Clara Finatto*
Ilustração: Clara Finatto |
Era o começo de uma noite fria
do mês de junho e eu estava caminhando pelas ruas do bairro quando vi, ao
longe, um homem deitado na calçada bem debaixo de um poste de luz.
Ao me aproximar percebi que era
um morador de rua. Naquele chão frio, com um cobertor até o pescoço, segurava na mão
esquerda um livro aberto e, com a direita, pegava bolachas de um saco
plástico para comer - no intervalo entre uma página e outra.
Fiquei muito tocada ao ver a
cena. Custei a acreditar.
Que homem seria aquele? Mesmo diante
da pobreza extrema cultivava o hábito de ler. Como conseguia manter assim viva
a sensibilidade naquelas condições?
Chegando mais perto pude ver
que ele lia “O Fantasma de Canterville” de Oscar Wilde. Fato este que me deixou
mais emocionada, pois sou apaixonada por esse escritor.
Nada sabia sobre aquele homem,
mas me identifiquei instantaneamente com ele.
Perguntei qual era o seu nome.
Ele respondeu, com uma voz suave, que se chamava João. Quis lhe fazer mais perguntas, mas me segurei. Não queria incomodá-lo.
Na sequência questionei se
teria interesse em ler outros livros. Ele abriu um largo sorriso
e disse que sim.
Então, combinamos que eu faria
a entrega de um livro diferente a cada 10 dias, sendo a entrega feita naquele
mesmo local que chamamos de Poste da Leitura...
No dia seguinte emprestei-lhe
o primeiro livro. Escolhi “O Retrato de
Dorian Gray” do mesmo Oscar Wilde já que ambos gostávamos do autor.
Passados 10 dias fui ao Poste
da Leitura para entregar o segundo livro e para saber o que havia achado do
anterior. Ele, muito educado, agradeceu e disse que tinha gostado bastante do
livro. Assim, ele devolveu o primeiro e entreguei “Os Dragões não conhecem o
Paraíso” de Caio Fernando Abreu.
Decorridos mais 10 dias fui,
muito contente, ao encontro do meu amigo João para alcançar-lhe o terceiro
livro: “Dom Casmurro” de Machado de Assis.
Transcorrido outro período saí para a próxima troca, mas, de longe, percebi que João não estava lá. E quando
cheguei ao Poste da Leitura vi que ele havia deixado o livro entre folhagens
enrolado em um papel de pão.
Ao pegar o livro vi que ele
havia escrito um bilhete que dizia:
“ESSE
LIVRO FOI O ÚLTIMO. COM HISTÓRIAS ASSIM VOU ACABAR ME MATANDO”.
Nunca mais o vi nem tive
notícias dele. Queria muito revê-lo para pedir desculpas pela seleção que
não lhe agradara e, quem sabe, tentar outros livros.
Espero que João, onde estiver, continue com suas leituras.
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*Advogada e artista plástica.