sábado, 30 de abril de 2022

Dádiva

 Jorge Finatto

photo: jfinatto. Lago Lugano. Suíça


Cada dia vivido é uma dádiva. Por mais que o medo se esforce em jogar tudo no lixo.
As flores no meu jardim são uma prova (a mais) de que Deus existe. E que grande artista Ele é!

Ele me concedeu esse tempo de bônus.
Não tenho um segundo a perder. O medo que vá fazer vítima noutra galáxia.

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Resenha de outono

 Jorge Finatto



Nos últimos dias, caminhando no mato perto de casa, encontrei com lebres (delicadas, bonitas e velozes), lagartos (antediluvianos, não muito simpáticos), cutias (ligeirinhas e graciosas), gambás (com a fama peculiar), entre outros.
No meu quintal essas criaturas também costumam aparecer de quando em quando. Além deles, pássaros e aves vários, beija-flores, saíras, sabiás, andorinhas, caturritas, tucanos, marrecos, pavões (dois deles aterrissaram no pátio há 1 ano e meio), canarinhos, corruíras, etc. A presença deles aqui em casa aumentou com a pandemia.


Os pinheiros nunca deram tanto pinhão como agora e os figos estão tão doces como os araçás, as jabuticabas, as laranjas do céu e as uvaias. A horta humilde e orgânica dá seus vigorosos alimentos.
Pelos vistos nem tudo ficou mais amargo e contaminado nesses dois anos de angústia e isolamento. A natureza continua bela e forte.

A beleza do outono é uma dádiva. A vida continua.


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photos: jfinatto

sexta-feira, 22 de abril de 2022

No tempo das açucenas

 Jorge Finatto

photo: jfinatto



Teve um tempo em Porto Alegre em que era possível andar pelas ruas de madrugada. Parece mentira mas não é. Muitas vezes eu caminhei de noite, altas horas, sem medo de ser assaltado ou morto. Agora seria impensável sair por aí assim, sem alto risco.

Gostava de caminhar pelas ruas. Anos 1970. Sentia falta do interior de onde eu vinha e das pessoas que perdi na travessia para a capital. Uma coisa em especial me tocava naquelas caminhadas: o perfume das açucenas. 

Havia o problema incontornável da ditadura, prisões, desaparecimentos, manifestações, luta armada, atentados, sequestros, mortes, clandestinidade, exílio, bocas fechadas. Um enorme corte nas liberdades democráticas, no poder do diálogo sobre a força. A derrota do bom senso contra a violência. 

Em meio a tudo, havia as açucenas e seu perfume nas ruas da cidade. Hoje pouco saio e não sei se ainda existe essa flor que muitos associam a melancolia e perda de pessoas queridas. 

Sei lá por que lembrei disso. Talvez ande necessitado de consolo como toda a gente nesses dias de alucinada estupidez e maldade aqui e no mundo. Em que a perda de sentidos, a começar pela dignidade da vida, é devastadora. 

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Porto Alegre, felicidade radioativa

 Jorge Finatto

Guaíba. photo: jfinatto


Durante uma aula, no curso de engenharia química, o professor falou que havia radioatividade na areia do Guaíba. Deveríamos ir a campo com um contador Geiger para medir a radiação e confirmar a informação. Não havia motivo para preocupação, disse ele, era em quantidade benigna. 

O mais interessante, segundo afirmou, é que muitos moradores das cercanias do rio guardavam em suas casas porções de areia devido ao efeito calmante, relaxante, que supostamente produziam nas pessoas. E o faziam seguindo uma velha tradição, sem saber que isso era devido à baixa radioatividade e sua propriedade, digamos, sedativa. 

 

Nunca soube em que medida isto de fato acontece pois não fiz o trabalho de campo. Acabei abandonando o curso de engenharia, como fiz em relação a outros que comecei e não terminei. Mas não esqueci a história da areia radioativa. 

 

O fato é que sempre que me aproximo do Guaíba me sinto mais leve, me invade uma sensação de liberdade e paz. Para aqueles que, como eu, banharam-se e brincaram em suas águas na infância, o rio é um mar de recordações. Além disso, os mais lindos crepúsculos habitam suas águas. 

 

 

domingo, 27 de março de 2022

Porto Alegre 250 anos

 Jorge Finatto

Cais. photo: jfinatto


O Guaíba é um mar de lembranças. Do tempo em que a gente se banhava e brincava em suas águas.

Os navios levavam e traziam sonhos e esperanças.

O cais: cartão postal de encontros e despedidas.

O rio é a vida e a alma da cidade. Mas a cidade ainda não o preserva como devia, lançando-lhe toda sorte de sujidades.

Amor com amor se paga, antes que o amor desapareça, e restem só fotografias.

domingo, 13 de março de 2022

Territórios perdidos

 Jorge Finatto

resistência da vida. photo: jfinatto


Temos visto as dolorosas imagens da Guerra na Ucrânia. Um grande desastre humanitário que poderia e deveria ter sido evitado. O país agressor é a Rússia desde o início. É uma invasão cruel à Ucrânia que não poupa vidas inocentes em territórios civis, promovendo uma enorme destruição.

Não foi o povo russo que declarou guerra contra os vizinhos ucranianos. Pelo contrário, milhares foram às ruas protestar contra a guerra e, por protestarem, foram presos. As populações de Ucrânia e Rússia não querem e não merecem a tragédia que estão vivendo. 

São líderes obscuros, personalidades sem nenhum limite e absolutamente insensíveis ao sofrimento humano que fazem a guerra, não o povo. O povo paga com a vida e a liberdade pelo inconcebível desvario de chefes políticos.

O que mais chama a atenção no noticiário é que em todas as cenas de refugiados (fala-se em cerca de 2 milhões e meio) é avassaladora a presença de mulheres, crianças e idosos, além de alguns homens. São os mais frágeis, os mais expostos e abandonados, os que fogem da violência deixando tudo para trás: pais, filhos, parentes, amigos, vizinhos, empregos, cidades, bairros, ruas, casas, escolas. De uma hora para outra suas histórias foram apagadas.

Como se reconstrói uma vida em lugar estranho, distante, sem nada a esperar além da boa vontade de cidadãos de países estrangeiros? Países e cidadãos que, de resto, têm seus próprios problemas para cuidar e cuja sobrevivência é uma sofrida luta diária.

Qualquer discussão em torno das "razões" que levaram à invasão russa é rigorosamente descabida e absurda. Nada pode justificar o emprego de forças armadas contra civis indefesos (o que, afinal, é o que acabou acontecendo, conforme se vê pelos mortos, feridos e multidões de refugiados). 

A humanidade, em todo o planeta, é testemunha desta inacreditável agressão contra os direitos humanos. O que se espera é o fim imediato da violência, que permita à população ucraniana reconstruir sua vida e recuperar os territórios perdidos na alma, nos afetos e no direito à existência digna em seu país. 

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Ao viajante solitário

Jorge Finatto                                                                                                                                                  

Canela, RS. photo: jfinatto
 

AS COISAS que não aconteceram são as que mais se afeiçoam à minha memória. A biografia que vale os veros registros: a dos não-acontecimentos, a dos impossíveis sonhos. 

O resto são pedras que se carregam dentro dos bolsos. Como os suicidas caminho do mar. 

Essa cidade é onde o abandono é dono.

As praças vazias onde me quedo ouvindo falecidas conversas. Ó ausências do mundo!

Bardo obscuro e tabelião de papéis perdidos em Passo dos Ausentes, eu vivo os interstícios. Os ásperos padecimentos da humana travessia. Cheio pelas orelhas de frustrações, tapas na cara, rasteiras e desejos. Quem houvera nesta vida maledeta se dignasse escutar meus ais.
 
Viver é assunto proceloso e bem noturno. Por isso estou aqui. Me contando, me inventando.

Sou o bardo barroco, ressuscitado em salvadoras prosopopéias. A obsessão pela música interior. Essa que me faço e entrego ao vento. Construo o venturoso canto. Não me interessa a realidade. Quem quiser a realidade, bem a guarde e embale.

Sou viajante de um tempo que se esfuma. O tal.

A saudade é um retrato em branco e preto na gaveta do oblívio. Os pedaços de cada um.

O meu coração habita um quarto de pensão. A pensão se chama Ao viajante solitário. Às vezes penso que o mundo é uma grande pensão. A pensão dos viajantes solitários. E viver é um fiozinho de orvalho estendido de manhã sob o sol.

Somos parceiros das nuvens e da bruma. Caminho para o lugar ermo dos esquecidos.

Eu, Landgrave dos Santos Strano, inquilino do absurdo, apresento-me ante vossa alta ausência.

Passo dos Ausentes, nos Campos de Cima do Esquecimento. Rio Grande do Sul, Brasil, Fim da Via Láctea. Dou fé e assino.

Provavelmente outono.

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Do livro Histórias de Passos dos Ausentes.