segunda-feira, 9 de março de 2020

A lição de Codogno

Jorge Finatto

A cidadezinha de Codogno, na região da Lombardia, entrou para a história como a que registrou o paciente número 1 de coronavírus na Itália, país que ostenta a maior incidência de casos da doença na Europa neste momento. Codogno está situada na denominada zona vermelha, sujeita a severas restrições. Ninguém pode entrar ou sair sem autorização; todos os serviços estão interrompidos, exceto os essenciais; o transporte público está suspenso. Mas a vida continua, e a população descobriu coisas boas em meio às dificuldades.

Entrementes, o tratamento dado pela imprensa ao surto tem sido hiperbólico, aterrorizante, com longas e constantes inserções em todos os noticiários. Aqui em Portugal divulgam-se os novos casos hora após hora, dia após dia, um a um, com muitos detalhes como se o vírus estivesse tomando conta. No entanto, não é isso que se vê. Na última contagem os casos eram 35 e nenhuma morte. Alguns meios de comunicação tratam do assunto como se uma catástrofe sanitária de enormes proporções estivesse em expansão. 

Sabe-se ainda pouco sobre o vírus que veio da China. As entrevistas, por isso, são em geral pouco elucidativas, enfadonhas, e servem mais para assustar do que para esclarecer. Algumas autoridades demonstram despreparo no trato do tema.* Exceção feita às recomendações de cuidados a serem observados pela população, os mesmos, aliás, de qualquer gripe; e às orientações sobre locais de tratamento, telefones para tirar dúvidas, etc.

Quem assiste a programas de notícias e lê jornais fica alarmado e deprimido. Sentimo-nos fragilizados diante da ideia de uma doença que parece avançar como um monstro. E não há motivo para este enfoque, principalmente quando da China vêm informações de que o contágio e o número de casos estão diminuindo.

A superexposição midiática feita sem cuidado não apenas impõe medo como tem conseqüências econômicas. Claro que a informação é importante, mas neste caso parece estar indo além do razoável. Não se trata de culpar a imprensa pelo coronavírus, mas de evitar conteúdos alarmistas. 

Mas voltemos a Codogno. Um professor do lugar escreveu carta para um jornal de circulação nacional abordando o sofrimento diante das restrições. Relata, também, que coisas boas estão acontecendo: as pessoas estão conversando mais umas com as outras na rua, mesmo com quem não conhecem; poucas estão usando máscaras; as ciclovias têm um movimento nunca antes visto; há uma disposição de ajuda e colaboração entre os habitantes.

Então, ao invés de um desastre planetário em franca expansão, o que se vê é um aumento de solidariedade e amor social. Um outdoor foi criado na cidade e diz: " Codogno é uma doença que não nos larga mais". 

O medo paralisa. O afeto, a união e o bom senso nos levam adiante.
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- Hoje, 11 de março, entre as inúmeras manchetes sobre a doença, os jornais noticiam que Angela Merkel disse que até 70% da população da Alemanha poderão contrair o coronavírus. Convenhamos que é o tipo de declaração alarmista que em nada contribui. Vindo de líder política, causa sérias preocupações pelo modo leviano como estão tratando do tema. Aqueles que devem manter a serenidade não podem, com base em hipóteses,  semear o pânico.

- Em 04 de abril, 2020. Efetivamente, em países como Itália, Espanha, China e Estados Unidos, a catástrofe se confirma com milhares de mortes. Em outros, não. Como Portugal, por exemplo. Esperemos que o Clovid-19 não faça mais tantas vítimas em outros países.

Algo estranho acontece na China onde tudo começou e o número de mortes oficial está em cerca de 3 mil, muito abaixo de outros. Ainda haverá que investigar esses números e o tratamento que aquele país deu à doença que não rapidamente se alastrou pelo mundo.

quarta-feira, 4 de março de 2020

Adeus à Livraria Cotovia

Jorge Finatto

Livraria Cotovia
Foto: Livraria Cotovia. Autor: L.Cotovia

Fiz uma última visita à LIVRARIA COTOVIA no Chiado, em Lisboa. Comprei alguns livros do ótimo acervo (é, essencialmente, editora). O anúncio do fechamento da loja física foi feito há poucas semanas. Funcionava no local há 30 anos. Motivo: os altos custos das rendas (aluguéis) nessa Lisboa hoje tomada pela indústria do turismo. 

Pequenos negócios como livrarias médias e de reduzido porte estão fechando. Mas não só. Pessoas que vivem há 30 ou mais anos em regiões hoje "turísticas" (Chiado, Rossio, Alfama, Bairro Alto, etc) são forçadas pelo mercado a abandonar suas casas. Mudam-se para locais periféricos e mesmo a outras cidades. Perdem-se vizinhos de uma vida. Afetos são separados e dificilmente se recuperam.

A cidade vai adquirindo uma nova face, distanciando-se de seu perfil mais humano. Milhares de turistas percorrem as ruas todos os dias, principalmente o turista que vem atraído pelos baixos preços de alimentação e hospedagem (se comparados com outros países dentro e fora da Europa). 

Confesso meu cansaço ao caminhar pelas ruas mais centrais com interesses históricos e literários. É difícil se mexer em meio à multidão. Pra não falar que vivemos tempos de coronavírus. Dizem que o turismo é um dos principais fundamentos da economia em Portugal. Para o bem e para o mal.

A Cotovia passa a funcionar só pela internet. Não haverá mais loja física. Os livros também poderão ser encontrados em outras livrarias. Essa situação já atingiu outras lojas de livros e alfarrabistas, que encerraram em definitivo as atividades. Esse tipo de negócio está, ao que parece, com os dias contados. E os freqüentadores de livrarias rumam talvez à extinção.
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PS - Ontem, 10 de março, passei em frente à Cotovia (rua Nova da Trindade, 24) e deu um aperto no peito. As paredes de vidro cobertas com jornais, vendo-se nas frestas, lá dentro, só a sombra e nada de livros. Triste.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Eu comecei a sair da mina

Jorge Finatto

Eu comecei a sair da mina
com meus ferros retorcidos
meus tocos de vela apagados
meu alforje vazio

fazia lá fora um dia solar
desses de não se perder
eu vi um rosto bom
o jeito sereno de um homem
que me ajudou a respirar
                                          me abraçou
me desamarrou as mãos

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Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Lautréamont em Montevideo (L'autre à Mont)

Jorge Finatto
 
Río de La Plata entre edifícios, Montevideo. photo: jfinatto

Sí, cuál es el más profundo, el más impenetrable de los dos: el océano o el corazón humano? ¹

                           Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont
 
UMA VIAGEM só é boa quando voltamos diferentes pra casa. Quando algo bom, novo ou há muito esquecido, passa a respirar na nossa sensibilidade.
 
A arte é um tipo particular de viagem. Como as viagens reais, tem poder transformador. De um jeito ou de outro, é preciso viajar, deixar-se tocar: mudar. Tirar o coração e o pensamento do lugar-comum.
 
Em Montevideo, fiz uma expedição à rua onde viveu - até os 13 anos - o Conde de Lautréamont, nom de plume de Isidore Lucien Ducasse (1846-1870), poeta de vida obscura, futuro papa profano do Surrealismo. Ele é autor do estranhíssimo, belo e terrível Les Chants de Maldoror (Os Cantos de Maldoror). Filho de pais franceses que foram trabalhar e morar no Uruguai, nasceu em Montevideo, em 4 de abril de 1846, tendo ali vivido até o início da adolescência.

Única photo conhecida de Isidore Lucien Ducasse,
fonte Wikipédia

Uma tarde de sol, lá me fui a bordo do chapéu de palha encontrar o jovem bardo na Calle Camacuá, 544.

A rua Camacuá é pequenina. Diante dela estende-se, a perder de vista, o Río de La Plata. Fica na ciudad vieja. Chegando ao local, constatei que não existe mais a casa 544 onde ele morou. Em seu lugar apenas um edifício modernoso. Nenhuma placa alusiva ao imaginário conde. Do outro lado da rua, um terminal de ônibus e, depois dele, a Praça Espanha com suas palmeiras conversando com o vento, e logo adiante o rio.

No fim da Camacuá, bifurcam-se velhas ruas e, nelas, habitam prédios muito antigos. Por elas certamente andou o jovem Ducasse quando, aos 21 ou 22 anos, retornou a Montevideo para visitar o pai que o sustentava enquanto vivia, estudava às vezes e escrevia na França. Provavelmente nessa época já tinha concluído Les Chants. De sua vida pouco se conhece.

Eu sei muito pouco a respeito do estranho Isidore: a mãe morreu quando ele contava cerca de um ano. Ele gostava muito de ler na ampla biblioteca do pai. É certo que leu os principais autores de seu tempo. Eis o que diz dos Cantos:

Cantei o mal como fizeram Misçkiéwickz, Byron, Milton, Southey, A. de Musset, Baudelaire, etc. Naturalmente exagerei um pouco o diapasão para fazer algo novo em relação a esta literatura sublime que não canta o desespero senão para oprimir o leitor, e fazê-lo desejar o bem como remédio. (Eu cantei o mal...) ²

Era um rapaz alto, magro, vestia-se bem, carregava muitas coisas dentro da cabeça. Coisas pouco corriqueiras, de espantar. Uma revolta contra Deus, e uma náusea de viver e da humanidade que não se sabe qual a origem.

Río de La Plata. photo: jfinatto. vista da Calle Camacuá

O pseudônimo teria sido inspirado pela obra Lautréamont, de Eugène Sue; outros acreditam que significa o outro em Montevideo  (L'autre à Mont (evideo). Um mistério entre tantos.

O seu texto jorra do inconsciente.

Seriam os Cantos a antevisão literária dos tempos sombrios que vinham pela frente com suas guerras sangrentas (Primeira e Segunda Guerras Mundiais, Guerra do Vietnã), tiranias terríveis (Stalin na União Soviética, ditaduras sul-americanas) e violências rotundas contra o ser humano (todos os dias em todas as cidades do mundo)? Seriam a consciência crua e desesperançada da presença do homem na Terra? Quem sabe?

De qualquer forma, alguns o consideram mais importante do que Arthur Rimbaud.

Na livraria Más Puro Verso, na Peatonal Sarandí, comprei uma edição espanhola dos Cantos pra reler no hotel. Não lia Lautréamont há mais de 30 anos.

Depois de não encontrar a morada do fictício Conde, fiquei um tempo observando a expansão azul do rio. Imaginei-o caminhando pelas calçadas, à sombra de escuras paredes, sonhando em fugir da cidade, do mundo, de si mesmo. Mastigando seus desertos e sua triste poesia.

Por fim, entrei num restaurante e bebi um Medio y medio (vinho branco suave, frisante, tradicional do Uruguai), em memória do poeta Lautréamont, morto em solidão e anônimo, às 8 da manhã da quinta-feira, 24 de novembro de 1870, na rua Faubourg-Montmartre, 7, Paris, ninguém sabe de quê, aos 24 anos.
 
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¹Los Cantos de Maldoror - Poesías. Isidore-Lucien Ducasse, Conde de Lautréamont. Editorial Gredos, Madrid, 2004. Introducción por Luis A. de Villena. Trecho da pág. 59.
² idem, pág. 8, tradução livre de JA Finatto. Fragmento de Carta do poeta ao editor Verboeckhoven.
Leia também "Lautréamont y el surrealismo", por Mónica Marchesky:
http://www.monografias.com/trabajos75/lautreamont-surrealismo/lautreamont-surrealismo2.shtml  
Texto revisto, publicado antes em 14 de março de 2015.

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Navegando na Livraria Pocket Store

Jorge Finatto
 
Livraria Pocket Store. photo: jfinatto
 
A Livraria Pocket Store, inaugurada em março de 2019 na rua Félix da Cunha, 1167, bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre, retomou uma antiga tradição de livrarias na calçada. Um espaço de livros e, portanto, de liberdade, afirmando que devemos reconquistar o território público há muito perdido para o medo da violência nas ruas.
 
Essa livraria é um ato/fato civilizatório contra o confinamento das pessoas em shoppings (como se não houvesse mais uma cidade física querendo ser tocada e vivida). É preciso reocupar o espaço comum. Por isso, é com satisfação que vejo o meu Navegador de barco de papel em exposição e à venda nessa livraria. O lugar é bonito, merece uma visita.
 
Na rua onde se situa a Pocket Store, existem cafés com mesas na calçada e gente conversando. Gente, conversas, livros, cafés: boas razões para sair da caverna.
 

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Metrópole à beira-mar

Jorge Finatto
 
 

Antes mesmo de ser lançado, reservei na Livraria Cultura, em Porto Alegre, meu exemplar de Metrópole à beira-mar. O Rio moderno dos anos 20. Da lavra do escritor e jornalista Ruy Castro, a obra oferece um precioso panorama da vida cultural, social e política da cidade do Rio de Janeiro no início do século passado.
 
É um documento rico. Além do texto que se lê com prazer, vale por tirar do esquecimento nomes importantes da arte e da literatura. Entre eles, aparecem com destaque o porto-alegrense Alvaro Moreyra e sua mulher, a mineira Eugenia, primeira repórter brasileira. A casa do casal na Rua Xavier da Silveira, 99, em Copacabana, tornou-se um importante centro de convivência e de resistência cultural e política entre 1918 e 1948.
 
Metrópole à beira-mar vai fundo na investigação, nas descobertas e no entrelaçamento de fatos e personagens. Estou lendo e impressiona a qualidade do material recolhido e o tratamento que lhe foi dado por Ruy Castro (considerado um dos maiores biógrafos brasileiros).
 
O livro não se impõe apenas pela reconstituição de uma época. É objeto de toque pela beleza gráfica, contando, também, com ótimas ilustrações. A bela capa traz uma pintura de J. Carlos, a mesma que ilustrou a capa da revista Para Todos de janeiro de 1927. A publicação era dirigida então por Alvaro Moreyra e J. Carlos. Tenho comigo uma pequena coleção dessas revistas na qual se inclui esse exemplar.
 
É gratificante ver que, entre as fontes de pesquisa utilizadas, está a biografia que escrevi sobre Alvaro Moreyra, lançada em 1985. Tantos anos depois de publicada e esquecida, recebo a referência como um reconhecimento àquele trabalho.
 
Comprei mais dois exemplares e dei de presente no Natal. Os felizardos ganhadores têm uma excelente leitura pela frente. E o Brasil ganhou uma obra notável, que nos ajuda a entender a nossa história e a valorizar a nossa cultura.
 
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Metrópole à beira-mar. O Rio moderno dos anos 20. Ruy Castro. Companhia das Letras. 2019.
Alvaro Moreyra. Jorge Adelar Finatto. Coleção Esses Gaúchos. Editora Tchê. Apoio RBS. Porto Alegre. 1985. 

sábado, 28 de dezembro de 2019

Navegações

Jorge Finatto
 
 

Não gosto de autopromoção e sou péssimo marqueteiro. Em todo caso, vai o lembrete: se alguém se interessar pelo meu recém-lançado NAVEGADOR DE BARCO DE PAPEL (seleção de crônicas, formato pocket book, bom pra ler no metrô, no ônibus, no avião ou sentado na praça), dê sinal através do e-mail do blog. 
 
Aproveito para desejar a todos ótimas leituras nesse 2020 que se anuncia com muitas esperanças (tem que acreditar que vai ser melhor). Que Deus nos proteja do governo e dos que são contra o governo. E olhe pelos de bom coração e bons gestos. E dê uma cutucada nos outros.