domingo, 31 de agosto de 2014

O último apaixonado de Norma Jeane

O Cavaleiro da Bandana Escarlate
 
Marilyn Monroe (Norma Jeane)
 
Após meses recolhido ao seu humilde solar da Praça Maurício Cardoso, em Porto Alegre, única casa do bairro Moinhos de Vento em que habita um frondoso e mais que centenário pinheiro, O Cavaleiro da Bandana Escarlate volta a publicar um texto no blog. É uma página íntima do nosso crítico de cinema. Confessional e desbragada. Mas, como explicou na carta  em que me enviou o texto, um homem, na minha idade, pode bem se dar ao luxo de mandar os salamaleques ao Guaíba. Não quero levar para o túmulo esse segredo. Com os senhores, pois, a prosa do nosso original Cavaleiro*.
J.Finatto
 
Olho a fotografia de Marilyn Monroe no porta-retrato sobre a estante. Me dou conta de que fui o último homem a cair de amores pela Diva no fim do século XX. Faz 15 anos. Eu me apaixonei por ela num tempo em que ninguém mais ousa apaixonar-se. Os medos do sentimento, os medos do ridículo. Assisti a todos os seus filmes e li livros a seu respeito. Foi uma paixão fatal e tardia.
 
No início não levei a sério. Achei que aquelas caras e bocas que ela fazia nos filmes, cartazes e revistas eram mera promoção e mercantilização da imagem. Só depois descobri que não, eram e sempre foram apenas para mim...

O último homem a apaixonar-se por Marilyn Monroe.

Norma Jeane (1926-1962), prefiro chamá-la pelo nome verdadeiro, mais de acordo com nossa intimidade, sempre soube da minha existência mesmo antes de eu existir. Sempre soube que meu sentimento seria o mais casto sentimento que alguém lhe devotou, se isso é possível em se tratando de mulher tão bela.

Todos os outros fãs esqueceram-na depois da morte. Só eu permaneci constante em meus amores impossíveis.

Como esses cães que definham à porta da casa quando o dono já não volta.
 
Teve um tempo que senti ciúme de Norma Jeane. Um ciúme retroativo e doloroso. Não suportava ver aqueles animais babando por ela nos filmes e páginas de revista. Queriam seu corpo, os seios, o colo, as pernas, a nuca, os braços, o olhar atrevido e indecifrável com que atraía suas vítimas. Venturosas vítimas de sua beleza angelical.

Ninguém escapava quando ela lançava a rede lilás da sedução.

Eu fui daqueles raros que conseguiram ver a menina triste no fundo dos seus olhos.
 
Viveu em orfanatos na infância. Sofrer muito, e em secreto, era com Norma Jeane, a criança solitária que nunca deixou de ser. Mas o encanto estava com ela e sabia como usá-lo. Era preciso não sucumbir ao mundo terrível dos humanos. Queriam ilusão? Ela lhes dava. Mas a que preço!

Morrer aos 36 anos de uma possível overdose de barbitúricos, num suposto mas discutível suicídio (as circunstâncias da morte são controvertidas),** foi a antítese de uma vida radiante de beleza e de uma desconhecida e intensa atividade poética e intelectual.

O mundo sempre quis o rótulo. Não está interessado no conteúdo.

No excelente livro Fragmentos***, com prefácio do escritor italiano Antonio Tabucchi, vêm à tona, pela primeira vez, os textos de Norma Jeane. Esses textos são, na verdade, estilhaços de uma sensibilidade que explode diante dos mistérios, maravilhas e sofrimentos da vida. Nele se lê, por exemplo, o grito calado de uma alma profunda e delicada:

Sozinha!!!!!
Eu estou sozinha. Eu estou sempre
sozinha
não importa o que aconteça. (p. 57)

O dramaturgo Arthur Miller, que esteve casado com ela entre 1956 e 1960, resumiu:

Para sobreviver, seria preciso que ela fosse mais cínica ou, pelo menos, mais próxima da realidade. Em vez disso, ela era uma poeta na esquina, tentando recitar seus versos a uma multidão que lhe arrancava as roupas. (p. 37)
 
Norma Jeane deixou muitos escritos e foi uma leitora voraz de grandes autores como Dostoievski, Whitman, Milton, Hemingway, Beckett, Kerouac, James Joyce, entre outros. Aproveitava o escasso tempo livre para ler e fazer breves cursos de história da literatura e da arte, ela que não conseguiu terminar os estudos regulares.

Muitos caíram ante os encantos dessa mulher-sonho. Reis, presidentes, industriais, marinheiros, artistas, intelectuais, astronautas, operários, boxeadores, caçadores de tesouros e pobres diabos em todos os lugares em que houvesse uma tela de cinema. Poucos, porém, viram nela a mulher sensível, estudiosa, criativa e poeta que queria ir fundo no sentimento dos seres e das coisas.

Norma Jeane está feliz e me sorri no retrato sobre a estante. Sou seu último apaixonado.

Norma Jeane. Que nome tão lindo para um barco! Uma solitária nuvem branca num céu tão azul! Ó, Norma Jeane, as estrelas do universo te contemplam!

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*Existem vários textos do Cavaleiro da Bandana Escarlate no blog, como este:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/04/o-cavaleiro-da-bandana-escarlate.html
**Wikipédia:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Marilyn_Monroe
***Fragmentos. Poemas, anotações íntimas e cartas de Marilyn Monroe. Organização de Stanley Buchthal e Bernard Comment. Prefácio de Antonio Tabucchi. Editora Tordesilhas, São Paulo, 2011.

  

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Qualquer semelhança

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
Qualquer semelhança com a primavera, por esses dias, não é mera coincidência. É vera presença floral.

Estão aí os primeiros sinais, os primeiros perfumes, os primeiros anelos, misturados às últimas cerrações, aos últimos frios, às últimas geadas e, por que não?, às derradeiras solidões do inverno. É assim nos Campos de Cima do Esquecimento.
 
É tudo tão claro e tão certo como essas flores que emergem dos talos na paisagem da tarde gris. Delicado como esses ramos tenros que apontam nos galhos.


photo: jfinatto


Ainda não chegou a primavera. Mas o seu sentimento já roça o coração devastado. Se calhar, o amor e a empatia vão florescer em todos os espíritos em setembro. Sonhar não custa.

Por isso é preciso sair pela estrada de terra, ouvir o rumor das águas do córrego no mato, a conversa dos pássaros sob as copas transparentes que se alargam.

É hora de fugir dos gritos e dos motores, sem esquecer dos jornais e televisões, e também das vaidades fúteis galopantes, sejam elas literárias ou não.

Por isso eu quero ficar quieto: para escutar o som das asas da borboleta atravessando o ar. Para varrer da alma as tristezas e sombras acumuladas.


photo: j.finatto
 
Atentai, monstros de melancolia, que se aproximam os novos e cálidos dias e neles não tereis mais voz nem exercereis qualquer poder.

É tempo de respirar o ar ensolarado e fino de setembro. E dizer sim às mais loucas esperanças.

É tempo de mergulhar em silêncio na doce algaravia dos passarinhos. E renascer.


photo: j.finatto
 

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Julio Cortázar em Porto Alegre

Jorge Adelar Finatto
 
Julio Cortázar
 
Lembrança de Cortázar nos cem anos de seu nascimento (26 de agosto de 1914).
 
A literatura passa um sentimento de permanência das coisas. Nós passamos, as palavras escritas ficam. A maior parte dos livros dura muito mais do que as pessoas.

Os escritores que escolhemos para nos acompanhar na travessia são fundadores dessa eternidade de papel. Os livros fazem parte do que somos.

A lembrança mais remota que associo ao nome do escritor argentino Julio Cortázar (1914 - 1984) é dos primeiros tempos de estudante universitário em Porto Alegre. O ano 1976, tinha dezenove anos. Estava lendo Histórias de Cronópios e de Famas e As Armas Secretas.

A fila do restaurante universitário era torturante pra quem tinha que ir pro trabalho cedo da tarde como eu. Estudante pobre, precisava trabalhar pra sobreviver, como muitos. Nas filas do r.u., lia Cortázar. Então, aquele era também um bom momento do meu dia. Depois li outros livros dele.

Agora, lendo Papéis Inesperados (tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht), livro de 490 páginas, com textos inéditos do escritor, publicado originalmente em 2009, vinte e cinco anos após sua morte, reencontro Cortázar. No Brasil, o livro foi lançado em 2010 pela Civilização Brasileira.

Os textos - encontrados em uma velha cômoda, na casa onde morou o autor, em Paris, por sua viúva Aurora Bernárdez - são poemas, contos, outras histórias de cronópios e de famas, outros episódios de Um tal Lucas, um capítulo de O Livro de Manuel, discursos, prólogos, artigos de arte e literatura, crônicas de viagem, etc.

A felicidade de encontrar material novo do autor, tantos anos depois, é muito grande.

O dado inusitado e, para nós que amamos a literatura de Julio Cortázar, muito gratificante foi descobrir uma menção a Porto Alegre no texto Never stop the press, onde se lê a frase "uma vista escolhida do Tirol e/ou de Bariloche e/ou de Porto Alegre" (pág. 117).

Sei que Cortázar gostava do Brasil, onde esteve pelo menos em duas ocasiões, e que admirava, por exemplo, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade, além de apreciar nossa música, especialmente Caetano Veloso, mas ignoro se alguma vez esteve em nossa cidade.

De qualquer forma, ver Porto Alegre no texto de Cortázar, ainda que só de passagem, dá o que imaginar. Pensando bem, acho que ele tinha muito a ver com essa cidade povoada de barcos e crepúsculos, jardins invisíveis na frente de casas desaparecidas, quintais perdidos no tempo.

Silenciosos gatos caminham sobre muros cobertos de hera em ruas esquecidas habitadas por fantasmas.
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Cley e Cortázar:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/08/cley-e-cortazar.html

Texto atualizado, publicado antes  em 11 de agosto, 2010.
 

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O sobrado dos ausentes

Jorge Adelar Finatto 

as prímulas do tio Ernesto. photo: j.finatto
 

Toda casa tem um fantasma. A casa da minha infância tinha vários...

O retrato pendurado na parede de madeira. O semblante sereno, um quase sorriso, o olhar que mira ao longe. É o fantasma do tio Ernesto, o mais amado por todos. Nunca teve um trabalho, queria só ler e escrever e fazer travessias pelas montanhas dos Campos de Cima do Esquecimento. Gostava de muito conversar e viajar. E de tomar chimarrão comendo rapadura.

Era o mais feliz. E o mais devotado aos livros. O mais bonito também, segundo as mulheres da família. Sua pátria espiritual era a Espanha de Cervantes, Juan Jamón Jiménez, Unamuno, Ortega y Gasset, Salvador Espriu, Lorca.

Um dia, ninguém sabe por quê, tio Ernesto foi viver tão longe, tão retirado em si mesmo, que cismou de não falar mais palavra. Passou a habitar o telhado do velho sobrado. A avó lhe alcançava comida e água pela janela da água-furtada. Ali ele esticou uma lona e fez uma espécie de cabana.

No inverno, escrevia cartas que reuniam a família junto do fogão a lenha para escutar a sua leitura. Eram histórias inventadas. Ele morreu aos 55 anos. Foi difícil retirar o corpo do interior da cabana inclinada onde dormia em posição de feto.

O quarto de Ernesto, no andar térreo do sobrado, nos fundos, tinha um canteiro de prímulas ao pé da janela. De todas as cores, as florzinhas nunca param de florescer, em todas as estações do ano, sem que ninguém cuide delas.

Isso aconteceu no tempo das lamparinas, dos lampiões e dos vaga-lumes salpicando o escuro com suas lanterninhas faiscantes.

Era no tempo da maria-fumaça resfolegando e largando fumaça na estação de Passo dos Ausentes.

Os fantasmas acabavam voltando para casa um dia. A avó os recebia na porta com um largo abraço e uma manta para cada um, as mantas que cosia durante os anos de ausência. Eram homens e mulheres, filhos, filhas, tios, tias, primos, primas.

A casa tinha muitos quartos. Eu gostava quando alguém chegava de madrugada no trem noturno vindo de Porto Alegre. O barulho do sino no portão de pedra era o sinal. As luzes dos quartos se acendiam umas após as outra. Ninguém mais dormia. Era o alvoroço.

Às vezes algum, alguma, vinha com filho no colo, às vezes com três, como a tia Melinda. Era um tal de fazer chá, café, aprontar biscoitos, servir pão quente, chimias, sopas e ouvir as primeiras histórias.

O tio Nelson, que era contra-almirante, um dia voltou velho, a cabeça de crespos cabelos brancos combinava com a farda da mesma cor. Os olhos azuis muito claros e cansados.

No velho sobrado, todos descendiam da bisavó negra e do bisavô branco.

Veio só, deixou a família no Rio de Janeiro, veio pra morrer ao lado da avó quase centenária (mãe dele). Disse que queria terminar os dias no quarto onde passou a infância a brincar com navios de montar e viagens imaginárias. Morreu numa tarde de sexta-feira, segurando a mão da avó que, sentada ao lado da cama, ouvia dele como era a vida no mar. Eu estava num banquinho junto dela.

Um fogão a lenha campeiro. O corredor que termina na sala grande iluminada, as cadeiras em volta da mesa de peroba rosa. A janela ainda recende a flor de laranjeira.

O postigo em forma de losango, a bilha de louça esmaltada no canto da cozinha.

Uma trança de cebola esticada perto do fogão. Um silêncio de inverno.
 
Em certos dias os fantasmas saem dos retratos e reúnem-se aos vivos (os vivos e suas turvas e sofridas memórias), ao redor da mesa.

Resta o vaso branco com as flores possíveis.
 
Cortinas transparentes que o vento embala.

Os pinheiros, os plátanos, as palmeiras sob o azul de um dia qualquer.

O quadro onde se lê "O sândalo perfuma o machado que o fere".
 
Os livros na estante, os olhos ausentes de Ernesto (apagaram, apagaram). Um nome, um número, um epitáfio ao relento.

O menino Jorge conversa com os fantasmas todas as noites antes de desaparecer, também ele, na bruma da memória e do sono. Fala da infância, dos banhos no rio, da pescaria dos dourados, da festa dos peixes depois da enchente. Das saídas noturnas com os tios e primos em maio para espiar a viagem das estrelas cadentes nos Campos de Cima do Esquecimento.

O sobretudo azul-marinho está pendurado no cabide ao lado da porta de entrada do sobrado. O guarda-chuva ainda molhado de sonho. Os óculos dobrados sobre o jornal de um dia. O ruído do pêndulo do relógio.

A ventania sopra nos salgueiros da solidão.

O que é afinal esse tempo em carne viva? O que é quase todos terem desaparecido?

Nas noites de inverno, eles continuam chegando de muito longe no trem noturno.

A casa toda se acende, abraços se espalham pelas salas, quartos, corredores. O coração estremece.
 

sábado, 23 de agosto de 2014

Uma gaivota sonha

Jorge Adelar Finatto
 
gaivota no alto do barco. photo: j.finatto


A memória da nave se dissolve no ar.

Uma gaivota branca e sonhadora pousa no alto do barco à espera da última viagem.

O ofício de esquecer atravessa as fendas de aço. A embarcação aderna como um peixe que perdeu as asas.

É duro ser capitão de nau tão desolada.

A cor do tempo, marcas de ferrugem. As escotilhas rotas miram o impossível céu.

O colorido infantil recorda felizes partidas ao vento pelo Guaíba. 


Imóvel paisagem nas janelas caladas.

O espectro de Ulisses caminha no labirinto do convés.

Há uma saudade abandonada no cais.
 
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Texto revisto, publicado antes em 20 de dezembro, 2010.
 

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A poesia de Henrique do Valle vem à luz

Jorge Adelar Finatto
 
 
Henrique do Valle.
photo de Ana Maria Lopes de Almeida Bastos
O lançamento do livro contendo a obra reunida de Henrique do Valle (1958 - 1981), hoje, às 19h, pelo Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul, é o início do reconhecimento do legado literário do notável poeta, morto aos 22 anos.
 
Acredito que sobretudo os mais jovens vão reconhecer-se nos poemas do Henrique pela maneira com que trabalhava a linguagem, pelos temas tratados e pela visão de mundo do autor.
 
Pouco antes de morrer, o querido amigo deixou em minhas mãos um envelope contendo 30 poemas que fazem parte deste livro. Guardei os textos durante 32 anos. Conto essa história com detalhes num capítulo da obra.
 
Os leitores têm agora a oportunidade única de travar conhecimento com esse que foi um dos grandes poetas do século XX.
 
Este é o primeiro poema daquele envelope mágico. Seria uma despedida?
 

Te chamei porque queria que guardasses
meus peixes e flores
agora que vou viajar.

Conhecerei novas terras, outras pessoas
e isso me enche de tanta alegria
que nem sei como expressar.

Prometo que te trarei presentes
e que te contarei tim tim por tim tim
tudo que passei.

Mas até eu voltar, dá uma força,
cuida bem dos meus peixes e flores.
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quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Federico García Lorca: a memória em busca do poeta

Jorge Adelar Finatto

Entre Víznar e Alfacar, cercanias de Granada, as grandes pedras demarcariam a possível localização da fossa onde estão os restos mortais do poeta Lorca, assassinado há 78 anos. Foto: jornal espanhol El País

 Poeta, músico, pintor, compositor, dramaturgo, García Lorca está entre os grandes da literatura espanhola e universal. Assassinado brutalmente antes do amanhecer, há 78 anos, no início da Guerra Civil Espanhola, seu corpo jamais foi encontrado.

Federico García Lorca (Fuente Vaqueros, 5 de junho, 1898 - algum lugar entre Víznar e Alfacar, madrugada de 18 ou 19 de agosto, 1936), um dos grandes poetas que a Espanha deu ao mundo, foi assassinado pouco antes do amanhecer, provavelmente na madrugada do dia 19 de agosto de 1936, sendo uma das primeiras vítimas da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), que mergulhou a Espanha numa das maiores tragédias de sua história.

As forças fascistas e nacionalistas, contrárias à vitória da Frente Popular (esquerda republicana), nas eleições de fevereiro de 1936, mataram o escritor andaluz aos 38 anos, nas cercanias da cidade de Granada, num lugar entre os povoados de Víznar e Alfacar.

O que motivou o absurdo assassinato do autor de obras-primas como o Romancero Gitano? Por certo, o ódio injustificado e grotesco com relação ao fato de Lorca ser o poeta que a cada dia se tornava mais conhecido e respeitado por sua importante obra, naquela altura em plena construção, aliado à sua condição de republicano, pessoa sensível às injustiças sociais, contrário ao atraso que representava a extrema direita. As reformas pretendidas pelo governo eleito, na esteira da constituição democrática de 1931, iam na contramão de interesses conservadores de parte da sociedade espanhola. A explosão de violência se instalou com a revolta dessa parcela da população e de setores militares a partir de 17 de julho de 1936.


Foto do poeta. Fonte: site oficial da Fundación Federico García Lorca*
 
 
Ocorre que Lorca não tinha partido e nem militância política. Tinha seus ideais humanistas e sua sensibilidade contra as iniquidades sociais.

La popularidad de Lorca y sus numerosas declaraciones a la prensa sobre la injusticia social le convirtieron en un personaje antipático e incómodo para la derecha: “El mundo está detenido ante el hambre que asola a los pueblos. Mientras haya desequilibrio económico, el mundo no piensa. Yo lo tengo visto. Van dos hombres por la orilla de un río. Uno es rico, otro es pobre. Uno lleva la barriga llena, y el otro pone sucio el aire con sus bostezos. Y el rico dice: ‘¡Oh, qué barca más linda se ve por el agua! Mire, mire usted el lirio que florece en la orilla’. Y el pobre reza: ‘Tengo hambre, no veo nada. Tengo hambre, mucha hambre’. Natural. El día que el hambre desaparezca, va a producirse en el mundo la explosión espiritual más grande que jamás conoció la humanidad. Nunca jamás se podrán figurar los hombres la alegría que estallará el día de la gran revolución. ¿Verdad que te estoy hablando en socialista puro?” [Entrevista en La Voz, Madrid, 7 de abril de 1936]. Fonte: site da Fundación Federico García Lorca.
 
 
No dia 11 de julho, durante jantar na casa do amigo Pablo Neruda, em Madri, foi aconselhado pelos presentes a não ir para Granada, devido ao clima de violência que tomava conta no país. Todavia, resolve sair da capital e ir encontrar-se com a família. No dia 13 de julho, toma o trem, na estação de Atocha, em direção a Granada. Em 20 de julho, o cunhado Manuel Fernández Montesinos, prefeito socialista de Granada, casado com sua irmã Concha, é detido pelos revoltosos, que tomam o poder na cidade.

Lorca conversa com os familiares e decide instalar-se na casa da família Rosales, no centro da cidade. Embora com membros ligados à Falange Espanhola, de direita, os Rosales eram amigos do poeta. No entanto, na tarde de 16 de agosto, foi preso. Nessa mesma data seu cunhado foi fuzilado. Embora o empenho dos Rosales e outros, as forças de extrema direita decidiram fuzilar também o poeta, como a muitas pessoas.

Há referência de que entre as razões da prisão de Lorca, constantes no documento que se perdeu, estaria, além da motivação política, a sua condição de homossexual.

O poeta foi fuzilado antes do amanhecer, na madrugada do dia 18 ou do dia 19 de agosto de 1936, em algum lugar sombrio entre as localidades de Víznar e Alfacar.

O corpo nunca foi encontrado e seus restos mortais permanecem desaparecidos, como o de milhares de pessoas vitimadas durante aquele período.

Estima-se que a ferocidade da Guerra Civil, que dividiu a Espanha, custou ao país mais de 500 mil mortos. Com a vitória dos nacionalistas, o líder do movimento, general Francisco Franco, instalou o governo ditatorial, que se prolongaria de 1939 até 1975, ano em que morreu.

O jornal espanhol El País divulgou a fotografia acima, na edição de 10 de agosto de 2011, como sendo a possível localização da fossa onde foram atirados os corpos de Lorca e de três outros homens fuzilados com ele, o professor primário republicano Dióscoro Galindo, e Joaquín Arcollas Cabezas e Francisco Galadí Melgar, bandarilheiros anarquistas.

A indicação do lugar - demarcado por cerca de nove grandes pedras - resulta de observações feitas pelo historiador malaguenho Miguel Caballero e pelo arqueólogo aragonês Javier Navarro Chueca. A ideia é de que, em breve, seriam realizadas pesquisas no local em busca do que restou dos corpos do poeta e dos outros.

Há cinco anos foram feitas escavações em uma área próxima, sem êxito.
 
Até o momento não há notícia a respeito do encontro dos restos mortais do poeta.

A Espanha empenha-se hoje na reconstituição de sua memória histórica. Nesse sentido, a localização das fossas onde se encontram os restos dos corpos das vítimas da barbárie faz parte de uma busca necessária, para o estabelecimento da paz de espírito de familiares e de todos os que sofreram, de alguma forma, perdas com tão longo silêncio em torno das valas comuns.

A reconciliação da Espanha com sua história, e não mais a negação desta, passa por gestos como este, de tentar resgatar e dar sepultura digna a quem sofreu violações durante o conflito, de um lado e de outro.

Nestes e em outros casos, enquanto não há um corpo, ou restos mortais, o sentimento que fica é de que a morte não se completa no coração de quem vive e dos que virão depois, a iniquidade e a covardia prevalecem, há uma espécie de prolongamento do luto no tempo e na história, embora não exista dúvida a respeito do fato.

Ao contrário de abrir velhas feridas (que, de resto, nunca se fecham na obscuridade), isto pode levar ao necessário caminho da tolerância, do respeito e do convívio democrático (o que pode haver senão isso?). Trata-se de um resgate e de uma construção que já não importam somente à Espanha, mas a toda a humanidade.

Tomara que um dia se encontre o que restou do corpo do poeta García Lorca, dando-se-lhe sepultura, e há de ser um bem que assim seja, ao menos como lembrança e símbolo do horror, para que violências deste tipo nunca mais aconteçam.

 
Porém eu já não sou eu,
nem meu lar é mais meu lar.
Compadre, quero morrer
decentemente em minha cama.
 
(Do poema Romance Sonâmbulo, de Lorca)**
 
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* Fundação Federico García Lorca, site oficial:
http://www.garcia-lorca.org/Home/Home.aspx
** Antologia Poética, tradução de William Agel de Mello, Editora L&PM, Porto Alegre, Brasil, 2005.
Huerta de San Vicente, Casa-Museo Federico García Lorca:
http://www.huertadesanvicente.com/index.php
Texto publicado pela primeira vez em 19 de agosto, 2011.