quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Proust no Festival de Cinema de Gramado

O Cavaleiro da Bandana Escarlate

photo: j.finatto. magnólias de Gramado. agosto 2013
 

Estava em solidão com o livro (Em busca do tempo perdido) no breve jardim de inverno no meu solar da Praça Maurício Cardoso, na madrugada fria de Porto Alegre, quando ouvi o som do telégrafo no escritório. Sim, ainda tenho um desses vetustos aparelhos (ninguém mais sabe o que é isso). É com ele que me comunico com Passo dos Ausentes.

Quem será no manipulador a uma hora dessas? Ainda há gente viva naquela cidade perdida? - perguntei-me.
 
Pedi licença a Marcel Proust (1871-1922) para ausentar-me um momento. Ele me olhou como quem diz: vá lá, eu tenho toda a eternidade pela frente.

Subi ao escritório e li a mensagem. Era Alberta de Montecalvino*, a Senhora da Biblioteca, me lembrando que nesta sexta-feira, 09 de agosto, começa mais um Festival de Cinema de Gramado, que se estenderá até o dia 17. Trata-se da 41ª edição do evento, que reúne filmes brasileiros e latinos. Mais que isso: a nobre dama me convocou a fazer a cobertura do festival para o blog.

Do meu jeito, claro, com liberdade, inclusive, para não assistir a todos os filmes (quem há de ver tudo?). Eu não consigo. Preciso de um tempo para respirar e admirar as magnólias que brilham nessa época contra o céu azul de Gramado. 
 
Respondi que sim, tenho por norma jamais dizer não ao cinema e à Alberta. Depois, naquela glacial madrugada, voltei ao jardim e comuniquei a meu amigo que teria de viajar, expliquei-lhe o motivo.
 
- Não se explique tanto, vá em paz, meu caro. Na sua volta, estarei aqui, esperando, aliás como sempre faço - disse-me Marcel. Havia nessas palavras muito mais que compreensão: era a ironia proustiana caindo sobre mim.
 
E não pense o leitor que me espantei, pois faço jus à ironia do grande escritor francês. Faz trinta anos que não consigo terminar de ler os sete volumes de Em busca do tempo perdido.
 
Proust por volta de 1900. photo: Sygma/Corbis.
fonte: site do jornal The Guardian**

Deus, é difícil confessar tamanha barbaridade. As páginas dos volumes ficaram amarelas, muitas coisas caíram no esquecimento dentro de mim, meus cabelos ficaram cor de cinza. Minha culpa não tem limites e é ainda maior do que aparenta: sequer recordo quantas vezes iniciei e interrompi a leitura do primeiro volume (No caminho de Swann), na bela tradução de Mario (sem acento, por favor) Quintana.
 
Pois justo agora tinha decidido seguir até o fim. Com o constrangimento habitual, pedi desculpas a Marcel que, com gravata de laço, perna esquerda cruzada, sentado, olhou para o teto, ergueu a mão direita, deixando-a cair em seguida sobre o braço vermelho da poltrona.
 
- C'est la vie, c'est la vie, mon ami, disse ele com visível enfado, baforando a cigarrilha contra a luz do abajur azul. No mesmo instante perguntei se não gostaria de viajar comigo a Gramado. Poderíamos continuar a conversa na serrana cidade, andar pelas ruas, ir a cafés e tavernas, que nessa época se enchem de felinis e mazaropis. Qual não foi minha surpresa com a concordância de Marcel.

Preparei a Yamaha 250 cilindradas (ano 1974), pouca roupa no alforje e parti, partimos, em tresloucada aventura pela BR-116. Marcel veio na carona da moto.
 
E aqui estamos olhando a imensidão do Vale do Quilombo, no hotel, depois de três horas de vento e garoa na cara. No caminho, paramos em Nova Petrópolis para um café com memorável fatia de bolo caseiro, que teve para nós o sabor de uma madeleine proustiana.

Publicado em 1913, No caminho de Swann foi pago com o dinheiro do próprio escritor. É a porta de entrada desta grande, bela e acolhedora casa. Desta vez, vou tentar não decepcionar Marcel. Enquanto o festival não começa, estamos convivendo, varando as noites em busca da memória e do sentido das coisas.

Os filmes que quero ver. O que mais me move nesta empreitada, não vou negar, é assistir aos seguintes filmes:  A Oeste do Fim do Mundo (2013) - Argentina/Brasil (coprodução); Cazando Luciérnagas (2013) - Colômbia; El Padre de Gardel (2013) - Uruguai; Puerta de Hierro - El Exilio de Perón (2012) - Argentina; Repare Bem (2012) - Portugal; Venimos de Muy Lejos (2012) - Argentina.

O cinema que se faz na Argentina, principalmente, e no Uruguai, atualmente, está entre os melhores do mundo. Pretendo acompanhar de perto esses filmes, sem esquecer alguns brasileiros (embora sem levar muita fé, confesso. Tomara que me surpreenda).

E, é claro, não vou perder os curtas, que passam às tardes, gratuitamente, no Palácio dos Festivais. Descobri belos trabalhos entre os curtas nas edições anteriores.

Os pequenos-grandes filmes são a cereja do bolo do festival de Gramado.

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O Cavaleiro da Bandana Escarlate, menestrel medieval e livre-pensador, faz a cobertura do Festival de Cinema de Gramado para o blogue a convite de Alberta de Montecalvino.
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/01/o-conde-de-lautreamont-e-as-magnolias.html

*Alberta de Montecalvino:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/alberta-de-montecalvino.html

**The Guardian:
http://www.theguardian.com/books/2013/feb/07/reading-group-swanns-way
 

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Imagens do Vale do Quilombo

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto

 
Tem início hoje na Universidade de Caxias do Sul, campus da cidade de Canela, a exposição fotográfica Visões do Vale do Quilombo. São 22 imagens que fiz com a intrépida Coruja durante as minhas passagens por Canela e Gramado, onde se situa o Vale, nas idas e vindas a Passo dos Ausentes.
 
São pinturas de quem não sabe pintar, mas gosta de registrar imagens da natureza.
 
photo: j.finatto
 
Gosto de photos que nos transportam para um lugar espiritual.
 
Fotografar, como escrever, faz parte da vã tentativa de dominar o tempo, aprisionar o transitório. A arte é talvez a busca da impossível permanência. Isso de que somos carentes. A brevidade da vida é algo assustador e não está de acordo com nossa ânsia de beleza e eternidade, perceptível em quase tudo que fazemos.
 
Nesta luta entre o rochedo e o mar, a gente faz o que pode. São formas de partilhar a vida.
 
photo: j.finatto

A fotografia só se completa no olhar e no sentimento do observador.
 
Estão todos convidados.

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Exposição de 05 a 31 de agosto, na UCS, Canela. Fone: 054-32825200
 

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

O retorno do pássaro

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 

Eu andava sorumbático e não sabia por quê. Até que me dei conta: estou longe de Passo dos Ausentes há muito tempo. Porto Alegre, pra mim, não é mais um porto acolhedor, é um lugar onde venho cumprir compromissos. E sinto medo.

Há violência, ressentimento, indiferença demais nesse porto que ficou triste.

Quando estou por aqui, uma vez cumprida a obrigação, fico no apartamento, ou então me refugio em sala de cinema, livraria, café. Pouco saio nas ruas.

O que houve entre mim e Porto Alegre? Mudamos, talvez não nos reconheçamos mais como antes. Perdemos a intimidade.

Se ainda sinto amor pela cidade do pôr-do-sol? Como não sentiria? Afinal aqui cheguei num longínquo abril, depois de escorregar entre os pinheiros e as montanhas, durante um grande vendaval. Vim rolando feito seixo que acabou caindo na beira do Guaíba.

O Guaíba foi o irmão que me recebeu de braços abertos.

Muitos anos depois retornei à serra ancestral, reencontrei o lar perdido. Tornei-me outra vez aquilo que nunca deixei de ser, um interiorano. Por isso essa sensação de passarinho caído fora do ninho quando estou longe da casa de madeira e basalto nos Campos de Cima do Esquecimento.

Em suma, parafraseando o velho Sócrates, eu não sei de nada, mas sei menos ainda da vida e de mim quando estou na cidade grande.

Quando você ler estas maltraçadas linhas, raro leitor, eu estarei na estrada, regressando, enfim, pro meu canto no universo. Feliz como pássaro ferido que retomou o vôo.
 

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Visita ao cemitério de Père-Lachaise, Paris

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Père-Lachaise, Paris


Um leitor pergunta-me, por e-mail, o que, afinal, um escritor genial como Balzac (1799-1850) ia fazer no cemitério de Père-Lachaise em Paris. Refere-se ao post de ontem (29/12/12), no qual escrevi que o grande romancista francês costumava freqüentar aquele lugar para meditar e realizar no local o que denominou "estudos de dor".


photo: j.finatto.Túmulo de Proust com carta e vaso de flor

Admirou-se, também, o raro leitor, pelo fato de eu ter passado um dia - um domingo - pesquisando, anotando e fotografando no tal cemitério: "O que pode haver de tão interessante num lugar assim? Não revelará esse gesto certa tendência mórbida do temperamento do cronista?", arrematou.

photo: j.finatto. Túmulo de Oscar Wilde em reforma, acima e embaixo (e os beijinhos)


photo: j.finatto

Não posso falar por Balzac, mas acredito que, atento observador como era, capaz de ir a minudências que passam despercebidas da maior parte dos mortais, as horas vividas no cemitério serviram-lhe de precioso material existencial e reflexivo para escrever sua obra.

Nada como a morte para chamar-nos à vida.

Uma certa melancolia ancestral habita o meu sangue, admito. Esse é um traço anímico de quem nasceu em Passo dos Ausentes como eu. Ninguém vem ao mundo impunemente aqui nos Campos de Cima do Esquecimento, entre gélidas névoas.


photo: j.finatto. Túmulo de Balzac

Mas ainda não chego ao ponto de fazer excursões a cemitérios por causa disso. Longe de mim! A morte é, entre os fatos naturais, o que me causa maior aversão e desgosto. Não existe entre mim e ela amizade ou encantamento possível.

Visitar cemitérios, portanto, não é um passeio que, de regra, me agrade, pelo contrário. Além disso, procuro sempre evitar tais visitas, pois, como diz aquele sábio ditado popular: "quem não é visto não é lembrado".


photo: j.finatto. Túmulo da escritora Colette

Uma visita ao Père-Lachaise tem valor cultural. É um giro pela história da arte e da cultura. E uma visão impressionante da transitoriedade de tudo nesse mundo. O destino final de todos os esforços, caprichos, alegrias, dores, sacrifícios, preocupações e vaidades.

Ali estão os túmulos de alguns dos principais artistas, escritores, filósofos e cientistas que marcaram a trajetória humana. As inscrições tumulares dão alguma notícia do que fizeram. Na portaria, o interessado pode pegar um impresso com o mapa das sepulturas contendo informações sobre os ilustres falecidos.


photo: j.finatto. Túmulo de Gilbert Bécaud

Também é possível observar a reação das pessoas diante da morte de personagens famosos (e outros nem tanto), os estudos de dor, de que nos fala Balzac. Cartas, bilhetes, livros, flores, velas, objetos diversos são colocados nos túmulos.

Mas nenhum dos habitantes do Père-Lachaise é alvo de tamanha manifestação de afeto como Oscar Wilde, cujo túmulo foi coberto por marcas de beijos com batom ao longo do tempo. Sobre o assunto escrevi Oscar Wilde: o beijo proibido.*


photo: j.finatto. Père-Lachaise

Estão sepultados no Père-Lachaise, entre tantos: Chopin, Édith Piaf, Yves Montand, Proust, Jim Morrison, Paul Éluard, Sarah Bernhardt, Maria Callas, Isadora Duncan, Allan Kardec, Camus, Gilbert Bécaud, Molière, Champollion, Modigliani, Pissarro, Dalacroix, Max Ernst e por aí vai. É um panteão a céu aberto. Vale a pena uma visita (não recomendável para pessoas impressionáveis).


photo: j.finatto. Père-Lachaise
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Oscar Wilde: o beijo proibido:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/12/beijo-proibido.html

Fotos de novembro de 2011.
Texto revisto, publicado antes em 30.12.12.

domingo, 28 de julho de 2013

T.S.Eliot, Deus e as coisas boas da vida

Jorge Adelar Finatto

photo: T.S. Eliot
 

Uma carta do poeta T.S. Eliot (1888-1965), publicada na edição de julho deste ano da revista Serrote (nº 14), que acaba de chegar às livrarias, evidencia a religiosidade de um dos grandes autores do século XX. Nela o escritor considera Deus uma presença fundamental em sua vida.

Eliot nasceu nos Estados Unidos (St. Louis, Missouri) e fez brilhante carreira literária na Inglaterra, adotando a cidadania inglesa em 1927. Por sua obra, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1948.

Num tempo em que o ateísmo ou a desconsideração de Deus é pensamento dominante nos meios intelectuais, a manifestação de Eliot, um dos grandes poetas de língua inglesa de todos os tempos, escapa ao "intelectualmente correto", abordando sem reservas sua crença.

Fugindo da concepção que nega a existência de Deus, ou que sequer leva o assunto em consideração (como se fosse coisa de indivíduos ignorantes e pouco dotados mentalmente), Thomas Stearns Eliot afirma sua fé com convicção, de forma tranqüila, sem pretender impô-la a ninguém.
 
A carta foi escrita em 18 de setembro de 1927, um domingo à noite, tendo como destinatário Geoffrey Faber, escritor e editor, fundador da editora Faber & Gwyer (depois Faber & Faber), para a qual Eliot trabalhou durante muitos anos.

Publicada na Serrote com o título As coisas boas da vida, traz o entendimento do poeta no sentido de que a apreciação das coisas boas da vida depende do alcance de cada um, do grau de bondade de cada um, "minha própria apreciação (...) é intensificada por minha consciência de Deus", e acrescenta:
 
"Por exemplo, se alguém toma as relações humanas (ou, ainda, melhor, a relação homem/mulher) como seu maior bem, afirmo que isso acabará em desilusão e engano. Mas se duas pessoas (digamos um homem e uma mulher que mantêm uma grande intimidade) amam Deus ainda mais do que um ao outro, então ambos desfrutam maior amor um pelo outro do que se não amassem a Deus.

"(...)  O amor de Deus substitui o cinismo, o qual, de outro modo, é inevitável em qualquer pessoa racional, pois as relações com amigos e amantes, apartadas do amor de Deus, sempre, em minha experiência, acabam em desilusão e engano. Ou as pessoas o decepcionam, ou você as decepciona, ou ambos: nenhuma relação humana é, em si mesma, satisfatória" (p.238).*
 
Não me recordo de ver a questão de Deus colocada de forma tão lúcida e clara no âmbito das relações humanas. Não imaginava encontrar semelhante visão a um só tempo existencial e espiritual no autor do belo poema A terra devastada, traduzido no Brasil, com excelência, por Ivan Junqueira, com o título de A terra desolada, no livro T. S. Eliot, Poesia (com introdução e notas), Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.

O tema é particularmente importante nos dias de hoje, quando tanto se despreza a dimensão da espiritualidade na vida das pessoas, preferindo-se o indivíduo isolado no egoísmo, separado dos outros, valendo por si, contra tudo e contra todos, sem limites na busca de prazeres e bens materiais.

Não vou tirar o prazer do leitor de ler na íntegra a carta nas páginas da Serrote, de ruminar e extrair suas conclusões. Trata-se de um rico documento. Digo apenas que, por mim, a revista poderia ter apenas esse texto e já estaria plenamente justificada. Mas tem muito mais. É ler ou ler.


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O crédito da photo de T.S. Eliot será dado tão logo conhecida a autoria.
* Tradução de Thiago Lins
 

quinta-feira, 25 de julho de 2013

O gato no escritório

Jorge Adelar Finatto

 
photo: j.finatto
 

Anda comigo, vai onde eu vou, dorme e acorda a meu lado um gato invisível. O pelo azul claro e brilhante ofusca quando o vejo caminhando ao sol. Os dentes afiados, brancos, aparecem na intermitência do bocejo. O gato nasceu no mesmo dia em que eu nasci e nunca mais me abandonou. Gosta de ficar sentado na janela da minha solidão.
 
Não é um gato de raça conhecida. É um tipo que não se encontra nos livros nem no google. Ele apenas está por perto, sua presença é como a extensão da minha sombra.
 
Às vezes, quando me distraio, ele some no ar. Se começo a pensar na passagem do tempo, no sumidouro do calendário, na vida por levar, nos problemas sem solução, ele torna a surgir numa mansidão de fazer inveja. Costuma deitar sobre o tapete do escritório, ao pé das estantes. Enquanto me esfalfo trabalhando ele ronrona.

Como os gatos em geral, o meu gato é muito silencioso. Toda vez que tento pegá-lo ele desaparece e surge noutro lugar. Não se deixa acariciar. Não come, não bebe leite nem água. Raramente mia, e quando o faz é um miado infantil. O bichano não caça mas às vezes sonha que está correndo e pulando atrás de coloridas borboletas pela casa.

Não sei se alguém enxerga o meu felino. Não costumo conversar sobre isso, porque é difícil falar de um ser como ele. Muitos dirão que estou inventando (a falta de imaginação está acabando com a graça das coisas). Alguns só acreditam naquilo que podem tocar, comprar e levar pra casa, em nada mais.

O mundo materialista em que se vive virou as costas para o invisível. Esse é um dos problemas da humanidade. As pessoas perderam a fé. A maior parte das coisas que valem a pena não se vê e não se toca. Alguém já pegou um sentimento com as mãos? E, no entanto, não existe nada mais forte e real.

Ninguém, em tempo algum, conseguiu segurar na mão uma única cor do arco-íris. Muitos quiseram, eu mesmo tentei várias vezes, mas não tem jeito. O raio de luar é uma coisa branca, suave como uma seda que ondula ao vento, mas ninguém põe a mão.

E os sonhos só se entregam a quem busca algo além da realidade tangível. Quem sonha habita um mundo que ainda não existe, mas que poderá vir a ser.

O meu gato faz parte desse universo invisível e essencial. Tem uns olhos amarelados e miúdos. E deixa na casa, e dentro de mim, um gosto morno de infância e novelo de lã.
 

terça-feira, 23 de julho de 2013

A breve carreira militar

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 

A - este é o nome do nosso singelo personagem - foi reprovado no exame físico do Exército. Era na década de 1970, em plena ditadura militar. Alguém teve a infeliz idéia de mandar que tirasse os óculos. Depois que os retirou, passou a ouvir vozes e enxergar vultos. Aquele período de dois dias no quartel foi o tempo que durou a carreira militar de A.
 
Na verdade, ele queria ingressar na Marinha do Brasil. Os filmes de pirata e de guerra naval haviam plantado este sonho em seu imaginário. Sempre gostara de aventuras pelos mares do mundo. Mas um amigo disse-lhe que se ele se alistasse na Armada teria de permanecer pelo menos cinco anos, longe de tudo e de todos. Por mais que quisesse ser marinheiro, isso estava fora de cogitação.
 
A imagem mais marcante que guardou na memória de sua célere passagem pelo Exército foi a do encontro entre um oficial e os dispensados numa sala. O militar olhou-os com desalento. Perguntou o que achavam que deveria ser feito com eles.

A quase maioria respondeu que estava preparada para fazer o serviço militar. Era sem dúvida um pelotão de bravos. O oficial disse, então, com delicadeza, que o certo era colocá-los dentro de um caminhão e depois atirar todos dentro do Guaíba.

Houve um certo desconforto entre os intrépidos guerreiros.
 
- Vocês não servem pra nada. Vão embora antes que eu me arrependa e chame o caminhão.
 
A voltou desanimado para casa, para a insossa vida civil que o aguardava (tinha só 18 anos). Voltou sem uniforme, sem divisas, sem histórias pra contar e sobretudo sem a admiração dos amigos de rua. Voltou, enfim, como partira, apenas um cara comum, sem eira nem beira, com a vida por levar num país injusto, esculhambado e violento, sem perspectiva para gente como ele.