domingo, 1 de abril de 2012

Clube da Esquina: 40 anos

Jorge Adelar Finatto


O disco Clube da Esquina completou 40 anos. Lançado em março de 1972, não foi apenas mais um disco: revelou, deu forma a uma nova sensibilidade que andava calada nos corações e nas cabeças. Um acontecimento estético e sentimental que trouxe uma aragem de esperança  e liberdade num período muito difícil da vida brasileira, de ditadura militar e luta armada. Reproduzo, em memória, texto sobre o Clube publicado em 13 de março de 2010.

O que nos dizia o Clube da Esquina no vendaval das nossas vidas pequenas e massacradas na década de 1970? Dizia que era possível ir muito além da pobreza material e espiritual daqueles dias. Dizia que valia a pena acreditar na amizade, no encontro, na ousadia, na transgressão do ódio e da hipocrisia.

Mostrava que nada podia amputar nossos sonhos, nossa criatividade. A vida podia e devia ser bonita.

O Clube da Esquina não tinha carteirinha, nem endereço, tampouco piscina e sede campestre. Era um lugar espiritual onde as pessoas se reuniam em qualquer dia, qualquer hora, qualquer estação do ano. Os sócios espalhavam-se pelo Brasil.

A senha dos frequentadores do Clube estava no jeito, no olhar, no modo de ser, na amizade verdadeira, na busca.

Muitos construíram saídas existenciais frequentando o Clube da Esquina. Ali se cultivavam encontros, pomares de alegria, viveiros de afeto. Um modo novo de olhar a vida num país que tinha perdido o encanto e a esperança.

Uma maneira diferente de traduzir essa coisa tão velha que é o indivíduo estar no mundo, mergulhado numa paisagem sombria, sob sol e chuva, e seguir adiante, apesar de tudo.

Construções melódicas e letras inusitadas, instigantes, sensíveis, tão diferentes do que tinha sido feito até então.

O fundo musical da minha adolescência foi inventado pelo Clube da Esquina, de Milton Nascimento, Lô Borges e companheiros de estrada. Estamos falando dos anos 1970. O famoso clube mineiro vinha dos anos sessenta, quando Milton tinha vinte e poucos anos e havia feito músicas eternas como Travessia (em parceria com Fernando Brant) e Morro Velho, que chamaram a atenção do mundo.

O Clube da Esquina, disco lançado em março de 1972, trazia um recado urgente. Era uma música nova, numa época difícil. As portas estavam fechadas para a juventude. Os ares das montanhas de Minas Gerais, o sertão, as veredas, as paisagens de concreto, vidro e aço das grandes cidades, a loucura da história, tudo vinha junto nas canções. O antigo e o moderno.

A impressão é que nada de importante escapava dos integrantes do Clube. Eram poetas lúcidos e líricos, profundamente brasileiros, latino-americanos, um canto universal.

Havia no trabalho daqueles jovens músicos e compositores muito de cinema, leitura de filosofia, literatura, conhecimento da arte em geral, que os levava a uma reflexão atual sobre a vida, a risco, a céu aberto. O paredão da censura e do medo não lhes caía bem, o grupo rejeitava com coragem esse tipo de interferência.

Eu estudava com meia bolsa numa escola particular de Porto Alegre, na qual havia filhos de famílias das classes média e alta. Quando vim a ter a minha primeira jaqueta Lee, americana, esse vestuário já saíra de moda.

Sempre estive fora de moda naquela escola. Ir todos os dias pra casa, no bairro distante, no ônibus velho e lotado, era de certa forma um alívio. As pessoas mais afortunadas não conseguem esconder certa estranheza diante dos pobres, quando eles entram no seu ambiente.

Mas a leitura e a música, duas coisas relativamente acessíveis, abrem caminhos ensolarados.

No Clube da Esquina não se barravam pessoas pela classe social ou qualquer outra. Aprendi a olhar nos olhos dos outros, sem ter vergonha de ser pobre e não ter as coisas materiais que, para muitos, são importantes. Havia outras riquezas.

Foi um amigo da escola, filho de militar de alta patente do Exército, quem comprou o primeiro Clube da Esquina. Me convidou para ouvir o disco. O cara tinha até um quarto só pra ele! Passamos muitas tardes de nossas vidas de adolescentes dentro do Clube.

Podíamos, então, sair em viagem com O tem azul (Lô Borges e Ronaldo Bastos):

Coisas que a gente se esquece de dizer
Frases que o vento vem às vezes me lembrar
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Na canção do vento não se cansam de voar
Você pega o trem azul
O sol na cabeça
O sol pega o trem azul
Você na cabeça
O sol na cabeça

sexta-feira, 30 de março de 2012

Antonio Tabucchi

Jorge Adelar Finatto

photo de Tabucchi, 2008. Autora: Rebeca Yanke. Wikipédia

No tempo deste infinito mínimo, que é o intervalo entre o meu agora e o nosso então, lhe digo até logo e assobio Yesterday e Guaglione.*

Antonio Tabucchi

Amar um escritor é amar as suas palavras.

A morte não se cansa de levar embora os bons. Gente má parece durar uma eternidade. É a conclusão a que chego ao olhar os escritores e artistas que partiram somente nesse começo de ano.

No último domingo, 25 de março, em Lisboa, foi a vez do escritor italiano Antonio Tabucchi, 68 anos. Ele sofria de câncer. É considerado um dos grandes autores da literatura europeia. Mantinha há muitos anos uma forte ligação com Portugal, sendo admirador apaixonado, estudioso e tradutor da obra de Fernando Pessoa para o italiano. 

Casado com uma portuguesa, vivia períodos do ano em Portugal. Também era professor na Universidade de Siena, Itália, onde ensinava Língua e Literatura Portuguesas.

Escrevia regularmente na imprensa e era um corajoso defensor da liberdade de expressão. Escreveu, entre outros, o romance Afirma Pereira, de 1994, que foi adaptado para o cinema, tendo Marcello Mastroianni no papel principal.

Em 2011, Tabucchi desistiu de participar da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), como convidado especial, em protesto diante da decisão do Governo e da Justiça brasileira em não extraditar Cesare Battisti para a Itália, onde deveria cumprir condenação criminal (prisão perpétua) por assassinatos praticados naquele país.

A Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, programou a leitura integral de seu livro Requiem, para o dia 02 de abril próximo, a partir das 10h30. Trata-se do único livro que escreveu em português, uma homenagem a Lisboa e a Fernando Pessoa.

No final da leitura, será lançado o mais recente livro do escritor, O tempo envelhece depressa. A editora Dom Quixote informa que restou um livro inédito do autor.

Antonio Tabucchi, sim, um escritor que se fez amar por suas palavras e respeitar por gestos também.

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* Os voláteis do beato Angélico, p. 46, Antonio Tabucchi, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2003. Tradução de Ana Lucia Belardinelli.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Seco

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto



Secos pássaros dormem em ressequidos galhos. Secas folhas de plátano se agitam contra o azul. Manhã silenciosa, bailarina morta na caixa de música, seca, enferrujado relógio de parede, retratos na gaveta, tudo seco.
 
Secaram as lágrimas na face do vento.

Coração seco, boca seca, mão seca. Secas palavras. Secas pétalas de camélia vermelha dispersas no chão da praça. Seco, seco.
 
Secou a ponte que unia os amantes, inundava-os com a urgente carícia. Secaram as velas das faluas do Tejo.

Os olhos que olhavam o pôr-do-sol no Guaíba secaram, secaram.

Secos homens invadiram as ruas secas da cidade, cometeram tristes barbaridades.

O milharal, tão seco, pegou fogo.

Sentimento e pensamento, secos. O sexo ficou seco. As páginas do livro de poemas por escrever, secas, secas. Medo seco

Seco olhar observa do fundo do espelho.

A ternura, a ternura, um rio seco, secou dentro do coração.

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Texto revisto, publicado em 23, maio, 2011.

terça-feira, 27 de março de 2012

Uma livraria perto das nuvens

Jorge Adelar Finatto

photos: j.finatto


São Francisco de Paula é uma pequena cidade, na região dos Campos de Cima da Serra, no Rio Grande do Sul. A população beira as 20 mil almas. A paisagem é única no mundo, nunca vi nada parecido, nem nos livros, nem em viagens.


Os campos ondulam lentamente em todas as direções, encimados por bosques de pinheiros, atravessados por córregos, cortados por largas escarpas de basalto, a cerca de mil metros acima do nível do mar. Cachoeiras surgem de repente em meio ao verde. Faz muito frio no inverno, a temperatura média anual é de 14 graus.


Um dia desses descia eu de Passo dos Ausentes (1800 metros de altitude), quando resolvi parar em São Francisco para um cordial café. Eis que numa esquina avistei o enorme casarão.


O nome da livraria é Miragem. Uma quimera perto das nuvens, cheia de livros, objetos de arte, artesanato e um belo café, tudo resumido em dois mil e duzentos metros quadrados.


Uma descoberta assim a gente não deve guardar para si, seria egoísmo. Entrei para ficar uma hora, fiquei quatro. Há bancos de madeira entre as estantes para o visitante descansar, ler ou mesmo cochilar. Através das grandes janelas se vê o sol de outono lá fora. Minha obsessão por relógios foi plenamente recompensada, pois os há em abundância, de todos os tipos, espalhados nos quatro andares do prédio.

Um fragmento da antiga Biblioteca de Alexandria foi parar ali em São Francisco. Alfarrábios convivem com títulos modernos, o velho e o novo se misturando como convém, organizados por áreas e salas. Enfim, se eu fosse fazer uma livraria, acho que seria parecida com a Miragem, que surge como um remanso espiritual no deserto em que vivemos, aqui e em toda parte.


Saindo-se para o pátio da livraria (sim, a livraria tem um pátio), encontramos um amplo anexo para apresentações e leituras públicas. Na fachada consta a data de 1918. No meio do pátio, um plátano ainda jovem e variadas plantas.


No lado oposto ao anexo, o café com suas mesas e cadeiras de madeira, como antigamente. O cappuccino é dos melhores e tem pouca acidez. Os bolos caseiros são olorosos e irrepreensíveis. O único refrigerante vendido no local leva o nome de hidromel, feito de uma mistura de água e mel, fermentada, levemente gaseificada.

Se os dois leitores do blogue querem uma sugestão de livraria, está aí. Como se não bastasse, São Francisco de Paula fica no caminho para Passo dos Ausentes, que vem depois, a nordeste e mais acima, nos Campos de Cima do Esquecimento.




domingo, 25 de março de 2012

Menestrel virtual

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


O blogueiro é como o menestrel de antigamente. Leva na mão o alaúde. Entrega seu verso e sua prosa a quem quiser, em troca de um pouco de atenção.

Escrever num blogue tem virtudes. A principal delas é, talvez, evitar a derrubada de árvores para publicação de livros. O blogue se constrói no meio imaterial, não agride a natureza. É abstrato como um fantasma.

Ninguém cheira nem toca as páginas do blogue. Nesse sentido (como em muitos outros), o livro é insubstituível. A utilização do ambiente virtual é uma necessidade e uma saída diante da profusão de pessoas que estão escrevendo.

O autor do blogue pode alterar o que escreveu a qualquer tempo, e isto é importante para melhorar a qualidade do texto (principalmente em se tratando de blogue literário). O texto está em permanente construção.

No momento em que se pressiona a tecla "publicar", o conteúdo vai para o espaço infinito e pode ser lido por qualquer habitante deste e de outros planetas.
 
A solidão compartilhada dá um sentimento de companhia na dura vida da escrita.

Haverá, de fato, leitores interessados no que escrevemos? Ninguém sabe. Eu pelo menos não sei. O que importa é que o recado está na rede. As palavras estão à procura de quem as leia e, quem sabe, também as ame.

O blogueiro, tão parecido com o ancestral troglodita, vive ruminando e anotando na sua caverna virtual, em busca de comunicação.
 
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Texto publicado em 9 de outubro, 2010.
 

quinta-feira, 22 de março de 2012

Vida bonsai

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
    
A `A a´´´´´ á ``a~a~a~a

Escrever é devorar o mundo com palavras.

á~â ``a  á`a

O escritório é um lugar silencioso, recolhido. O mapa das viagens sonhadas e nunca realizadas repousa sobre a mesa, cheio de anotações.

Alguns cravos vermelhos respiram na terra escura, no vaso perto da janela.

                                    b c d e f

Ao longe, a mata e a verde silhueta das montanhas. O voo azul e esquivo das últimas andorinhas nas escarpas, antes da partida ao hemisfério norte (a sempre procurada primavera).

O bonsai carrega dois figos pendentes sobre a escrivaninha.

A fonte, no velho tronco escuro, leva água para cima e para baixo, num movimento que lembra o incessante moinho circular da vida.

                                           l j m n hh   hh   çrt xt

O som da água escorrendo é mergulho e passagem dentro da luz.

A presença das pequenas coisas levanta a palavra da escuridão.

O outono inaugura novas seivas nos caules, nos corpos, nas almas.

O pássaro cabe na mão. Um livro é uma coisa singela. Um só olhar desvela todo o horizonte.

Vida pequena, vida possível, vida inventada

                                              uu uah  uauhhh   iih  êêêê

 

Bonsai de palavras, fresta de claridade no breu da escrita.

Letras brilhando na tela, voando como andorinhas, se projetando na infinita nuvem virtual. Em busca talvez de um olhar que as resgate da grande dispersão.

Agora é tempo de respirar fundo, habitar os aposentos interiores do outono, soltar palavras como pandorgas ao vento.


segunda-feira, 19 de março de 2012

O fantasma e o menino

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


O fantasma habita a alma do menino.

Oscar é como um parente antigo, desses que um dia batem na porta, com uma mala de couro pesada, uma roupa velha, sapatos cobertos de pó, trazendo no olhar todo desamparo desse mundo.

Em noites de vento, o menino ouve o barulho das correntes no porão. Oscar agita-se muito nas cercanias do outono. O menino é o único da casa que sabe da sua existência.

Não, o fantasma não está preso, nada o impede de ir para onde quiser. Simplesmente arrasta as correntes com as mãos de um lado para outro, numa espécie de desalento que não tem fim.

Oscar é um Sísifo condenado a recordar a vida e a todos que amou e perdeu. Arrasta as recordações pelas noites de outono adentro. Não há consolo na sua solidão.

Ele tem o cabelo muito branco, escorrido até os ombros, a pele da face rosada, as mãos solitárias. Veste bermuda cinza e uma camisa branca abotoada até o pescoço. Tem o semblante vazio.

Às vezes, o menino desce ao porão, tenta conversar. Mas ele não fala a respeito do seu viver tão fatigado.

Oscar toca violoncelo, na música deposita sua frágil e dolorida alma.

Nunca olhou o menino nos olhos. Olha para as paredes de pedra com um olhar vago de quem mira o mar de cima de uma montanha. 

O menino costuma deixar a luz do porão acesa, como uma rosa branca num vaso azul de porcelana.

Há coisas em relação às quais nada se pode fazer. Mas nem por isso o menino é triste. O sol de cada dia é sempre uma nova oportunidade.

O passado é algo estranho e insuportável.

O silêncio, às vezes, fala mais que qualquer palavra.