sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Conversa com meu anjo da guarda

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

 
DIZIAM OS ANTIGOS que cada pessoa tem o seu anjo da guarda. Anjo bondoso e santo que vela o sono, releva os erros, protege dos perigos, aconselha, sabe perdoar. Anjo zeloso e guardador que anima o coração desolado e ajuda a viver.

Não sei se os anjos ainda estão por aqui, tal o estado em que os homens deixaram o mundo, especialmente o Brasil. Se pudesse fazer um pedido, pedia ao meu anjo que inventasse depressa a máquina de desmorrer.

Sim, para acabar de vez com o problema do desnascimento que todos os homens e mulheres carregam dentro de si e dele não conseguem se livrar. Porque desnascer, ou deixar de caminhar sob o sol, é coisa das mais tristes, sem nenhum sentido, um desperdício enorme de tempo, trabalho, sonhos e sentimentos.

Uma vez expulso o desnascer de nossas vidas, com a eternidade toda pela frente, quanta coisa bonita havíamos de fazer e conhecer! Teríamos os dias necessários para consertar o que ficou torto, o que não deu certo.

Vou aproveitar e construir muitos barcos de papel pra soltar no Arroio Tega, nas manhãs da eternidade. Passearei com meu guarda-chuva nas ruas molhadas e vazias de Passo dos Ausentes. Subirei em perna de pau na Noite de São João, olharei a Lua da janela do meu quarto de menino, pescarei estrelas com o chapéu.

Descobrirei o nome de todas as flores e árvores. Pedirei, também, ao meu anjo protetor, que traga de volta, sem mais tardança, os seres amados que já partiram. Sim, estou cansado de viver longe deles, sinto muitas saudades.

Quero todos os ausentes por perto outra vez. Principalmente nessas solitárias noites tão frias, tão povoadas de névoa e memória. Os invisíveis habitam a solidão da casa.

 É preciso urgentemente inventar a máquina de desmorrer.
 
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Texto revisto, publicado, antes, em 28, maio, 2014
 

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Conversa de joaninhas

Jorge Finatto

photo: jfinatto

A JOANINHA verde disse para a joaninha amarela:
 
- O Brasil é, de fato, o país do futuro: não temos guerra, vulcão, terremoto, tsunâmi, furacão.
 
A joaninha amarela respondeu:
 
- E precisa?
  

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

O adeus das magnólias e a viagem de carreta

Jorge Finatto


photo: jfinatto
 

AS MAGNÓLIAS secaram com a última neve. É estranho falar em neve neste inverno onde quase não fez frio, foi um verão ameno. Muitos dias com temperaturas acima dos 30º em Porto Alegre. Com interstícios de geada, alguma neve, pouca, aqui na serra.

As magnólias brancas como algodão ficaram escuras e caíram do pé. As cor-de-vinho resistiram um pouco mais, algumas ainda estão vivas, a maioria acabou por cair. É o fim do inverno que nem bem aconteceu. Eu gosto de frio. Mas os tempos são de secura, nas almas e no ambiente.
 
A carreta no jardim com suas grandes rodas de madeira convida para um passeio. Mas não tenho cavalo nem boi para puxá-la. Vamos voar no pensamento entre as estrelas.
 
Andei de carreta no tempo da infância, uma grande aventura. Não me lembro do nome do carroceiro que nos levava de favor, atendendo nossos insistentes pedidos, éramos uns cinco meninos.

Começávamos por sentar nos duros e primitivos bancos de madeira. Depois saíamos pela estrada de chão, a sacolejar como batatas num saco. A sensação ao fechar os olhos: partíamos numa nave de quadro rodas puxada por um boi e íamos pelos céus, cá em baixo.
 
As inesquecíveis viagens, essas que fazemos com a imaginação.

Escrever sobre o tempo, flores e viagem de carreta é uma maneira de distanciar-se do mundo real. Licença poética indispensável nestes dias.
 

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Solitários bancos de praça

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto. Hidráulica Moinhos de Vento, Porto Alegre


TODOS SOMOS um pouco sozinhos. Uma voz no vento espalha essa notícia. Alguns são muito sozinhos. Trazem a marca da solidão a ferro e fogo incrustada na face, na alma. Regalo triste de nascença.
 
Habitamos um território cósmico povoado de solidões. De um modo claro, tudo no universo é um pouco só. Como esses solitários bancos de praça em setembro.

As pessoas têm medo de sair de casa, da caverna moderna, pois a violência e a indiferença tomaram a cidade. Zumbis vagueiam pelas ruas à procura de um lar.
 
Não existe fusão possível com o outro. O caminho é ermo. Um longo itinerário no desamparo é o destino de todo vivente. Haverá salvação?

A arte, esse luxo, aproxima, cria pontes. Haja palavra, haja traço pra desanuviar o fundo escuro dessa terra de esquecimento. Não existe mais memória de dias felizes. A infância é uma ilha perdida no proceloso oceano.

Os bancos vazios nas solitárias tardes de setembro. Cada um com seu cada qual. Com medo, com frio no coração. Não há manta que apague esse frio.
 
Dizem que não existem duas digitais iguais nem jamais existirão. Cada dedo, único dono. A solidão é assim: sinal ancestral. 
 
Os primeiros raios de sol iluminam o corpo da estátua na praça. Na parada do ônibus muita gente sozinha se prepara para enfrentar a trincheira de mais um dia.

Trazem a esperança de uma improvável felicidade, uma incerta salvação neste lugar onde todos padecem. Se olhar bem, cada rosto é uma obra de Deus e merece ao menos um olhar. Um olhar ao menos. Triste Brasil.

Haja filosofia, haja poesia diante de tanta crua realidade. Valha-nos Deus nesse imenso deserto.
 
Se ao menos nos déssemos as mãos, talvez os emissários do medo e da morte não fizessem o que estão fazendo com nossas vidas. Talvez tomássemos enfim a direção desse navio fantasma. E a solidão de cada um, de cada dia, já não seria o que é. 
 

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Livro de Jean Richepin em pintura de Van Gogh

Jorge Finatto
 
Jean Richepin fotografado por Nadar.
Wikipédia

VAN GOGH admirava o escritor francês Jean Richepin (1849 - 1926). Tanto que desenhou a capa de seu livro Brava Gente, publicado em 1886, na pintura Três novelas (1887). O fato ilustra o quanto o pintor holandês cultivava livros e escritores. A leitura era, ao lado da pintura e da escrita de cartas, atividade à qual se dedicava diariamente.

Ao ver a pintura (post anterior a este), interessei-me pelo que estava escrito no desenho (livro no alto da pequena pilha). Descobri que se tratava de referência àquela obra do escritor Jean Richepin, de quem eu nunca tinha ouvido falar.

Three novels, Van Gogh, 1887, Van Gogh Museum
 
Engana-se muito quem pensa que Van Gogh era apenas um doido que pintava com cores extravagantes. Longe disso. Tinha uma mente brilhante e um extraordinário poder de criação. Foi um gênio autodidata que teve alguns orientadores, Paul Gauguin entre eles. Apesar da pobreza, freqüentava museus, livrarias e conhecia a obra dos grandes artistas de seu tempo.

Um raro observador e um homem culto.
 
A opção pela pintura não veio sem dor, após fracassar na tentativa de tornar-se pastor como o pai. Distanciou-se da família, que dele esperava uma "vida normal" com uma profissão que lhe garantisse segurança.
 
Nas cartas de Van Gogh há referências a Richepin, assim como a outros artistas e escritores.* Ao ler as missivas percebemos um pensador profundo, interessado em aspectos que dizem respeito não só à arte como à existência humana.

Um gênio que se construiu em meio à doença que o perseguiu até a morte, em períodos de sofrimento e ausência. Uma pessoa para quem a pintura significou iluminação em meio à espessa treva.

Livre - Jean Richepin - 01/01/1913 - Broché
Copyright 1913 - Illustrations de René Lelong
Collection Idéal bibliothèque **

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*Vincent Van Gogh, The letters
http://vangoghletters.org/vg/search/advanced?originaltext=original&translation=translation&annotations=notes&essays=essays&other=other&from=1&to=1&date_from=1872-09-29&date_until=1890-07-31&order=date&person_code=727

**Braves Gens
http://www.priceminister.com/offer/buy/1755416280/braves-gens-de-jean-richepin.html
 

sábado, 26 de agosto de 2017

Um livro

Jorge Finatto
 
Three novels, 1887, Van Gogh. Museu Van Gogh, Amsterdam *
 

UM LIVRO é uma promessa de felicidade. Uma casa de papel e tinta.
 
Um território povoado de seres, fantasmas e histórias. Um passaporte para o mistério. Caminho das estrelas.
 
É bom viajar nesse trem de mil janelas pra se sonhar. Esse belvedere que se desdobra em inumeráveis paisagens. Caleidoscópio de sentimentos.
 
Retiro, contemplação, desassossego.
 
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*Van Gogh Museum, Amsterdam:
 

domingo, 20 de agosto de 2017

Leão da Metro no Festival de Cinema de Gramado

O Cavaleiro da Bandana Escarlate

pinheiro e montanhas no Vale do Quilombo. photo: jfinatto
 
Alguns hão de sentir encanto em sair do cálido quarto de hotel, abandonar a leitura de Em busca do tempo perdido, mergulhar na paisagem gelada e nevoenta de Gramado, e assistir filmes no famoso Festival de Cinema serrano. Não é, sinceramente, meu caso. Prefiro o aconchego do grosso cobertor de lã, um café quente e a vista para o Vale do Quilombo. Assumo que, como correspondente do blog no festival, sou um fracasso. Só faço o que me dá na veneta.
 
No hotel onde estou hospedado há tantos astros, estrelas, diretores e gente envolvida com cinema, que até um anônimo como eu chama a atenção.
 
Tenho participado, involuntariamente, de variadas rodas sobre temas relacionados ao mundo da grande tela. Não que eu faça questão. Sou ao natural um sujeito tímido e pouco falante. Prefiro sempre ouvir a falar. Não por modéstia, não, mas por falta do que dizer.
 
Ocorre que me pegam pelo braço no corredor, no café, no jardim, como se fosse um deles, e me levam pra lá, pra cá, em salas temáticas da Sétima Arte. Talvez o cabelo branco, os óculos com lentes de fundo de garrafa, a aparência vetusta façam presumir alguém que não sou.  

A vida me ensinou que, neste ambiente cinematográfico, não é de bom tom perguntar-se o nome das pessoas. Supõe-se que, entre nós, celebridades, existe o sempre desejável, esperável e jamais desprezível reconhecimento.
 
A mim deram para chamar, nos últimos dias,  de Carlos, o Carlinhos do 707. Eu, que até então era um ilustre ninguém, pertenço agora à malta.

Sou um peixe navegando nessas marés montantes, adapto-me com certa facilidade às vicissitudes. Sobrevivo no festival como o leão da Metro, um leão idoso, desses de circo, que nenhum risco oferece e talvez por isso desperte simpatia ou pena. E sempre gostei deste nome, Carlos! Já agora me sinto à vontade com a nova identidade.
 
Num desses encontros, um diretor famoso (no festival todos os diretores brasileiros são, na falta de melhor definição, famosos) cismou de achar que, no início da carreira, trabalhou como meu assistente num filme. Disse aos presentes - pedindo que eu levantasse da cadeira, no fundo da sala - disse que eu lhe dei a primeira oportunidade.

Espantado, eu quis dizer que não, que não era assim, ele estava me confundindo com outra pessoa. Mas o famoso diretor imediatamente me interrompeu e retrucou:
 
- O velho e digno companheiro Carlinhos de sempre! Além de tudo, um homem humilde!
 
A assistência aplaudiu de pé, com grande entusiasmo. Limitei-me a esboçar um breve aceno e, falso modesto, deixei a sala, curtindo o momento de glória. Aproximaram-se repórteres querendo a entrevista fatal. Eu disse que ia passar no quarto e já voltava. Não saí mais.

photo: j.finatto
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O Cavaleiro da Bandana Escarlate, menestrel medieval, faz a cobertura do Festival de Cinema de Gramado para o blogue. Como não tem mecenas, paga as suas despesas, inclusive o ônibus.
Texto revisto, publicado antes em 10.8.2011.