quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Travessa da Espera

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

Quem me espera, a essa hora, na Travessa da Espera, no Bairro Alto, em Lisboa?

Eu passo invisível por vielas retorcidas em mil labirintos. Em cada esquina, uma nesga do Tejo e um fado.

Anoitece, personagens saem das portas como das páginas de velhos livros, ganham as ruas, carregando seu abismo, sua dor, seu sonho, sua dificuldade de viver.

Um fantasma caminha rente às portas das tascas, enrolado na manta da solidão, o chapéu caído nos olhos.
 
As janelas abrem-se para o rumor e os cheiros que vêm da calçada.

Cada um de nós é um romance, mergulhados estamos no livro da própria existência, escrito por não se sabe que caprichoso autor.

Mas quem quer ler as últimas páginas?

Ninguém me espera na Travessa da Espera.

photo:j.finatto
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Texto revisto, publicado antes em 10 de dezembro, 2011.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Lágrimas no mármore

Jorge Adelar Finatto
 
photo: Flávia Boni. divulgação da Prefeitura
Municipal de Porto Alegre*
 
Guaíba e seus afluentes, conjunto de quatro esculturas concluído em 1866 pelo arquiteto italiano Giuseppe Obino, foi retirado da Praça Dom Sebastião, em Porto Alegre, e transferido para os jardins da Hidráulica Moinhos de Vento. As estátuas encontravam-se naquele local desde 1936. O motivo da mudança é preservar as esculturas da ação de vândalos.
 
A obra é considerada o monumento mais antigo de Porto Alegre e foi concebida em mármore de Carrara com cinco esculturas, instaladas inicialmente na Praça da Matriz, junto a uma fonte. Anos depois foram dali arrancadas para dar lugar ao monumento a Júlio de Castilhos. 

A escultura que representava o rio Guaíba desapareceu quando o conjunto foi vendido a uma marmoraria para virar pó, em 1924, o que só não aconteceu devido a um protesto da população. A prefeitura readquiriu as peças, reinstalando-as então na Praça Dom Sebastião ao lado do Colégio Rosário.
 
Das quatro estátuas, duas são figuras femininas, as ninfas, e representam os rios Caí e Sinos. As outras são masculinas, os netunos, e simbolizam os rios Jacuí e Gravataí.
 
A medida adotada pela Prefeitura de Porto Alegre pretende salvar as obras da destruição. Algumas já apresentam partes quebradas (braços e narizes), além de sinais de pedradas. Agora passarão por um processo de limpeza e recuperação no novo ambiente, que é cercado e tem vigilância.
 
Não imagino o que se passa na cabeça de quem destrói o patrimônio que é de todos e carrega a memória da cidade. Memória afetiva para muitos, como no meu caso. Freqüentei a Praça Dom Sebastião e seus monumentos quando estudei no Rosário, entre os anos 1969 e 1975. Estavam ali embelezando o lugar, faziam parte da minha e nossa vida de adolescentes.

Não duvido que as estátuas tenham derramado lágrimas, na quarta-feira, 8 de outubro, quando foram retiradas do ambiente onde viveram nas últimas décadas. Muitas gerações passaram pela praça sob o olhar das ninfas e netunos. Acaso não haverá, nesses seres de mármore, uma espécie de sentimento, imperceptível aos humanos, esse mesmo que falta aos destruidores do patrimônio público?
 
Os indivíduos que invadem espaços comuns para acabar com as poucas e raras obras de arte que temos em nossas ruas, praças e parques prestam um grande serviço à desumanização da cidade. Embora não tenham poder de destruir as lembranças de quem freqüentou esses lugares, transformam em pó as memórias do futuro.
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 Notícia e fotos no site da Prefeitura de Porto Alegre:
http://www2.portoalegre.rs.gov.br/portal_pmpa_novo/default.php?p_noticia=173063&HIDRAULICA 

sábado, 11 de outubro de 2014

Uma cidade e um país com medo

Jorge Adelar Finatto

Guaíba. photo: jfinatto
 
Escutei no rádio que os habitantes de um bairro da zona sul de Porto Alegre, à margem do Guaíba, sofrem com uma média de dez assaltos à mão armada por dia. É um lugar bonito, o rio passa no fundo das ruas. Mas há risco em ir até lá. 
 
Também ouvi que em outro bairro, a cerca de três quilômetros do centro da cidade, os bandidos estabeleceram o toque de recolher, marcando hora para os moradores permanecerem em suas casas, deixando a rua para eles.
 
Não vou me estender sobre delitos praticados com violência em todos os cantos da cidade. Nem sobre a elevada criminalidade no trânsito, com condutores causando graves acidentes por dirigir em alta velocidade e de forma incompatível com qualquer ideia de segurança e preservação da vida. O número de mortos e feridos fala por si.
 
Este é um retrato resumido da realidade que vivemos no Brasil. Não conheço uma família sequer que não tenha sofrido com a violência. A situação se agravou muito nas três últimas décadas.

O Estado e a sociedade têm feito pouco para reverter o caos. A insegurança pública é, hoje, ao lado da corrupção (o mal dos males), da falta de saúde e de educação, um dos principais problemas brasileiros. 

Contudo, os debates políticos, nestes tempos de eleições, apenas tangenciam o assunto. Como se não fosse aqui o problema.  Como se os criminosos não estivessem tomando conta das nossas ruas.
 
A redução da violência passa pela luta contra a indiferença em relação à sorte das pessoas que vivem à margem de tudo. É urgente levar serviços e cidadania às comunidades carentes: creches, postos de saúde, médicos de família, centros comunitários (onde as pessoas possam conviver, ter lazer, esportes e cultura); escolas de tempo integral como os Cieps, postos de Justiça, entrepostos que ofereçam segurança alimentar, etc. 
 
Ao mesmo tempo, urge aplicar a lei penal a quem comete crimes. Atualmente a impunidade vigora. Pune-se por amostragem e esta é muito baixa. Penso que somente uma, em cada dez infrações penais, é apurada e processada (provavelmente estou sendo otimista, o número deve ser inferior a este).

Valorizar os homens e mulheres que trabalham na segurança pública é fundamental. Oferecer-lhes remuneração digna e condições de trabalho adequadas é imprescindível, além de investir no ensino, treinamento e aparelhamento destes profissionais.
 
É necessário construir presídios destinados aos que cometem crimes graves e que necessitam de contenção, conforme determina a lei. Os estabelecimentos penais existentes, além de insuficientes, são degradantes em sua maioria. O Estado deve assegurar tratamento adequado para a ressocialização dos apenados. Com espaço físico, sem o amontoamento infernal hoje existente. Prédios edificados com base numa engenharia prisional atenta às necessidades humanas,  em condições de proporcionar acomodação, ensino, trabalho e convivência com familiares de presos.

A execução penal eficaz é condição essencial no enfrentamento da reincidência criminal.
 
São medidas que custam dinheiro, mas o custo, no final, é nada se comparado com a tragédia diária que assola as ruas. E dinheiro existe. No momento em que se punir a corrupção e acabar com a má aplicação e o desvio do dinheiro público haverá recursos.

É doloroso demais ver as nossas cidades entregues ao medo e à violência. Precisamos recuperar a visão do rio no fundo da rua.
  

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Van Gogh e o negócio da arte

Jorge Finatto
 
Jarra com margaridas e papoulas. Van Gogh, 1890
 
Dizem que na pintura não se deve procurar nada, nem nada esperar, além de um bom quadro e uma boa conversa e um bom jantar como felicidade máxima, sem contar os incidentes menos brilhantes.
Vincent Van Gogh, maio, 1890.¹ 

A vida é um negócio impossível de entender às vezes. Quem gosta de ver justiça no mundo não raro se frustra e perde a graça. Vivemos num planeta habitado por mastodontes ferozes e egoístas.

Leio no jornal que no dia 4 de novembro de 2014, em Nova York, a Sotheby's vai leiloar a pintura Jarra com margaridas e papoulas. Van Gogh fez este trabalho na pequena cidade de Auvers-sur-Oise, perto de Paris, poucas semanas antes de morrer. A notícia informa que o lance inicial não poderá ser inferior a 23,6 milhões de euros, estimando-se que deverá atingir "facilmente" os 40 milhões.

O quadro pertence a "uma importante coleção europeia" e teve antes outros proprietários. Observo que este leilão é só mais um passo no itinerário milionário do comércio que envolve as obras do mestre holandês. O anúncio diz ainda, suponho que para emprestar um tom dramático ao leilão e aumentar o valor do objeto, que as flores teriam sido colhidas pelo pintor no lugar onde, poucos dias depois, viria a suicidar-se.

Trata-se de uma colina na qual Van Gogh pintou também o famoso Trigal com corvos, nas cercanias do cemitério interiorano onde está enterrado ao lado do irmão Theo. Estive lá pela primeira vez em 2002.

Pode ter colhido ali as flores, está bem. Mas de onde veio essa "informação"? Reli as cartas que escreveu a Theo na época e não encontrei referência às tais flores (ele costumava comentar detalhes das pinturas com o irmão).

Quanto ao suicídio, é hipótese praticamente descartada. Conforme minudente análise feita no livro Van Gogh, a vida², tudo indica que o tiro que o matou foi disparado, acidentalmente ou não, por um jovem de Auvers que costumava incomodar o pintor. O desentendimento que levou ao tiro nunca restou esclarecido. Cansado de viver e não querendo causar problema ao agressor e sua família, Van Gogh teria inventado a versão do suicídio horas antes de morrer.

Mas o que eu quero considerar é a brutal ironia das coisas. Van Gogh morreu em rigorosa miséria afetiva e material aos 37 anos, em 1890. Dizem que vendeu um único quadro em vida, A videira vermelha. Teve de seu neste mundo somente a roupa do corpo, velha e surrada, um chapéu de palha e outro de feltro, um cachimbo, uns poucos livros e materiais de pintura, tudo custeado pelo irmão mais novo, Theo, que o sustentou, amorosamente, até o fim.

Morreu num obscuro quarto do Auberge Ravoux, sem janela e com apenas uma mesa, um armário embutido e uma cadeira de palha.

Uma claraboia deixava entrar um sopro de luz no solitário ambiente. Deitado na cama de metal (que rangia) ele via, através da abertura, um punhado de estrelas quando a insônia o fustigava.

photo: j.finatto. último quarto de Van Gogh

A maior riqueza deste homem difícil, temperamental e sofrido foi o que trazia dentro da alma. A pintura foi sua única maneira de comunhão. Fracassou em todo o resto, porque ninguém quer saber dum sujeito esquisito, ensimesmado, de olhos muito vivos e coração ingênuo. Um que anda por aí com a caixa de pintura às costas a pintar e a conversar anjos que só ele vê.
 
Em suma, meu caro Vincent, trabalhaste como um louco (acreditavas que assim poderias expulsar os fantasmas que te assombravam), te esfolaste, te arrebentaste no fundo da caverna úmida e fria que foi tua existência (iluminada pelos tocos de vela quando pintavas à noite em teu triste quarto).

Coloriste com sangue teus quadros, e tudo isso para quê? Depois da tua morte, gente esperta passou a ganhar rios de dinheiro às tuas custas, sem nenhum merecimento, sem nada contribuir, sem qualquer proveito para a sociedade, nenhum gesto solidário. É gente que cultua - não a arte e a dignidade do ser humano -,  mas o dinheiro, a vaidade e o poder.
 
Pois é, meu amigo, como vês, por aqui nada mudou. E vem aí mais um leilão. Continuamos no mesmo mundo infernal onde padeceste. Isso tudo não merece sequer uma lágrima. Talvez desprezo, náusea e um suspiro pelos que, como tu, não têm como se defender da indiferença e da arrogância que habita os corações.
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¹Cartas a Theo. Vincent Van Gogh. Editora L&PM, tradução de Pierre Ruprecht, Porto Alegre, 2007.
²Van Gogh, A vida, de Steven Naifeh e Gregory White Smith, publicado em 2012 no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Denise Bottmann.
A escada:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/09/a-escada.html
 

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Presença

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
Me tens aqui lutando
com secas palavras
para iluminar a treva
que nos reúne
em torno do lume
do poema

me tens aqui solidário
beirando a primavera
beirando os trintanos
com raros bens materiais
e nenhum privilégio
de credo ou classe

às vezes louco
às vezes patético
com poucos seres humanos
pra repartir
alguma coisa

me tens aqui poeta
num país injusto e sofrido
caminhando à beira de um rio

a sujeira flutua nas águas
os pobres equilibram-se
em perigosas palafitas

me tens aqui poeta lírico
cada dia mais lúcido

como a primavera
eu invado de repente
a sala adormecida
o coração desabitado

não tenho uma saída
para os dramas
que andam por aí

sequer possuo soluções
plausíveis
para os atrapalhos
cotidianos

o que posso oferecer
e ora ofereço
é essa canção discreta
para dissipar a sombra

um braçada de flores
no inverno

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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Cuando Dios hizo la luz

Jorge Adelar Finatto

Colonia del Sacramento, Uruguai. photo: j.finatto
 
Cuando Dios hizo la luz, yo ya debía tres meses.
(Quando Deus fez a luz, eu já devia três meses.)

A maneira espirituosa de ver a vida é o que distingue a calma do desespero. Ante uma situação difícil (elas acabam chegando), o melhor é tentar manter a serenidade e buscar as possíveis saídas (que sempre existem).

O desespero é mau conselheiro, timoneiro de um navio enferrujado, carregado de tristeza e melancolia, que navega torto pelo mar afora rumo ao inevitável abismo.

O bom humor ajuda manter a alegria de existir (essa coisa que começamos a perder ao nascer) e, com ela, a saúde.

A procura da leveza é um belo caminho na luta contra os tombos da vida.

A grande arte: levantar depois de cair.

Essa frase sobre Deus e a luz é mais um dos grafites montevideanos que recolhi na minha última viagem ao Uruguai.

Grafites como esse levam a rir e pensar. Promovem uma reflexão irônica (sem ser amarga) sobre a vida nossa de cada dia. Não vendem coisa alguma, apenas comunicam algo que influencia positivamente o nosso estado de espírito.

Sim, podemos encontrar algum encanto, alguma graça, no ato de viver, apesar das dificuldades.

A tragédia é quando já não conseguimos rir das coisas. 

Fiquei olhando aquele grafite num muro da Ciudad Vieja e pensei: é bom estar vivo, andar a esmo por essas ruas, sem desesperar em relação ao que vem por aí. Ninguém tem o controle de nada.

Depois fui até o café da esquina. Abri o livro que tinha comprado do poeta uruguaio Mario Benedetti e nele anotei a frase com a caneta esferográfica azul.

A tarde estava quase completa, agora molhada pela garoa que começava a cair. Ficou plena com a chegada da taça de café com leite e do pão com manteiga.

Sim, é bom ir vivendo assim dia a dia, hora a hora, café a café, livro a livro, cada instante a seu tempo. Como se tivéssemos essa sabedoria, como se nos tocasse viver a eternidade toda pela frente. Como se não soubéssemos da dor de estar vivo.
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Texto revisto, publicado antes em 05/12/12
Hay vida antes de la muerte?
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/12/hay-vida-antes-de-la-muerte.html
 

Homenagem à Amália


No mês em que se assinalam 15 anos sobre o desaparecimento de Amália Rodrigues, o Museu do Fado (Lisboa) apresenta o concerto de Camané e Mário Laginha - um tributo evocativo do repertório mais emblemático da artista - que terá lugar no dia 9 de Outubro, pelas 21h00.


Museu do Fado (Lisboa) homenageia Amália Rodrigues
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Museu do Fado:
http://www.museudofado.pt/