sábado, 10 de março de 2012

O escravo e sinhá

Jorge Adelar Finatto


ESCUTEI o samba no rádio. Era aquela hora da tarde em que olhamos a janela sonhando fugir para algum lugar distante.

O samba Sinhá, do mais recente cd de Chico Buarque de Holanda, conta a história de um negro escravo que é levado ao tronco pelo "feroz senhor de engenho", sob a acusação de olhar a sinhá despida tomando banho no açude. É o próprio escravo quem narra o fato.

Num lamento, ele nega a imputação que lhe é feita pelo senhor, "Sou de olhar ninguém/Não tenho mais cobiça/Nem enxergo bem".

O senhor de escravos, de olhos azuis, decide furar as vistas do pobre e indefeso homem.

Na última parte do canto, quem fala é o cantor, dizendo-se atormentado, "Herdeiro sarará/Do nome e do renome/De um feroz senhor de engenho/E das mandingas de um escravo/Que no engenho enfeitiçou Sinhá".

Pelo que sugere, a relação entre escravo e sinhá foi além de um simples olhar.

Trata-se de obra-prima de Chico Buarque e João Bosco, com texto do primeiro, que resgata um bárbaro evento (fictício ou real) do período da escravidão no Brasil. Um doloroso retrato da sociedade escravocrata.

Como obra de arte, toca fundo a nossa emoção e nos faz pensar. Não será esta capacidade de nos tirar da inércia e da indiferença a virtude superior da arte?

Sinhá é um samba de alta eficácia literária, musical e humana, que resume um tratado de sociologia e, de quebra, nos faz chorar.


Sinhá

  Chico Buarque e João Bosco

Se a dona se banhou
Eu não estava lá
Por Deus Nosso Senhor
Eu não olhei Sinhá
Estava lá na roça
Sou de olhar ninguém
Não tenho mais cobiça
Nem enxergo bem

Para que me pôr no tronco
Para que me aleijar
Eu juro a vosmecê
Que nunca vi Sinhá
Por que me faz tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da santa cruz

Eu só cheguei no açude
Atrás da sabiá
Olhava o arvoredo
Eu não olhei Sinhá
Se a dona se despiu
Eu já andava além
Estava na moenda
Estava para Xerém

Por que talhar meu corpo
Eu não olhei Sinhá
Para que que vosmincê
Meus olhos vai furar
Eu choro em iorubá
Mas oro por Jesus
Para que que vassuncê
Me tira a luz

E assim vai se encerrar
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá


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Cd Chico. Chico Buarque de Holanda. Biscoito Fino, 2011.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Alvaro Moreyra

Jorge Adelar Finatto

Se um dia tiver de escolher um cronista pra levar para uma ilha deserta (essa pequena ilha imaginária que todo mundo tem, de náufrago, com uma só palmeira, perdida no meio do oceano), este cronista será o porto-alegrense Alvaro Moreyra (1888 - 1964).

O Brasil tem cronistas de valor, o sempre lembrado Rubem Braga é, com justiça, um bom exemplo. Mas nenhum tem a sintaxe tão refinada, natural, despojada e poética de Alvaro Moreyra. Não será exagero dizer que ele fundou a moderna crônica no Brasil.

As palavras parecem gostar de ser tocadas pela mão do escritor. Passeiam com ele, brincam, mergulham, saltam da página, seduzem e se deixam seduzir. Adoram estar perto do senhor Moreyra (ele acrescentou o y ao nome em lugar do i). Não há sobras nem há faltas no texto deste autor (principal influência literária de Carlos Drummond de Andrade, nos anos de formação, entre os escritores brasileiros).

São breves composições que têm a invulgar capacidade de traduzir sentimentos, pensamentos, estados de espírito, aquarelas da alma que normalmente são difíceis de pintar. A leveza, o humor, a bondade, a delicadeza e a ironia inteligente (que nunca se confunde com grosseria) são sua marca.

Um olhar amoroso sobre os seres e a vida é o traço deste artesão do verbo.

A injustiça e o sofrimento das pessoas não passam despercebidos nas páginas deste comunista devoto de São Francisco de Assis.

Poeta, diretor de revistas, teatrólogo (iniciou o movimento de renovação do teatro em nosso país junto com a mulher, Eugênia Moreyra, através do Teatro de Brinquedo),  Alvaro Moreyra sempre levou Porto Alegre e o Guaíba no coração por onde andou.

Estas impressões vêm a propósito de ter descoberto agora a edição de uma antologia de crônicas do escritor, recolhidas dos vários livros que publicou no gênero. É a primeira publicação desta natureza dedicada ao autor de Um sorriso para tudo. A obra faz parte da Coleção Melhores Crônicas, da editora Global, com seleção e prefácio de Mario Moreyra.

Tomo a liberdade de sugerir aos meus dois leitores que não deixem de levar para casa este livro. Estou certo de que viverão momentos de felicidade na companhia do senhor Arlequim da Silva (pseudônimo de Alvaro).

... E fico a ver navios. É um passatempo. O mar, por ser sempre o mesmo, é diferente sempre. Às vezes, verde, com franjas de espuma. Outras vezes, azul, parado, imóvel. Em certas manhãs, parece uma cauda de pavão... Eu gosto do mar. Paro, horas esquecidas, na areia da praia, olhando as ondas, marujamente, cheio de uma nostalgia deixada em mim pelos portugueses meus ancestrais... E fico a ver navios...

É o que tenho feito em toda a minha vida...

                                         Alvaro Moreyra *

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Foto de Alvaro Moreyra: reprodução de fotografia do escritor publicada na revista  Para Todos, de 19 de março de 1927 (coleção do autor do blog).

*Alvaro Moreyra, Coleção Melhores Crônicas, p. 54. Seleção e prefácio de Mario Moreyra. Global Editora, São Paulo, 2010.

Leia mais sobre Alvaro Moreyra:
A memória do coração:

Páginas de velhas revistas:
 
Teatro de Brinquedo:
 

sábado, 3 de março de 2012

Iberê Camargo e a escrita da solidão

Jorge Adelar Finatto

Solidão, pintura de Iberê Camargo, 1994. Foto: Luiz Achutti.
Fonte: site da Fundação Iberê Camargo:
http://www.iberecamargo.org.br

No passar vertiginoso do tempo, o instante quer ficar. O pintor é o mágico que imobiliza o tempo.
Iberê Camargo


Fiz uma visita à Fundação Iberê Camargo agora no fim de fevereiro. O edifício localiza-se na beira do Guaíba, e foi desenhado pelo famoso arquiteto português Álvaro Siza.   Gostei muito do lugar, sua organização, atendimento, mas acho que bem poderia ter pelo menos uns quatro janelões a mais para se admirar o rio e Porto Alegre.

Em nada interfeririam nos ambientes de exposição, já que as aberturas estão nos corredores isolados que rodeiam em espiral o interior do prédio.

Nada se compara à visão da cidade e seu rio. Penso nessa outra pintura não para fazer concorrência com as obras expostas no interior do museu, mas para nos aproximar dessa outra beleza, tão natural e delicada, integrando-a naquele espaço de arte. Falo como alguém que se ressente da falta de pontos de observação em Porto Alegre.

A cidade e seus habitantes estão vendados para o rio.

escultura Os Arqueólogos, bronze. De Chirico, 1968. photo: j.finatto

Era um dia nublado de fevereiro. Havia a tarde pela frente, suficiente para a visitação das duas exposições: Conjuro do mundo: as figuras-cesuras de Iberê Camargo, e De Chirico: O sentimento da arquitetura. 

Tenho um conhecimento pouco profundo da obra do gaúcho Iberê Camargo (1914 - 1994). A visita contribuiu para ampliá-lo. A fundação é o lugar ideal para conhecer esse importante artista brasileiro do século XX.

A minha relação com o grego Giorgio De Chirico (1888 - 1978, pronuncia-se De Quírico, conforme aprendi lá no museu) é mais antiga, vem do tempo em que andava às voltas com os surrealistas, sendo eu mesmo um deles, tardio embora, alguém que valoriza o inconsciente e os sonhos  no ofício de criar. Faziam parte de minhas admirações gente como De Chirico, André Breton, Salvador Dali, Antonin Artaud, Miró, Magritte, Lautréamont e vários outros membros da inquieta e ilustre família.

Há nas exposições pinturas encantadoras de Iberê e de De Chirico, além de belas esculturas deste último. Recomendo, portanto, vivamente uma visita a ambas. 

vista de uma janela da FIC. photo: j.finatto

As contínuas reformas na nossa cidade - a cidade é a nossa casa - nos transformam em forasteiros. O progresso é uma ação de despejo em execução.
Iberê Camargo

Os azuis da pintura de Iberê são únicos. Como no quadro Solidão, pintado no ano de sua morte. O que o artista nos transmite é um forte sentimento de que a beleza e a solidão caminham sempre lado a lado. Parece que uma não existe sem a outra. 

O indivíduo está só com ele mesmo e na vida em sociedade. Os caminhos são tortuosos e estão cheios de pedras. Nessas pinturas, há uma visão turva do destino humano. A metáfora de um tempo com a marca da crueza, num século que nos deixou de herança duas guerras mundiais e um ambiente nunca visto de desprezo ao humano e perda de sentidos.

A minha maior surpresa, contudo, viria depois da visita à FIC. Movido pela curiosidade de conhecer um pouco mais o pensamento do pintor, adquiri seu livro  Gaveta dos Guardados, publicado em 2009 pela Fundação Iberê Camargo e editora Cosac Naify.

O que li nesses textos é resultado do trabalho de um escritor talentoso, senhor do ofício da palavra. Este é um livro com horizonte e profundidade, de alguém que tem realmente o que dizer e o faz com arte.


interior da FIC. photo: j.finatto

Iberê não é apenas um artista plástico que escreve bem. Não é somente um homem culto que resolveu escrever e dar-se ares de escritor. Não. É um escritor que domina a expressão escrita com maestria e originalidade. 

Sou impiedoso e crítico com minha obra. Não há espaço para alegria. Acho que toda grande obra tem raízes no sofrimento. A minha nasce da dor.
Iberê Camargo

O autor escreve com rigor e no que diz não existe espaço para superficialidades e salamaleques. Escrever, para este pintor de palavras, é um ato de vida ao qual se consagrou por inteiro.

Gaveta dos Guardados é um livro de memórias, mas é, sobretudo, um livro no qual se plasma a criação literária em alto nível. Uma descoberta.

Iberê Camargo é um caso raro de artista com domínio vigoroso e fecundo de duas linguagens.

fachada da FIC. photo: j.finatto

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As três frases em azul foram retiradas do livro Gaveta dos Guardados (págs. 102, 103 e 31), de Iberê Camargo. Fundação Iberê Camargo, editora Cosac Naify, São Paulo, 2009.


quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

A sempre louca busca do invisível

Jorge Adelar Finatto


(Meu relógio e eu temos em comum a urgência de viver o tempo das pequenas coisas. As revelações do farelo.)


photo: j.finatto



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Contraforte dos Capuchinhos, Passo dos Ausentes. photo: j.finatto

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O Artista

Jorge Adelar Finatto

Jean Dujardin e Bérénice Bejo, em O Artista. Fonte: Divulgação

Na semana passada, assisti a O Artista, dirigido por Michel Hazanavicius (França, 2012, 100 min) e saí do cinema encantado por ver, enfim, um filme de arte, bem distante dos clichês, dos bruxinhos e dos efeitos especiais tão em voga. É um filme em preto e branco, mudo, tendo bela trilha sonora de fundo. 

Conta uma história humana, ao tratar de um ator que percorre difícil itinerário que o leva da fama à decadência, na Hollywood da década de 1920. Estrela do cinema mudo, George Valentin não assimila bem a chegada do cinema falado e aí começa a sair de cena. A jovem atriz e dançarina Peppy Miller, que se projeta no novo modo de fazer cinema, acompanha de perto o drama do ator.

O filme fala também da vaidade que, às vezes, toma conta de nós quando o sucesso acontece (em qualquer profissão ou atividade) e de como ela pode nos levar ao fundo do poço.

Mas O Artista nos recorda, sobretudo, do amor, da empatia e da solidariedade que deve haver entre as pessoas, principalmente em momentos de crise e desorientação (pelos quais todos, mais dia, menos dia, acabamos passando).

Dos filmes que vi nos últimos tempos, este é um dos mais tocantes. Nada nele é forçado e a emoção flui e cresce naturalmente ao longo da trama. Diferente, por exemplo, de A invenção de Hugo Cabret, do diretor Martin Scorsese, (Estados Unidos, 2011, 126 min), notável em efeitos especiais, mas no qual o sentimento não amadurece, tem pressa de mostrar-se ao espectador, e acaba não acontecendo, ao menos não como em O Artista, em que cada lágrima e cada riso têm sua razão e seu momento.

Os Oscars (a cerimônia avançou até o início da madrugada desta segunda-feira, no horário do Brasil) de melhor filme para O Artista e  o de melhor ator ao seu protagonista Jean Dujardin são, por todas as razões, mais do que merecidos (ganhou também os prêmios de melhor direção, figurino e trilha sonora). Pra não esquecer: a atuação de Bérénice Bejo, como Peppy, tem momentos inesquecíveis. 

Lavei a alma, porque as premiações a O Artista fizeram justiça.


As órbitas misteriosas

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


A coisa mais difícil do mundo é encontrar guarda-chuva perdido.

O meu guarda-chuva desapareceu num início de outono. Éramos inseparáveis até então.

Nos perdemos num dia de forte neblina nos Campos de Cima do Esquecimento. Tínhamos saído para dar uma volta aqui em Passo dos Ausentes, garoava.

Num momento em que me distraí, veio um pé-de-vento e o arrancou de minhas mãos, ele saiu voando alto, foi em direção ao Vale do Olhar, nunca mais voltou. Desnecessário dizer que deixou uma dor no meu coração.

Decerto ele agora anda em órbita em volta da Terra, como as bonecas de trapo das primas antigas e os borzeguins azuis do major.

Tudo que um dia perdemos vira um ponto de luz no espaço.

(As coisas perdidas deixam sempre algum rastro.)

Por isso, acredito que nada do que amamos se apaga simplesmente.

O meu guarda-chuva perdido era como amigo de infância.

A gente nunca esquece, mas não sabe ao certo para onde o vento o levou.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Efêmera canoa

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Diante da cidade cinza, atravessa indiferente uma canoa.
Vista assim parece cartão-postal. Uma recordação do passado distante.
De tantas pinturas concebidas, nenhuma será tão bela como a cidade e seu rio.


photo: j.finatto


A solidão da canoa desliza pelo retrato, em lenta e agonizante passagem rumo ao crepúsculo.
O homem atrás do peixe.


photo: j.finatto


O pescador e o peixe ao largo da cidade.
O observador, no continente, na sua ilusão de beleza e permanência.
Todos em direção ao oblívio.


photo: j.finatto

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O cenário é Porto Alegre; o rio, o Guaíba.
Fotos feitas em 22, fevereiro, 2012.