quarta-feira, 8 de novembro de 2017

O som das asas da borboleta

Jorge Finatto

photo: jfinatto

 
PROCURO UM LUGAR de silêncio para apascentar a solidão.

Um lugar na montanha, bom de estar com um chapéu velho, um capote e um livro. 
 
Um lugar pra domesticar o extravio.

Longe de tudo, perto de todos.

Habitado por pássaros,  flores e um córrego.

Um lugar onde o único rumor do mundo seja o som das asas da borboleta.
 

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

É preciso recomeçar tudo

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

É preciso recomeçar tudo
traçar o novo amanhecer
nas ruas da cidade

é preciso enterrar os mortos
varrer os destroços
abrir as portas para o sol
fazer seu trabalho

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Poema do livro O Fazedor de Auroras. Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
 

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Cais

Jorge Finatto
 
photo: j.finatto
 
 
Tem dias que saímos
com o corpo nu
para alojá-lo na primeira copa de árvore
e chorar longe dos homens

dias em que os desejos
até os mais secretos
sucumbem apagados
na penumbra

tempo de total privação
da carne e do sonho
tardes em silêncio reveladas
intervalo entre dois mundos

olhamos o céu
no quadrado da janela
esperando ver a face de Deus
procuramos Deus
no íntimo da alma e das coisas

 
precisamos repousar no colo de Deus
sentir suas mãos nos olhos
para amparar a lágrima quente
que por ali verte

tem dias que estranhamos
o próprio olhar
que amanheceu mais seco
não reconhecemos a rua
onde tantas vezes inventamos o amor
na sombra dos cinamomos

as melhores viagens
ficaram sonhando no cais
enquanto navios partiam
repletos de homens decididos
em busca de cidades felizes

onde andará o menino
que nos visitava nos dias
em que tudo em volta
parecia desabar?

em que gare deserta
se perdeu o guarda-chuva melancólico
com que meu avô ia à cidade
buscar a porção diária de pão
esperança
e jornal?

tem manhãs em que apesar do sol
não habitamos o claro sentido
de existir
mal percebemos a luz
acalentando o corpo

manhãs em que o carteiro
extravia a carta que irá nos salvar
a notícia tão esperada
que nos revelará
um mundo desconhecido
onde pandorgas falam
e o arco-íris é uma escada
que nos retira do poço

não compreendemos
as mãos cansadas
a boca amarga
com que damos bom-dia aos vizinhos
cumprimentamos os superiores

tem dias que o isolamento
é tão assombroso
que sentimos tristeza em tudo
principalmente na alegria ingênua
das velhas fotografias
uma dor inevitável
diante dos sonhos da infância

dormimos em quartos de aluguel
projetamos ataúdes de aluguel
as dívidas invadem a porta
os poros

o amanhã ficou torto
na cordilheira dos dias
sem luz

a cidade parou no escuro
sufocou nossos melhores anos
inundou o rio
com seus maus óleos
seu excremento

não merece um verso
sequer uma notícia fugidia
em página de jornal

talvez careça uma bomba
um terremoto
talvez uma flor
povoando o asfalto

estamos um pouco mais tristes
e calados
(um pouso só)

trazemos um gosto de sol
entre os dentes
um resíduo de primavera
na palma da mão
uma promessa de encontro
nos olhos

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Do livro O Fazedor de Auroras, Jorge A. Finatto, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
photo: Cais de Porto Alegre

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Drummond, afeto que não se apaga

Jorge Finatto
 
Drummond. autor: Stefan Rosenbauer. O Globo, 17/12/2016

E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.
Carlos Drummond de Andrade no poema O Sobrevivente.
 

O JOVEM LEITOR afeiçoou-se ao poeta. Compartilhou com ele, mais do que palavras, a viva vida que elas expressavam. E como diziam coisas as palavras do bardo itabirano!
 
Havia entre poeta e leitor uma secreta cumplicidade. Um andar juntos pelo mundo. Uma troca de confidências, alegrias, queixas, protestos, malquereres, desertos, amores e esperanças. O invisível amigo percorria com o jovem os duros caminhos do mundo.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) será sempre o lúcido, o lírico, justo enlace razão-emoção, construtor de versos indeléveis na língua universal da poesia. Enquanto houver livros e leitores, Carlos Drummond será sinônimo de altíssima poesia e claro pensamento.

O ser-no-mundo, às vezes cambaio, às vezes indescritivelmente só, mas sempre solidário em sua humana caminhada.

O poeta não se esquivava e respondia as cartas que lhe chegavam todos os dias. Generoso, sabia colocar-se, não acima, mas ao lado do leitor que o procurava ávido por um contato, mínimo que fosse. Respondia com incomum e delicada atenção as missivas.

Quando escrevia na resposta o nome do jovem missivista, manuscrito com tinta azul na folha branca, retirava-o do anonimato, reconhecia-lhe a existência, tratava-o como um semelhante. Sábio e sensível ao outro, ele sabia que o poema só existe quando desvelado aos olhos do cúmplice leitor. As duas cartas que dele recebi são, para mim, verdadeiras relíquias literárias e sentimentais emolduradas na parede do escritório.

Drummond fez um imenso bem à minha alma, aos meus jovens dias e aos dias que vieram depois. Neste 31 de outubro, em que se comemoram seus 115 anos de vida (vida estendida no testamento da palavra), renovo a emoção de abraçá-lo com o coração. Invisível afeto que o tempo não apaga.

"No mar estava escrita uma cidade". verso do poeta na escultura da Av. Atlântica, Rio de Janeiro
 

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Sumiço

Jorge Finatto
 
nuvens: photo: jfinatto
 

NÃO SEI COMO nem por que a janela onde apareciam os amigos do blog (seguidores) desapareceu da página. Não me tomem por ingrato, o sumiço aconteceu simplesmente e fiquei órfão daqueles raros leitores.  
 
Assim como a janela fechou-se sem mais aquela, espero que volte a abrir e que volte em breve. Não como aqueles maridos que um dia saem de casa dizendo que vão comprar cigarro no boteco da esquina e retornam ao lar 25 anos depois como se fosse ontem. Aí não dá. Se alguém tiver ideia do que fazer, mande um e-mail ou comentário.*

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* Em 7 de novembro (anteontem) a janela voltou.
 

sábado, 28 de outubro de 2017

Un amore

Jorge Finatto

photo: jfinatto
           
             La speranza di pure rivederti                             
             m'abbandonava.                                                          
                                    Eugenio Montale


No mais remoto deserto
- o sal e o labirinto do tempo
amadureço o poema

E parece que para encontrar-te
tinha de perder-te um dia

Colho no caminho as pétalas
da rosa que não te dei
e distraída desfolhaste

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Poema do livro O Fazedor de Auroras, JFinatto, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Tradução livre do verso de Montale: A esperança de ver você de novo me abandonava.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Elegia 1975

Jorge Finatto

photo: j.finatto
 

O VENTO não traz
notícias de longe

todos foram dormir
depois do vinho
 
só nós permanecemos

incomunicáveis
debaixo das estrelas
e do frio

um que outro fantasma passa
fugitivo na calçada
não perguntamos pela vida
passada ou futura

habitamos cada momento
com olhos de prisioneiros violentados

escutamos o silêncio que vem do rio


a fome imensa de liberdade
que nos anima e nos faz fortes
na tempestade que nos enlaça
nos joga contra a parede

nosso rosto parece
ao de toda gente
mas trazemos
segredos inviolados
noites de lobos feridos

olhamos a cidade morta
nenhum anjo nos acalanta


estamos vivos
e nunca doeu tanto

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Do livro Claridade, coedição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.