segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A misteriosa expedição da Nasa a Passo dos Ausentes

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Condições atmosféricas peculiares fazem de Passo dos Ausentes uma estação climática e astronômica única no planeta. Estranhos fenômenos costumam ocorrer nesse longínquo lugar ao sul do mundo.

Estas foram algumas das conclusões do relatório assinado pelo cientista norte-americano John Joseph de la Rosa, que comandou memorável expedição científica a nossa cidade em 1959.
 
Uma cópia do documento está arquivado na Sociedade Artística, Literária, Filosófica, Histórica, Geográfica, Astronômica, Geológica, Antropológica e Antropofágica de Passo dos Ausentes.

A expedição foi organizada pela Agência Espacial Americana (Nasa) por razões que nunca foram esclarecidas. A equipe de seis cientistas ficou hospedada durante 40 dias na pensão Ao Viajante Solitário, conforme consta dos registros daquele estabelecimento.

As coisas se passaram de maneira obscura, a começar pela forma como aqui chegaram os viajantes ianques. Vieram num enorme balão da força aérea americana.

Num dia de maio,  o objeto voador azul-marinho com uma águia branca desenhada surgiu da bruma e pousou o cesto com a tripulação ao lado do coreto da Praça da Ausência, amassando um luminoso canteiro de margaridas amarelas. Segundo se apurou na ocasião, o balão teria partido de um navio de guerra ancorado na costa gaúcha, na altura do Farol da Solidão.

A população reuniu-se na praça para saber o que acontecia. De la Rosa apresentou suas credenciais a Don Sigofredo de Alcantis, nosso filósofo-mor, presidente da SALFHGAGAA. Pediu-lhe permissão para fazer estudos espaciais, astronômicos e atmosféricos nas cercanias da cidade.

Don Sigofredo indagou se tinham autorização do governo federal para entrar no território brasileiro, do qual, como devia saber, Passo dos Ausentes era parte.

O americano esboçou um sorriso irônico e devolveu:

- O senhor tem certeza de que este lugar pertence ao Brasil? Não vimos nada no mapa nem identificamos qualquer registro oficial. Viemos em paz, Don Sigofredo, não existe razão para envolver as autoridades brasileiras nisso. Estamos em missão científica por determinação do nosso governo. 

- Não vou discutir o assunto da nossa inexistência oficial com o senhor - disse com voz grave e pausada Don Sigofredo.  - Já nos bastam os problemas que enfrentamos, há mais de cem anos, com a burocracia do governo, que insiste em não conceder existência jurídica a nossa cidade. Se vêm em paz, podem ficar o tempo que quiserem. Apenas um aviso: façam por merecer a hospitalidade.

Sobre os acontecimentos que sobrevieram e como aquela expedição mudou a vida da nossa cidade trataremos em breve.


photo: j. finatto

Enquanto isso, vale lembrar ao raro leitor que tratamos da origem de Passo dos Ausentes no texto publicado no blogue em 25 de dezembro, 2009.

Convém recordar, ainda, que tramita desde o final do século XIX, nos órgãos burocráticos do estado do Rio Grande do Sul, o processo que trata do pedido de reconhecimento de Passo dos Ausentes como cidade. Até hoje nada conseguimos.

O último parecer da comissão foi ofensivo à nossa pretensão. Afirma-se no tal documento que a Equipe de Estudos Antropológicos para Verificação da Existência do Lugar e seus Habitantes não conseguiu sequer subir até nosso lugar de viver, ante as péssimas condições de acesso por córregos, imensos paredões de pedra e estradas de chão a pique, quase verticais em alguns trechos, culminando em densas nuvens de neblina, chuva e austeras trovoadas consequentes a raios que explodem ameaçadoramente perto dos forasteiros que se aproximam.

Os medrosos e pouco diligentes funcionários não chegaram, ao menos, perto do Contraforte dos Capuchinhos. Assustaram-se com as alturas e clima hostil. 

Não satisfeitos com o fracasso da incursão, puseram uma placa absurda no início da Estrada da Ausência, 90 km a leste e 100 km acima  de São Francisco de Paula, escrevendo em letras vermelhas sobre fundo branco os dizeres:

Passagem temerária.
       Valhacouto de fantasmas.

Habitamos entre nuvens.

Somos voláteis e invisíveis para o mundo oficial. Nenhum registro, nenhum apontamento. Não figuramos nos mapas, nos roteiros turísticos, culturais e históricos do Rio Grande do Sul. Os jovens muito cedo vão-se embora em busca de oportunidades.

Somos poucos. Sobrevivemos por pura teimosia neste lugar, agarrados à memória e a uma inexplicável esperança.

Somos uma página caída no desvão do tempo, escrita a mão pelo Criador num momento de distração e enfado com as coisas tristes desse mundo. 

O Senhor cultivava um instante de poesia quando desenhou este lugar perdido nos Campos de Cima do Esquecimento.


domingo, 31 de julho de 2011

Jogos Olímpicos 2016

Jorge Adelar Finatto


 O cartão-postal vai brilhar intensamente outra vez, será um grande espetáculo visual para o mundo, o Rio é mesmo deslumbrante, o povo é acolhedor, as praias são lindas. Depois, tudo se apaga e volta a ser como antes, só que pior, porque dinheiro grosso foi gasto sem critério e sem sentido, perdendo-se uma grande oportunidade.

O amigo leitor está no justo descanso do fim de semana.

Desembarcou na ilha-refúgio de dois dias quase sem fôlego. A rude lida da sobrevivência leva ao limite nossa paciência e capacidade de resistência.

Tudo que se quer, nessa hora, é estar perto das pessoas amadas. E um bom descanso, no sofá ou na velha cadeira de balanço, um livro, uma revista.

Não deve o cronista importunar esse santo repouso. Os temas tratados hão de ter alguma leveza, trazer um pouco de ar fresco.

Contudo, quero falar de um assunto que me atormenta e que gostaria de compartilhar.

Trata-se dos Jogos Olímpicos de 2016.

Penso que a sociedade brasileira, você, eu, todos nós deveríamos ter sido consultados sobre a realização dos Jogos no Rio de Janeiro. Motivo principal: a extraordinária soma de dinheiro público que será utilizada no evento. Fala-se algo em torno de R$ 30 bilhões. Muito provavelmente será bem acima disso, como costuma acontecer.

A cidade maravilhosa foi escolhida sede da Olimpíada em Copenhague, na Dinamarca, no dia 02 de outubro de 2009, vencendo as concorrentes Madri, Tóquio e Chicago. Mas terá sido mesmo uma "vitória" ou, antes, um alívio para as cidades preteridas, porque não terão de gastar essa babilônia em meio a uma das piores crises econômicas que o mundo já conheceu?

sexta-feira, 29 de julho de 2011

A solidão da palavra: partilha

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Guaíba e seus barcos.


A solidão da palavra é partilha.

Escrever é particular e solitário como viver. É um modo de comunicação difícil, isolado, clandestino.

Não tenho hora para escrever, mas gosto da noite. Escrevo em qualquer lugar e não só no escritório. Posso escrever em avião, sala de espera, quarto de hotel, fila, ônibus, trem, banco de praça.

Também gosto de escrever nos cafés. É um estar sozinho acompanhado. Não importam as conversas, os ruídos do entorno. Escrevo à mão, em pequenos cadernos, em páginas de livros, folhas soltas, guardanapos.

Se fosse músico ou pintor, acho que não escreveria. A música e a pintura são linguagens universais. Não precisam tradução, intérpretes, obras de consulta, dicionários. Basta ouvir, olhar, sentir. É o ideal da arte. Não é o caso do texto, que se limita àqueles que sabem a língua.

Escrever, escrever de verdade, com compromisso e sentimento, é ofício duro. Salvo raras exceções, não é possível viver de literatura. É necessário ter outra profissão para sobreviver. O tempo para escrever e ler é pequeno.

Uma ocasião alguém me perguntou como encarava o fato de escrever há tanto tempo, ter alguns livros publicados, e permanecer um autor desconhecido. Eu disse que via com naturalidade.

Olhando para os que vieram antes, encontramos cerca de quatro mil anos de passado literário. O livro de Gênesis, por exemplo, foi concluído por Moisés em 1513, antes de Cristo. Se tomarmos apenas os escritores que surgiram a partir da Idade Média, encontraremos centenas e centenas de bons autores esperando leitura.

O tempo do leitor é raro.

O mundo dos livros também é regido por leis de mercado. Certos escritores têm presença constante nos meios de comunicação, nos catálogos das editoras e nas estantes de livrarias, por diversas razões, principalmente comerciais. A qualidade literária nem sempre é o critério mais observado nesse processo. Então, ser lido, mesmo por poucas pessoas, sendo escritor fora do mercado, é realmente uma coisa muito boa.

A solidão é nosso lugar no mundo. Cada um vive na sua ilha da maneira como pode. E palavras são barcos que abrem caminho entre as ilhas. 
 
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Texto publicado em 19 de maio, 2010. Após revisão, é agora republicado.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

No tempo das camélias

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


A camélia é uma flor sem vaidade (sim, existem flores desprovidas de vaidade). Cresce no quintal da mais humilde casa até o jardim do mais rico palácio.

Nesse tempo de sol entre nuvens, a camélia surge com sua face iluminada. Se há algo que salva os dias sombrios do inverno, é ela.

A camélia é criadora de beleza. Certas combinações difíceis de imaginar, como misturar o verde escuro das folhas do arbusto com o vermelho carregado da flor, são bela invenção cameliana. 

Porto Alegre é uma cidade com muitas praças. 

Aqui no meu bairro há várias. Numa delas, camélias brancas e vermelhas espalham-se entre os bancos, que nessa época passam quase sem gente. A suave presença dessas flores tece momentos de viva emoção.

Na tarde de hoje, vi dois pés de camélia cor-de-rosa, caprichosamente plantados na calçada. Pura visão.

E pra não dizer que neste blogue só se falam amenidades, um pouco de realidade.

A crueldade não tira férias. Os atentados, com muitos mortos, na Noruega, mostram apenas que a europa evoluída, humana e racional é, em certa medida, uma imagem na água, uma ilusão romântica.

O fundamentalismo está muito forte por lá, enraizado em movimentos como o neonazismo, os nacionalismos extremados, a criminalidade organizada, o racismo, a xenofobia, o desrespeito ao diferente, e em tantos outros processos de violência e exclusão (até mesmo em relação a países periféricos do continente).

A maior parte dos europeus, contudo, não aceita viver neste mar de sangue e intolerância. É com esses que precisamos contar, na Europa e em todos os lugares, para dar a volta por cima.

Sobre a morte de Amy Winehouse não vou falar nada. Seria levar a tristeza longe demais.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Kabuki dos passos perdidos

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
O tempo que ele passou escondido, enclausurado no quarto escuro de si mesmo, encurvado no canto da parede, a cabeça nos joelhos, foi um tempo perdido.

Passos perdidos são pétalas secas entre as páginas de um velho livro. Alguém devia ter vindo resgatá-lo. Mas não, estavam todos ocupados construindo seus próprios desertos.

Um dia de desespero ele abriu a claraboia. Foi o primeiro gesto para sair do ermo. Depois abriu a janela. Começou a olhar a rua e as pessoas que passavam. Um outro dia abriu uma fresta da porta. Como fazia um dia solar e a brisa corria na copa das árvores, colocou uma cadeira na calçada e ali ficou.

Primeiro conversou com as crianças. Depois com os grandes. Passou a fazer isso nas tardes de sol daquele inverno. Os vizinhos o cumprimentavam, tornou-se conhecido como o moço solitário da casa da esquina.

Talvez por isso todos sentiram tanto a sua falta e choraram no dia em que, por malícia, ele não abriu a porta e nem botou a cadeira na calçada. Uma espécie de felicidade sentiu o moço solitário da casa da esquina quando a água salgada das lágrimas verteu cor de prata por baixo da porta.

Então ele encheu quatro frascos de lágrimas. Um guardou entre os livros na estante. Os outros enviou pelo correio. Um à ex-mulher, outro a sua mãe na cidadezinha do interior e o terceiro ao melhor amigo, que foi morar no Japão.

sábado, 23 de julho de 2011

Naomi Kumamoto

Jorge Adelar Finatto


A música instrumental brasileira é muita rica. Os nossos virtuoses são, em geral, inspirados e criativos. O chorinho é um gênero de música essencialmente brasileiro, tão nosso como o samba. Como tudo que é bom e verdadeiro, tornou-se universal. 

Do choro já se disse que se trata da música erudita do Brasil, pelo refinamento das construções melódicas e apuro na execução. Ao mesmo tempo, tem uma certa leveza, uma alegria de ser e de estar no mundo que cativam o ouvinte.

Estava garimpando algo novo no setor de discos instrumentais quando avistei o cd Naomi vai pro Rio. Resolvi escutar um pouco. Fiquei muito feliz com a escolha (escolher discos, como livros, é um tormento, pois cada escolha implica, também, uma perda, como em todo o resto nesta vida breve).

Impossível traduzir em palavras a música. Não sou especialista, mas um amador curioso com algumas horas de voo. O disco de Naomi Kumamoto merece ser ouvido com a calma. Com um pequeno detalhe: Naomi é japonesa, nascida em Kobe, formada em flauta na Universidade de Pedagogia de Osaka, tendo trabalhado durante anos em orquestras sinfônicas do seu país. 

Um dia Naomi descobriu o choro, num disco de Altamiro Carrilho, e apaixonou-se. Durante cinco anos estudou o gênero sozinha, ouvindo discos. Tornou-se ela própria compositora de choro. A história culminou com sua mudança para o Rio de Janeiro, onde mora desde 2004. Dedica-se a tocar seu instrumento, a flauta, compor e ensinar música, desenvolvendo parcerias com importantes músicos brasileiros. Também colabora com instituições do nosso país, como a Escola Portátil de Música, na qual leciona.


Neste disco fica claro o acerto de Naomi em vir para o mundo do choro, revelando-se compositora refinada. Cria com muito talento, muita delicadeza e emoção. O cd tem 16 músicas, sendo 13 de autoria de Naomi. Melodias belas, na tradição de Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Chiquinha Gonzaga e Heitor Villa-Lobos, entre outros.

A música dispensa fronteiras e nacionalismos. Seu único território e pátria é o coração das pessoas. Vale a pena testemunhar o encontro do choro, nascido no Brasil, com a sensibilidade e a técnica desta artista da Terra do Sol Nascente. Todos saímos ganhando com o resultado dessa união.

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Fotos: 1) Naomi Kumamoto e 2) cd da artista. Fonte: naomikumamoto.blogspot.com

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Contra as marés de melancolia

Jorge Adelar Finatto

ilustração: Clara Finatto


A chuva começou de madrugada e não parou mais. Da minha janela vi um barquinho de papel ancorado junto à calçada. Parecia inteiro e feliz. Movimentava-se de um lado para o outro ao sabor do vento.

Como forma de salvar esse dia que mais parecia um lamento, fui até o Sonhador - assim o batizei - e nele embarquei com o cuidado de não afundá-lo.

Com a ponta do guarda-chuva no chão, empurrei o barquinho para a correnteza. Sentado na minúscula embarcação, girei o leme para a esquerda. Lá fomos nós rua afora.

A cidade vista do barco é muito mais bonita.

As janelas surgem entre os postes e galhos das árvores, com suas luzes brilhando através das cortinas, formando um delicado mosaico colorido.

As luminárias da rua acendem.

Algumas pessoas param sob os guarda-chuvas e observam a nossa passagem. Outras andam de cabeça baixa e tão depressa que nada veem. De vez em quando um carro passa muito perto e joga água pra dentro do Sonhador. Retiro o excesso do fundo com uma caneca.

Navegante de pequeno curso, acostumado a enfrentar as marés de melancolia do inverno, não desanimo diante do mau tempo.

Invento um barco e saio a navegar.

A navegação em barco de papel pelas ruas da cidade, nos dias de chuva, é o melhor remédio contra a obscuridade e o tédio.