domingo, 21 de fevereiro de 2021

O leitor inusitado

 Clara Finatto*

Ilustração: Clara Finatto

Era o começo de uma noite fria do mês de junho e eu estava caminhando pelas ruas do bairro quando vi, ao longe, um homem deitado na calçada bem debaixo de um poste de luz.

Ao me aproximar percebi que era um morador de rua. Naquele chão frio, com um cobertor até o pescoço, segurava na mão esquerda um livro aberto e, com a direita, pegava bolachas de um saco plástico para comer - no intervalo entre uma página e outra.

Fiquei muito tocada ao ver a cena. Custei a acreditar.

Que homem seria aquele? Mesmo diante da pobreza extrema cultivava o hábito de ler. Como conseguia manter assim viva a sensibilidade naquelas condições?

Chegando mais perto pude ver que ele lia “O Fantasma de Canterville” de Oscar Wilde. Fato este que me deixou mais emocionada, pois sou apaixonada por esse escritor.

Nada sabia sobre aquele homem, mas me identifiquei instantaneamente com ele.

Perguntei qual era o seu nome. Ele respondeu, com uma voz suave, que se chamava João. Quis lhe fazer mais perguntas, mas me segurei. Não queria incomodá-lo.

Na sequência questionei se teria interesse em ler outros livros. Ele abriu um largo sorriso e disse que sim.

Então, combinamos que eu faria a entrega de um livro diferente a cada 10 dias, sendo a entrega feita naquele mesmo local que chamamos de Poste da Leitura...

No dia seguinte emprestei-lhe o primeiro livro. Escolhi  “O Retrato de Dorian Gray” do mesmo Oscar Wilde já que ambos gostávamos do autor.

Passados 10 dias fui ao Poste da Leitura para entregar o segundo livro e para saber o que havia achado do anterior. Ele, muito educado, agradeceu e disse que tinha gostado bastante do livro. Assim, ele devolveu o primeiro e entreguei “Os Dragões não conhecem o Paraíso” de Caio Fernando Abreu.

Decorridos mais 10 dias fui, muito contente, ao encontro do meu amigo João para alcançar-lhe o terceiro livro: “Dom Casmurro” de Machado de Assis.

Transcorrido outro período saí para a próxima troca, mas, de longe, percebi que João não estava lá. E quando cheguei ao Poste da Leitura vi que ele havia deixado o livro entre folhagens enrolado em um papel de pão.

Ao pegar o livro vi que ele havia escrito um bilhete que dizia:

“ESSE LIVRO FOI O ÚLTIMO. COM HISTÓRIAS ASSIM VOU ACABAR ME MATANDO”.

Nunca mais o vi nem tive notícias dele. Queria muito revê-lo para pedir desculpas pela seleção que não lhe agradara e, quem sabe, tentar outros livros.

Espero que João, onde estiver, continue com suas leituras. 

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*Advogada e artista plástica.