sábado, 8 de abril de 2017

Oblivion

Jorge Finatto

photo: jfinatto

O PROBLEMA DA MORTE é o manto de silêncio com que cobre o morto. O  manto de rijo basalto. A morte fecha seus olhos de modo que não pode mais admirar as nuvens, as borboletas, os córregos, os rostos queridos.

O morto não pode ler a palavra aurora, nem ver as magnólias (nessa época tão bonitas, tão bonitas). A memória do morto se dissolve em mil estilhaços de estrelas.

A morte torna o morto côncavo. Encovado em si mesmo, ele parte rumo ao oblívio. Álgida face, álgidas mãos. Da morte nada se aproveita, nem vela, nem coroa de flor, nem lágrima, nem discurso, nem nada. Nada.

O morto espera a mão de um anjo na travessia para o outro lado. E que Deus o receba quando lá desembarcar no seu barco de solidão.
 

sábado, 1 de abril de 2017

Tresloucadas umbrelas

Jorge Finatto

Série Umbrelas. Jorge Finatto

O guarda-chuva é o melhor amigo do homem, junto com o cão. Ambos vêm depois, claro, do ser humano, este sim o primeiro e verdadeiro melhor amigo do homem, embora alguns tenham dúvida sobre isto.
 
Um sujeito desamparado e solitário encontrará sempre no guarda-chuva um companheiro valente e leal nas intempéries da vida.
 
Aqui em Passo dos Ausentes, as umbrelas são tão consideradas que ganharam uma grande escultura na Praça da Ausência, a mais importante (e única, aliás) da cidade.
 
Lembro, a propósito, que Oscar Wilde esteve em nossa aldeia esquecida especialmente para encomendar guarda-chuvas de nossos mestres umbeleiros. Veio para ficar poucos dias, e demorou-se por 40 amanheceres!

Os guarda-chuvas que levou (Wilde era colecionador), com suas iniciais marcadas nos cabos de osso de anta, o acompanharam até o triste fim de seus dias, num pobre quarto de hotel, na Rue des Beaux Arts, 13, em Paris, não distante do Sena. Tão pobre que o teria levado a dizer, pouco antes de morrer: ou sai esse papel (horrível) de parede ou saio eu. Deixou muitas saudades, carinhos e bilhetes entre nós.
 
Objetos antiquíssimos, os chapéus-de-chuva têm uma dimensão onírica e simbólica. Podem significar proteção durante a travessia das dificuldades que a existência nos impõe. E um voo sobre os abismos da indiferença e da solidão. Além, é claro, da função primordial de abrigar-nos da chuva, da bruma líquida e do sol forte.
 
Tenho por eles, como todo ausentino, um afeto imemorial que remonta aos tempos do Dilúvio e que chegou até nós atravessando gerações.
 
No Café do Porto, em janeiro de 2016, expus a minha série Umbrelas, ao lado da outra, Visões da Serra. Duas em uma. Vejam o que disse, por e-mail, o poeta e amigo Ricardo Mainieri, após visitar a exposição:
 
Uma coisa chamou-me, logo, a atenção: as cores. Seja nas paisagens serranas, onde existem nuances de meios-tons, seja nas expressivas "umbrelas" tresloucadamente voando no céu.
Também é visível uma atmosfera de solidão e transcendência nas imagens da Serra e uma discreta alegria nas sombrinhas voadoras.
Pessoalmente, gostei mais das paisagens solitárias de nosso bioma interior. Elas me evocam um momento de reflexão e espiritualidade. Parabéns pela exposição.
 
O que pretendo com minhas fotografias? Passar um pouco de beleza e, talvez, alegria para as pessoas, num momento tão difícil como o que vivemos. Um instante de leveza, luz natural, cor, ar fresco e poesia, elementos que habitam as coisas simples, os Fanicos & Farfalhas do mundo.*

__________ 

Oscar Wilde em Passo dos Ausentes:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/03/oscar-wilde-em-passo-dos-ausentes.html 
 
*Texto atualizado, publicado originalmente em 14 de janeiro, 2016.

terça-feira, 28 de março de 2017

O machado e o sândalo

Jorge Finatto

photo: jfinatto


COISAS QUE CARREGAM UM POUCO de mim: o apito do trem chegando na estação, o apito do navio deixando o cais de Porto Alegre, o som da caixinha de música com bailarina girando. O sorriso da antiga namorada dizendo: que bom que vieste.
 
O galo canta de manhã cedo, eu chegando na casa do avô depois de muito tempo. O abraço. O bule de café, o leite quente, o pão feito em casa, o queijo, o salame, a chimia, a nata. A mesa posta na varanda. Na parede o quadro com a inscrição: o machado fere o sândalo que o perfuma. Vida ingrata. Vida boa.
 
A carreta do velho de capote preto e chapéu cinza passando na Rua São João. A garoa de abril turvando a janela da mansarda. Tudo vivo, pulsando, distante.

Um dia todas as memórias serão presente. Não haverá oblívio nem saudades. Um dia o machado compreenderá que ferir quem só lhe faz bem é maldade pura, e maldade destrói também quem a faz.  Um dia o sândalo poderá viver e perfumar sem medo de ser cortado. E as pessoas se olharão nos olhos.
 

quinta-feira, 23 de março de 2017

The mysterious Mr. F

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto
 
 
Para ser lido ao som de Koto Song, de Dave Brubeck
 

A man walks in the wind
A man walks in the beach
A man and his shadow
A man and his dark solitude
A man and his luminous hope...

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Koto Song, Dave Brubeck:
https://www.youtube.com/watch?v=pvB_ZNtOb4E
 

segunda-feira, 20 de março de 2017

Visitante

Jorge Finatto

outono. photo: jfinatto


Quando o frio chega
eu saio com o bolso
cheio de pássaros
e vou até aí te visitar

tempero o inverno
no teu calor
de mulher

de manhã parto feliz
com tua luz
nas entranhas

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Do livro Claridade, coedição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.
 

sábado, 18 de março de 2017

Senhor do tempo

Jorge Finatto
 
Arraial d'Ajuda, Bahia. photo: jfinatto

SER DONO do próprio tempo é um privilégio de poucos. É algo raro. E também assusta, às vezes, porque é preciso saber o que fazer com o tempo. Embora a vida seja curta, os dias são sempre longos. Mas eu vejo como um enorme presente que a vida nos oferece. Chegar com saúde a esse estágio é uma felicidade que vem de Deus. Quantos, infelizmente, não conseguem?

A literatura e a fotografia, que eram atividades quase clandestinas, passaram à ordem do dia. Poder dialogar com os habitantes das praças, ainda que em silêncio, é um luxo. Enfurnar-se em sebos e livrarias, sem medo de perder a hora, beira a maravilha.

Ler e escrever em paz, fazer um bom café às três da madrugada, dormir perto do amanhecer. Escutar os pássaros depois de acordar, nas árvores da redondeza. Fazer o contrário do que sempre se faz, sem culpa. Fazer o que sempre se quis. Tudo isso uma beleza. Mas é, antes de tudo, uma conquista de décadas de trabalho e compromisso. Agora eu vou contar quantos cocos tem esse coqueiro em Arraial d'Ajuda.
 

quarta-feira, 15 de março de 2017

Passos e traços

Jorge Finatto
 
Arraial d'Ajuda. photo: jfinatto
 
NADA ALÉM de alguns rastros na areia. Nos idos de março, a comunidade de veranistas rareia. Antes era uma multidão de passos em todas as direções, uns sobre os outros, a perder de vista. Depois vieram os ventos de março e foram apagando, um a um, os traços, levando-os para outros espaços.
 
No próximo verão, outros rastros, outros pés, outros passos se desenharão diante do mar, marcando reencontros e o calor de abraços.

Arraial d'Ajuda. photo: jfinatto

O que é da praia, em março, já sem rastros? Solidão sob o sol.
 
Sem a presença dos teus passos, o mar recolhe os braços.

photo: jfinatto