Jorge Adelar Finatto
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A sombra do quarto imita a escuridão do mundo.
A claraboia deixa passar a escassa luz do entardecer. Vincent Van Gogh tira o chapéu, as botas e se deita, os braços abertos. Toma um copo dágua, olha o teto. A velha cama emite ruídos secos a cada movimento. No chão, encostados na parede, secam os quadros pintados durante o dia.
O pintor vê imagens e cores enquanto dorme. O sonho medra no deserto. Verte luz na alma da treva. É tempo de refazer o mundo. O instante da maravilha.
A obra fez-se homem, o homem divinizou-se.
A viagem de trem de Paris para a pequena cidade de Auvers-sur-Oise dura cerca de 1h45min. Parte-se da Gare du Nord e, uma hora depois, em Valmondois, troca-se de trem até chegar a Auvers, situada no Vale do Rio Oise.
Trago no coração, amarelo, um girassol para Vincent.
Provinciana, a cidade habita a beira do rio que lhe dá nome. Embarcações com variado colorido, diferentes formas e tamanhos cumprem o destino de chegar e partir.
O Rio Oise desliza caudaloso entre as margens cobertas de vegetação.
Auvers-sur-Oise é o cenário no qual Van Gogh trabalhou e viveu nos últimos cerca de setenta dias de vida. Em 21 de maio de 1890, mudou-se para esta cidade que tem tradição de acolher pintores. Aqui ele viveu um dos melhores momentos de sua existência, até o dia em que desferiu um tiro de pistola contra o abdômen, no campo, em 27 de julho de 1890. Morreu dois dias depois, em 29 de julho, a uma e meia da manhã, aos 37 anos, ele que nascera em 30 de março de 1853, na aldeia holandesa de Groot-Zundert.
Volto a Auvers numa espécie de viagem afetiva que só o contato com a arte e seu poder encantatório explicam. Vim rever os lugares e caminhos que o gênio da pintura percorreu e retratou há mais de cem anos. Uma busca, talvez, do homem, da atmosfera que o moveu e inspirou naqueles dias distantes.
O coração dispara logo na chegada do trem, na pequenina estação, quase à margem do rio.
O relógio aqui gira em outro tempo. As casas de pedra são acolhedoras e observam o caminhante através de discretas janelas. Sobe-se da parte baixa da cidade para a alta através de vielas muito estreitas com flores da estação nos pátios. Interessante prestar atenção nos detalhes que não sofreram mudança desde aquela época.
As pequenas ruas, o casario, a natureza parecem saídos de uma pintura do artista.
A procura da expressão mais profunda e verdadeira, em Van Gogh, foi tão intensa quanto a dificuldade de comunicar-se com as pessoas.
Os fatos que culminaram com o suicídio do pintor estão envoltos em mistério. Um professor, em Paris, comenta, informalmente, a existência da versão - nunca confirmada - de que Van Gogh teria sido morto num duelo com um homem influente da cidade, ao baterem-se por causa de uma mulher. A informação, até onde se sabe, não tem valor histórico.
Ao mudar-se para Auvers Van Gogh pretendeu afastar-se do ruído e da agitação de Paris. Veio, também, para tratar-se com o Dr. Gachet, médico do lugar que é pintor amador e tem amizade com vários pintores impressionistas. Dele Vincent faz alguns retratos. Tornam-se amigos, embora ocorram conflitos.
Em Auvers ele produziu cerca de 75 pinturas naqueles últimos dias de vida. Essa produção é impressionante, não apenas pelo número - em tão pouco tempo - como pela qualidade. Os quadros revelam uma intensa celebração da vida. O artista mostra que está no pleno domínio de sua arte. Parece finalmente ter encontrado o ambiente ideal para viver e criar. Tudo que o cerca serve de inspiração para o ofício de traduzir a vida em forma e cor.
O sentimento explode na tela. O traço forte inaugura a face do mundo.
Tal a excitação do pintor com seu trabalho que dá a impressão de que aqui experimentou os melhores dias. Um intervalo longe dos sofrimentos que o atormentaram durante toda a vida.
Van Gogh hospeda-se na pousada Auberge Ravoux, misto de pensão, restaurante e casa de comércio de vinhos. Com dois pavimentos e amplo sótão, a construção se situa no centro, na frente do prédio da prefeitura. Hoje funciona no local a Maison de Van Gogh ( http://www.maisondevangogh.fr/), onde o visitante pode conhecer o cubículo que o artista habitou, um aposento mal-iluminado e pequeno, nos fundos, sob o telhado.
Uma claraboia côa a pouca luz do dia que por ela entra, clareando o abandono.
Na Casa Van Gogh, encontram-se livros sobre o artista e reproduções de seus trabalhos a preços razoáveis. Também se pode assistir a um interessante documentário em vídeo sobre sua vida, de cerca de vinte minutos. Além disso pode-se fazer uma refeição no restaurante que permanece como era no tempo em que ele ali viveu.
O homem que libertou as cores levou uma vida pobre, em quase tudo dependente do irmão mais moço, Theodorus Van Gogh, que trabalhava no comércio de artes plásticas em Paris. Era grande o amor que os unia. Theo tinha grande admiração pela obra de Vincent. Procurava auxiliá-lo com todo empenho, o que incluía repasses constantes de dinheiro para despesas de alimentação, hospedagem, material de pintura, entre outras. As dificuldades eram imensas para Theo, que tinha mulher e filho para sustentar.
Van Gogh, que tanto amou os seres e a natureza, dos quais nunca se afastou, soube, como poucos, eternizar através de sua arte a beleza do mundo.
Os luminosos girassóis representam essa infinita procura do belo.
Ele tinha por costume dormir cedo em Auvers, por volta das 21h. Acorda em torno de 05h para trabalhar. Muitas vezes sai da pensão de madrugada, sem comer nada. Aproveita ao máximo a luz do dia para pintar.
Ele transita pelas ruas apressado, com a caixa de tintas, pincéis, cavalete e todo o material.
O velho chapéu de palha na cabeça. Aquele homem vestido modestamente não chama a atenção dos moradores, habituados a ver outros pintores que passam pela cidade em busca de paz e siêncio para criar.
Em meio à subida para a parte alta, encontramos a famosa Igreja de Auvers, retratada por Van Gogh. Como em outros lugares que pintou, a administração municipal colocou, no local, uma reprodução da imagem criada pelo artista.
A Igreja de Auvers é apenas uma das obras-primas que produziu nesse período.
Continuando a subida, encontramos, bem no alto, o amplo terreno de semeadura em que ele retratou o célebre Campo de trigo com corvos, um dos últimos trabalhos. É provável que neste mesmo lugar Van Gogh disparou o tiro contra o abdômen. A cerca de cem metros de onde o quadro foi pintado está situado o cemitério de Auvers, no qual Vincent está sepultado no humilde túmulo, no chão, coberto de heras, ao lado do túmulo do amado irmão Theo, que viria a falecer pouco tempo depois.
Van Gogh sofreu graves crises psíquicas ao longo de sua breve passagem pela Terra. Viveu na pobreza. Encontrou apoio, compreensão e carinho no irmão, com quem trocou a extensa correspondência registrada no livro Cartas a Theo.*
Dizem alguns que vendeu apenas um quadro em vida (A videira vermelha).
Em Auvers não se encontra nenhuma obra de Van Gogh. Suas pinturas alcançam muitos milhões de euros e estão espalhadas nos principais museus do mundo e em coleções particulares. A Casa Van Gogh desenvolve um grande trabalho para resgatar, ao menos, um dos quadros, que a tornará "o menor museu do mundo", segundo eles dizem.
O artista que nos revelou a maravilha não encontrou na sociedade de seu tempo o indispensável apoio para continuar vivendo e criando. Encontraria hoje?
A cadeira de madeira e palha, no silêncio do quarto sombrio, é o que restou do hóspede.
O resto é oco.
Austera solidão.
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Fotos: Jorge Finatto.
Texto publicado originalmente no blog em 30/12/09.
*Cartas a Theo. Vincent Van Gogh. Editora L&PM. Porto Alegre, 2007.
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