenas a posse precária e transitória de algumas coisas materiais. Dia mais, dia menos, trocam de mãos.

Só nos pertence aquilo que levamos dentro da alma.*
 
Enquanto arrumava as estantes, nos intervalos li História do sábio fechado na sua biblioteca, de Manuel António Pina (Assírio & Alvim, Lisboa, março de 2009). Um pequeno livro de 60 páginas, ricamente ilustrado por Ilda David, que conserva ainda um gostoso cheiro de tinta. Trata-se de uma bonita história que lembra uma fábula na maneira de contar.
 
Com o talento que Deus lhe deu (por certo teve que trabalhar muito para trazê-lo à luz**), Pina escreve coisas assim no seu livro:
 
Como sabia todas as coisas (o sábio) e não tinha nada de novo para saber e conhecer, a sua vida era muito triste e desinteressante. Era uma vida sem espanto, onde nada de novo e surpreendente acontecia e todos os dias eram iguais a todos os dias. Mesmo coisas tão estranhas e misteriosas, como, por exemplo, os cortinados do quarto agitando-se, à noite, ou os móveis rangendo como se falassem uns com os outros, não tinham para ele qualquer mistério. (p. 10) 
 
Este livro já faz parte da relação dos imprescindíveis.

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*A respeito de possessões imateriais, vale a pena ler Um poema de Chagall, em tradução de Manuel Bandeira, em sua Antologia Poética, Livaria José Olympio Editora,  sétima edição, Rio de Janeiro, 1974. "Só é meu o país que trago dentro da alma."
**Eugénio de Andrade:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/06/eugenio-de-andrade.html