sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Navegações

 Jorge Finatto

photo: jfinatto



Não existem chegadas
e partidas definitivas
rijos itinerários nascidos
na rota turbulenta
dos abismos


o que há é esta
necessidade de navegar
que começa não sei
em que rio 
ou fundão
e depois se expande


um dia toda busca
cristaliza
e se pode, enfim,
recolher as velas
no porto do outro
mundo


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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990. 

sábado, 21 de novembro de 2020

Mais um negro

                                                                                                                                               Jorge Finatto

Dor, indignação, revolta, vergonha. São alguns sentimentos que nos invadem diante da terrível morte de João Alberto Freitas, 40 anos, pai de quatro filhos, por espancamento praticado, segundo amplamente divulgado, por seguranças no estacionamento do supermercado Carrefour em Porto Alegre. O fato, ocorrido na quinta-feira, 19/11, véspera do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, é revelador, mais uma vez, da intolerável violência existente na sociedade brasileira, que atinge visceralmente os segmentos mais vulneráveis da população.

O homem que foi morto era negro (mais uma vítima). O que justifica bater numa pessoa até a morte? Como pode semelhante agressão acontecer no ambiente de um supermercado? Por certo o processo judicial irá esclarecer os fatos e suas circunstâncias e aplicará a lei. Todavia, a aplicação da lei penal não tem o condão de devolver a vida à vítima. Tampouco consegue desfazer o incomensurável trauma causado aos familiares, amigos e à sociedade em geral.

O tema do racismo vem à tona em meio à perplexidade. Negar a existência de racismo, no Brasil e no Rio Grande do Sul, é negar a luz do Sol. Basta atentar para a posição em que a população negra está colocada, ainda sem igualdade de acesso aos bens da vida que outros grupos sociais possuem. 

O tratamento discriminatório é uma triste realidade. Os negros foram deixados à margem e à míngua durante os últimos quatrocentos anos. O racismo é, em si, uma forma perversa de marginalização e de negação da dignidade da pessoa humana. Um sistema de opressão econômica, social e política que estrutura a sociedade.

Joaquim Nabuco afirmou que a luta pela liberdade, no Brasil, não se esgotaria com o fim da escravidão (que ocorreu com a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888). Ela se prolongaria por muito tempo no combate aos efeitos do regime abominável. A realidade brasileira insiste, todos os dias, em dar razão ao notável abolicionista pernambucano.

Sendo de natureza estrutural, estando impregnado no funcionamento da sociedade, e se reproduzindo ao longo de séculos, é necessário lutar contra o racismo a cada dia. Por isso, têm razão os que sustentam que não basta não ser ou não se considerar racista, é preciso ser antirracista, praticando atitudes contra este monstruoso e detestável sistema de opressão. 

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

A segunda onda à vista

 Jorge Finatto

A má notícia deste final de ano é que a pandemia, depois de arrefecer um pouco nos últimos três meses, parece que volta a intensificar-se. A julgar pelos números recentes, estão aumentando a transmissão e a ocupação de leitos e UTIs de hospitais em várias cidades e Estados do Brasil. O número de óbitos permanece elevado. 

Em suma, a primeira onda mal começava a diminuir e uma segunda vaga anuncia-se pela fresta sombria das estatísticas. O sistema de saúde ainda não se recuperou e torna a sofrer grande pressão.

O agravamento demonstra que os cuidados diminuíram. Muita gente quer ter vida social como antes e faz aglomeração. Esquecem-se de que só houve melhora quando se adotaram cuidados básicos como uso de máscara e distanciamento. Um coisa é sair para trabalhar e estudar. Outra é querer viver sem os limites necessários enquanto não se vence o vírus. 

Não há mais paciência com esta doença. Ela desmontou a vida de milhões de pessoas em todos os cantos. Há quase nove meses trancado, com pouquíssimas saídas à rua (só em caso de necessidade), sinto-me, como todos, mareado, exausto.

A falta de um plano do governo federal para enfrentar a grave crise de saúde pública, a ausência de lucidez e sensibilidade para lidar com a situação, colaboraram muito para o tamanho da tragédia que se abateu sobre o Brasil: 166.743 mortos até agora.* 

Ao invés da construção conjunta de ações para mitigar a pandemia, com os entes da federação e a sociedade, preferiu-se negar-lhe o poder de destruição, optando-se por politizar a doença. Comportamento absolutamente incompreensível à luz da razão. 

Enquanto isso, só nos resta redobrar os cuidados e esperar pela vacina. E rezar pedindo proteção a Deus, rogando-lhe por generosas doses de resiliência pra suportar tudo isso.

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*Estadão:

https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,taxa-de-transmissao-da-covid-no-brasil-volta-a-passar-de-1-diz-imperial-college,70003518266

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Por quem choras, Maria Filipa?

 Jorge Finatto 

photo: jfinatto. Amsterdam
 

Por quem choras, Maria Filipa?

Quem mastigou teu coração e depois cuspiu no fundo das águas?

Estás sentada à beira do canal, na tarde de outono, em Amsterdam.

Me olhas com os olhos mais tristes do mundo. Passageiro efêmero no barco, numa cidade distante e povoada de ausência, eu nada fiz naquela hora.

Eu estava de passagem entre um cais e outro, um canal e outro, um deserto e outro.
 
Devia ter me jogado nas águas turvas da tarde de domingo. Nada era mais importante do que ir ao teu encontro.

Devia ter ficado o resto do dia contigo, em silêncio, ali naquele banco, sem nada esperar. Exceto talvez dizer e receber um pouco de consolo.

A cara de anjo, o capuz azul da solidão, os olhos mais tristes do mundo, me olhaste.
 
Da minha solidão eu te acenei.
 
Foi tudo que fiz, um gesto na garoa fina. Por um instante tuas lágrimas diminuíram e pude perceber que teus olhos me seguiram. Depois tua cabeça caiu sobre o colo outra vez, onde as mãos pálidas repousavam.

O barco sumiu sob as pontes atravessadas pelos ventos de novembro. Eu dentro dele.
 
Entre dois cais, entre dois nadas.
 
photo: j.finatto
 
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Texto revisto, publicado antes em 16 outubro, 2012.

domingo, 8 de novembro de 2020

Pela construção de pontes, não de muros

 Jorge Finatto

Joe Biden. photo: Reuters

O povo dos Estados Unidos acaba de dar um presente ao mundo: a eleição de Joe Biden.
Isto significa, entre outras possibilidades, fortalecimento da democracia, antirracismo, multilateralismo, respeito às diferenças, tolerância, preservação do meio ambiente, busca de negociação entre opostos, preocupação com as pessoas.
E uma certeza: aos quase 78 anos não se tem muito tempo nem direito de insistir em velhos erros, preconceitos, vaidades, arrogâncias e truculências.
É hora de celebrar a esperança. Chega de tanta escuridão lá como aqui (o exemplo americano há de chegar ao Brasil em 2022).
Pela construção de pontes, não de muros.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Drummond 118

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


O jovem leitor afeiçoou-se ao poeta. Compartilhou com ele, mais do que palavras, a viva vida que elas expressam. E como diziam coisas as palavras do bardo itabirano!

Havia entre poeta e leitor uma secreta cumplicidade. Um andar juntos pelo mundo. Uma troca de confidências, alegrias, queixas, protestos, malquereres, desertos, amores e esperanças. O invisível amigo percorria com o moço os duros caminhos da vida

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) será sempre o lúcido, o lírico, justo enlace razão-emoção, construtor de versos indeléveis na língua universal da poesia. Enquanto houver livros e leitores, Drummond será sinônimo de altíssima poesia e claro pensamento.

O ser-no-mundo, às vezes cambaio, às vezes indescritivelmente só, mas sempre comprometido com a vida em sua humana jornada.

O poeta não se esquivava e respondia as cartas que lhe chegavam todos os dias. Generoso, sabia colocar-se, não acima, mas ao lado do leitor que o procurava ávido por um contato, mínimo que fosse. Respondia com incomum e delicada atenção.

Quando escreveu, na resposta, o nome do missivista interiorano, manuscrito com tinta azul na folha branca (que o tempo esmaeceu), retirou-o do anonimato, reconheceu-lhe a existência, tratou-o como um semelhante. 

Sensível ao outro, ele sabia que o poema só existe quando desvelado aos olhos do cúmplice leitor. A carta que dele recebi é, para mim, verdadeira relíquia literária e sentimental guardada no cofre do coração. 

Drummond fez um imenso bem à minha alma, aos meus dias de juventude e aos dias que vieram depois. Neste 31 de outubro, em que se comemoram seus 118 anos de vida (vida estendida no numeroso testamento da palavra), renovo a emoção de abraçá-lo com amor de leitor. Afeto que o tempo não apaga.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

O processo

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


SOU habitante
da beira do rio
condenado
a não ver o rio

afundado em seco
decifro papéis
que nada me dizem

a página em branco
espera o verso
que não escreverei

o que encontro
no gabinete
a essa hora
da manhã
é não ter tempo
pra mais nada

enfrento a trama
invencível
a dor sem abrigo

a grande trituração
das almas
no processo

resta apenas
o duro ofício
que não pode
ser adiado

impossível fugir

o carteiro
envelhece
enquanto aguarda
as cartas
que não enviarei

observo por um momento
o voo branco
da gaivota
sobre o Guaíba

nesse instante
invade-me a tristeza
do prisioneiro
(a essa hora da manhã)

desapareço
na névoa

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Poema do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.