domingo, 16 de agosto de 2020

Urgente primavera

Jorge Finatto

photos: jfinatto, ago. 2020


Nunca a primavera foi tão necessária. A pandemia da covid-19, no hemisfério sul, sobretudo no sul do continente americano, nos apanhou no início do outono e se estendeu por todo o inverno. Os últimos 5 meses foram extremamente difíceis. 

A primavera ainda não chegou. Mas setembro está próximo e o sentimento dela já toca o coração devastado pela realidade brasileira. Com a primavera, vêm as esperanças de que o vírus maldito comece sua retirada, afastando de nós o ímpeto assassino. Claro que, para isso, é fundamental que as pessoas sigam as orientações de combate ao contágio. 

A doença encontrou no Brasil um território fácil à propagação e à produção de vítimas. Um país desestruturado socialmente, com baixo nível de consciência comunitária e pouca capacidade de empatia.  Não é erro afirmar que parte dos mais de 106 mil mortos (até agora) se deve à negação da doença. E muita gente continua sem respeitar as medidas de prevenção.


rosas pra alegrar a alma

Nada como o distanciamento do tempo para revelar como as coisas se passaram entre nós. Que cada um responda pelos seus atos e suas omissões. Em todos os níveis, desde o cidadão comum do povo, que se negou a seguir orientações para evitar a propagação, até os mais altos ocupantes de cargos públicos, que subestimaram o alcance da tragédia e não fizeram a tempo o que precisava ser feito.

Primavera é tempo de renascimento, não de ressentimentos. Tempo de vida nova, de fim de hibernação, de seivas explodindo em energia, luz, alegria. Tempo de voltarmos a acreditar no futuro apesar de tudo. Tenho rezado pela saúde das pessoas amadas e de todos. 

Que Deus nos conceda a sobrevivência como uma nova oportunidade. Façamos  por merecê-la.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Evocação de Rilke

Jorge Finatto 

Flor de Viena. photo: jfinatto


Quem tomará a minha mão
na noite de vermes
quando o asco me derruba
feito cão pela esquina

quem de coração amigo
chegará para beber a gota
de ternura estrangulada

quem me chamará de irmão
na dor imensa
quando o medo me acerta
com suas espadas de fogo

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Poema do livro Claridade, Jorge Finatto. Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1983.

quinta-feira, 30 de julho de 2020

A vida das coisas

Jorge Finatto

photo: jfinatto. Em memória de Helena.


A vida das coisas pende por um fio, se te calas.
                                              Helena Jobim, no poema Princípio.

Este verso da escritora e poeta Helena Jobim é de uma beleza comovente. Remete ao compromisso do poeta com seu tempo, com os seres que habitam o mundo, com a vida geral. A palavra atuando pela afirmação da vida. Olhos atentos, coração aberto, entrega e esperança. 

O texto da querida irmã do maestro Antonio Brasileiro possui atualidade permanente neste Brasil que teima em desmoronar.

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Helena Jobim:

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Terapia de jardim

Jorge Finatto

photo: jfinatto

A terapia de jardim consiste em permitir-se ir ao encontro das flores. Pode ser num jardim público ou particular, ou na natureza. Não colher nenhuma flor. Observá-las, admirá-las, amá-las em vida. Pode até tirar umas photos e levar pra casa. O resto elas sabem fazer: encantam, serenizam, despertam a mente para o silêncio, o belo e o delicado. O perfume é lembrança do paraíso.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Respiro, logo existo

Jorge Finatto

magnólia. photo: jfinatto, julho 2020


Mais de quatro meses de quarentena, reduzido a este microterritório do universo que é minha casa, a sensação é de sufoco. Não que eu não goste de ficar em casa. Sou dos viventes mais caseiros, capaz de repetir ad nauseam as rotinas domésticas. 

O que causa mais sofrimento é o afastamento do contato humano. Somos seres gregários, gerados no generoso útero feminino há milênios, sobreviventes de pragas e tempestades.  Precisamos do outro, ansiamos seu calor. O que não nos impede de sermos, às vezes, profundamente egoístas.  Contudo, neste momento, em meio à peste, devemos manter distância do semelhante.

Os doentes da covid-19 ficam em quartos e ambientes isolados, em casa ou nos hospitais. Quantos já morreram sem ter tido ao menos o conforto de afagar uma mão humana,  de ver o rosto querido de um parente, um amigo. Este é o lado cruel.

O que tenho feito nesses dias de pandemia? Lavar louça, passar pano no chão, tirar lixo, limpar banheiro. Não são novas habilidades. Sempre fui da turma da faxina. Aprendi com o tempo que os outros só nos valorizam (a nós, limpadores e arrumadores) quando o serviço falta. Quando está em dia, passamos invisíveis.

A primeira coisa que faço quando levanto, de manhã, é ir até a janela olhar o quintal, ver se ainda está lá. Com suas árvores, pássaros, hortaliças, flores, terra. Depois do café, é pra lá que eu vou. Respirar. Respirar é tudo que realmente importa. Tudo mais é vã literatura, inclusive esta crônica.

Ao cogito ergo sum (penso, logo existo) do filósofo francês René Descartes, acrescento este modestíssimo, porém incontornável, respiro, logo existo. Porque, nesta altura do drama, é do que mais precisamos. O resto vai ter que esperar.

sábado, 18 de julho de 2020

O Senhor não está

Jorge Finatto

cartum de Quino*


No aniversário de Quino, 88 anos completados ontem, a nossa homenagem! Feliz cumpleaños, Maestro!

NÃO, O DONO da casa não está. Saiu cedo e não disse a que horas volta. Ele foi por aí, não falou onde ia. Talvez não volte mais hoje nem nunca mais. Escafedeu-se. De fato, ele é esquisito. Vivo com ele uma vida inteira e não o conheço.

A Senhora sabe: as pessoas são estranhas. A cidade é grande, tem muito trânsito, muita livraria, muita coisa que ver, fazer, se distrair, e, sobretudo, muitos perigos. Sabe-se lá a que horas uma criatura destas retorna pra casa, se é que retorna.

Andar pelas ruas, nos dias de hoje, é uma odisseia. O Senhor gosta de olhar vitrines, até conversa com manequins, imagine; e perde horas na banca de jornal. O velhote vai ao cinema e dorme durante os filmes, acredita? É um biruta, vai pra onde leva o vento.

O quê, veio buscá-lo? Não, minha Senhora, não vale a pena ocupar-se dele, sujeito sem importância, tiozinho solitário, frugal. Gosta de viver, sim, e só isto. Teve vida difícil. Melhor deixá-lo em paz, não acha? Eu acho.

A Senhora tenha paciência, vá embora, que eu tenho mais o que fazer. Não, não posso convidá-la a entrar, não me leve a mal. Adeusinho, adeusinho.
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*site oficial de Quino:
http://www.quino.com.ar/  
Este post foi inspirado no cartum do genial artista argentino, "pai" de Mafalda, de quem sou grande admirador. Publicado antes em 3 de janeiro, 2018.

sábado, 11 de julho de 2020

As primeiras horas

Jorge Finatto

photo: jfinatto



Imagino o que os habitantes da Arca de Noé devem ter sentido quando as águas do Dilúvio baixaram e puderam olhar o azul do céu outra vez. Hoje, depois de muitos dias de pandemia, chuva, frio, ventania, ciclone bomba, enchentes, mortos e desabrigados, e sem poder ver uma nesga de céu claro, o dia amanheceu azulzinho. Abri a janela do escritório e respirei aquele azul.

Como tinha sede do Sol, desci a escada Santos Dumont e fui para o nosso jardim. Um pouco maltratadas com o mau tempo, as rosas estavam lá ainda. E as camélias, as magnólias, as azaleias, as flores de mel, as éricas também. Fiquei ali com elas, apanhando sol.

Depois fui recolher galhos e gravetos que caíram com a tempestade, para acender o fogão a lenha. Cada movimento com calma, como se o mundo estivesse começando agora. E fosse preciso viver essas primeiras horas com a delicadeza e o espanto de uma borboleta.