segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

O caso da enciclopédia

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


COMO A CASA da serra está cheia de livros, um dia desses fui aconselhado pela família a me desfazer ("desapegar") daqueles que não interessam mais (livros há muito lidos, esquecidos, que não pertencem ao grupo dos "essenciais").
 
Providência, aliás, que tomei há um ano, separando duzentos e alguns livros para doar, a décima parte do acervo. Só que ainda não tive coragem de concretizar o gesto, porque a cada olhar retiro os que, pensando bem, merecem ficar. E, assim, cada vez que olho a pilha, retiro alguns, diminuindo o desapego. 
 
Sabendo da minha dificuldade em "desapegar", alguém da família teve a gentileza de retirar de uma estante, e acomodar sobre a escrivaninha, a velha Enciclopédia Barsa. Quando, ao regressar de viagem, entrei no escritório, dei com aquele quadro (para mim) "dantesco".
 
Pra quem não sabe, as enciclopédias eram o Google de antigamente. A elas se recorria para pesquisar e realizar estudos nas mais diversas áreas do saber e da cultura. Eu comprei a Barsa com sacrifício, pagando em prestações. Além dos volumes, com bonita encadernação em vermelho, havia os "livros do ano" que traziam as atualizações.

Aquela enciclopédia, há quase quarenta anos, me deu esperança de dias melhores para meus filhos. Acreditava, como ainda acredito, no estudo e no conhecimento como ferramentas para construir caminhos.

Como poderia me desfazer de algo com tanto significado? Resumo do caso: pedi que recolocassem a Barsa no lugar. Não estou em condições de fazer o desapego...

Numa espécie de codicilo verbal, disse que, quando fizer a passagem, podem fazer da Barsa o que quiserem. Mas, por enquanto, ela fica, assim como os demais livros que me ajudaram e ajudam a viver. Porém deixo claro: se vier um pedido de doação para escola ou outra instituição, poderei doar com prazer.
 
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Texto revisado, publicado antes em 12 de julho 2018.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Flor da coragem e da esperança

 Jorge Finatto

photos: jfinatto


Enfim o velho cáctus exibiu a sua bela flor, que nasce ao anoitecer, avança pela madrugada e morre aos primeiros raios do Sol.
A flor do cáctus, ou flor da noite, dama da noite ou flor de mandacaru, para além de sua formosura e seu perfume, simboliza a coragem, a força e a esperança do povo nordestino, e por extensão do povo brasileiro, na sua luta por uma vida digna, contra a violência social manifestada na pobreza, na fome, na injustiça, na desumanização e no desespero.
Ver a flor da noite traz paz e resiliência ao coração e nos fortalece para a luta de cada dia.
(A ideia de fugir de tudo e ir viver no mato não está mais em questão, até porque estão botando fogo na floresta e matando quem vive lá. Faz tempo.)



terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Sentimento da rosa

 Jorge Finatto


hoje após a chuva. foto: jfinatto

Uma rosa não se explica, não se traduz. A rosa fala por si mesma e seu perfume vale uma fábrica de fragrâncias de laboratório. 

A rosa vive para falar com os vivos, embora muita gente leve-a a conversar com mortos nos cemitérios. É a flor entre flores e não se deixa apanhar sem tristeza. 

Quando arrancam uma rosa, o mundo perde um pouco a graça. Talvez por isso, e pela brutalidade geral dos dias de hoje, haja tão pouca leveza e encanto nas almas. 

A rosa do meu jardim eu não arranco: sinto.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Promessa do Sol

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


Estou vivo e lúcido

na tarde da América do Sul

entre palmeiras verticais
e andorinhas azuis

entre o que restou do teu jeito
e a promessa generosa do sol
batendo na minha cabeça

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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

sábado, 21 de janeiro de 2023

O tempo das bonecas

 Jorge Finatto

Castelinho Caracol, Canela. photo: jfinatto

O tempo das bonecas ficou esquecido no sótão. Elas conversam e brincam entre si numa língua só delas.

Sabem que suas donas não voltarão, e às vezes choram.
Mas todo dia o Sol irradia entre as velhas telhas, botando a sombra pra correr.
A vida silenciosa e imóvel é iluminada, espantando um pouco a melancolia.
O mundo do sótão é um mundo de memórias e suspiros.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Maria Madalena

 Jorge Finatto

photo: Lugano, Suíça, j.finatto

Maria Madalena teve o privilégio de ser a primeira pessoa a ver Jesus após a Ressurreição. Nenhum dos apóstolos teve essa ventura.

Havia nas cercanias do lugar onde ele foi assassinado (Monte Gólgota, Jerusalém) um jardim e, neste, um túmulo novo ainda não usado. Foi nele que o sepultaram José de Arimateia (discípulo secreto de Cristo, homem influente e rico) e Nicodemos, envolto o corpo em fino linho.
Enquanto ela chorava diante do túmulo, onde o corpo não estava mais, Jesus apareceu-lhe. Era de manhã muito cedo. Num primeiro momento ela não o reconheceu. Até que ele diz: "Maria!". E a alegria de Madalena é infinita. Em lágrimas, ela toca o Senhor levantado dos mortos. Ele então lhe fala:
- Para de agarrar-te a mim. Porque ainda não ascendi para junto do Pai. Mas, vai aos meus irmãos e dize-lhes: "Eu ascendo para junto de meu Pai e vosso Pai, e para meu Deus e vosso Deus".
Impressiona o amor de Maria Madalena por Cristo e o sentimento que os unia. Ele tinha expulsado sete demônios dela e a partir de então ela passou a segui-lo e amá-lo, segundo o relato bíblico.
Em sua passagem pelo mundo, Jesus mostrou-se um ser espiritual num corpo humano. Um ser que valorizava por demais o afeto. Daí ter proclamado a importância de amarmos ao próximo como a nós mesmos. Teve o amor como algo primordial e urgente.
Relendo os quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João), dei-me conta de que, durante a vida, assim como nas horas finais e na Ressurreição, Cristo foi sempre acompanhado de perto, modo amoroso e atento, por mulheres.
O aparecimento de Jesus a Maria Madalena é revelador disso. É prova de gratidão e de um grande carinho. Mostra que ele não era indiferente à presença feminina em sua vida, mas tinha-a em elevada consideração.
Não há informes sobre Maria Madalena (da aldeia de Magdala, cuja existência foi comprovada por recentes escavações em Israel), além dos Evangelhos. Sabe-se, por exemplo, que assistiu a Cristo e aos apóstolos com seus bens como outras mulheres também o fizeram (Lucas 8: 1, 2, 3).
Quem foi essa mulher? O que fez e como viveu? Que momentos luminosos compartilhou com Jesus? Como se passaram seus dias depois da morte de seu amado Senhor? São mistérios a desafiar interpretações e especulações.
Uma coisa, contudo, parece certa: por ser quem era, e pelo seu imenso amor, ela conquistou o coração de Jesus.

sábado, 7 de janeiro de 2023

Todos os dias

 Jorge Finatto


jfinatto


"A vida de todos os dias, a que eu sempre quis." 

            Do meu livro Claridade, 1983.

A todos muitas claridades nesse 2023. Ninguém "Do lado de fora", lembrando livro do querido amigo Henrique do Valle.