segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

No carnaval, olhando o mar

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Amsterdam

Estava na livraria, no sábado de carnaval, olhando a estante como quem mira o mar de dentro do seu barco, ávido por partir. Esse olhar nunca é inocente. Há uma busca de felicidade na mão que se eleva até a prateleira.

A simples procura faz alguém feliz, essa transitória felicidade que, às vezes, nos habita em meio ao tumulto.

A velha angústia de saber que não há tempo pra ler nem a metade dos livros que gostaríamos torna a escolha um momento difícil. Mas não desanimo nem estou preso ao cânone, à obrigação de ler certas obras só porque alguém disse que tem de ser assim. Não.

Estou diante da estante, olho o mar de histórias.

Esse instante deve ser, acima de tudo, lúdico. Afinal, não bastasse a brevidade das coisas, hoje é carnaval.

Quero a leveza do barco ancorado na beira do canal. Quero um livro profano, desses que ensinam a arte de andar de bicicleta pelas ruas do bairro sem ser atropelado por isso.

Ou um que enuncie o nome dos pássaros dessa cidade, ou traduza a forma das nuvens nos céus de fevereiro. 

No movimento das águas desse mar, escolhi alguns títulos que prometem boas fugas do território das ilhas: O Cemitério de Praga (romance, Umberto Eco), Um Pai de Cinema (fábula, Antonio Skármeta) e Chamadas Telefônicas (contos, Roberto Bolanõ). Pelo que li, em voo de gaivota sobre as ondas, são profanos o suficiente para alegrar o meu carnaval.

Diante da estante, sábado, olhando o mar.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Anne Frank, para não esquecer

Jorge Adelar Finatto


Anne Frank. Fonte: Fundação Anne Frank
http://www.annefrank.org/

Espero poder contar tudo a você, como nunca pude contar a ninguém, e espero que você seja uma grande fonte de conforto e ajuda.
(O Diário de Anne Frank, 12 de junho de 1942)

Um domingo de outono em Amsterdam, fim de novembro, 2011. O vento corre sobre os telhados e canais, enquanto a garoa cai gelada. O fato de ser domingo, muito frio e úmido, não afasta as cerca de 200 pessoas que aguardam na fila para entrar na casa-museu onde viveu Anne Frank (1929-1945) nos últimos dois anos de sua vida, antes de morrer no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha. Estou no fim da fila. Poucos minutos depois outra extensa fila se forma atrás de mim. São pessoas de todas as idades e nacionalidades.

Anne escreveu nesta casa o famoso diário no tempo em que aqui esteve mergulhada com a família no Anexo Secreto, durante a ocupação nazista da Holanda, na Segunda Guerra Mundial. Pelo fato de serem judeus, os Frank, como milhões de outros, foram implacavelmente perseguidos pelo nazismo alemão. Em 1933, haviam se mudado da Alemanha, seu país de origem, para Amsterdam, a fim de fugir do regime de Hitler.

Otto Frank construiu este refúgio na parte dos fundos do imóvel onde funcionava sua empresa, situada na rua Prinsengracht, 263, à beira de um canal. Fez isso prevendo o dia em que teriam de mergulhar (sumir) para não ser presos e assassinados. Em 6 de julho de 1942, trouxe a família para cá. O esconderijo foi chamado de Anexo Secreto. Deixaram para trás o apartamento onde viviam ele, a esposa Edith e as duas filhas, Anne e Margot.  Na parte da frente da casa continuou o negócio, comércio de alimentos, cuja propriedade Otto passou para o nome de outros (os judeus não podiam exercer atividade empresarial), embora, na prática, continuasse a dirigi-lo.  Mais quatro pessoas juntaram-se a eles no anexo. Amigos fiéis se encarregaram de levar alimento e outros produtos ao grupo. Com o passar dos dias, tudo foi escasseando.

Em 4 de agosto de 1944, o esconderijo foi denunciado (nunca se soube quem foi o delator). As oito pessoas foram presas, levadas para campos de concentração e todos, com exceção de Otto, morreram. Anne e sua irmã morreram de tifo no campo de Bergen-Belsen no fim de fevereiro ou em março de 1945, poucos dias antes da libertação deste. Provavelmente foram enterradas em valas comuns. Além delas, outras 28 mil pessoas perderam a vida naquele campo naquele mês, em função da fome, do frio e das doenças. A maioria dos prisioneiros, nos últimos seis meses, era de mulheres. Edith morreu em Auschwitz. Otto sobreviveu a Auschwitz. Em 1947, publicou o diário de Anne, que havia sido encontrado na casa depois da invasão dos nazistas e da prisão dos oito. Anos mais tarde, o prédio transformou-se na Casa de Anne Frank, museu que guarda a memória daquelas vidas e daquele terrível período.

Autenticidade

Houve quem duvidasse da autenticidade do diário. Argumentou-se que uma menina entre os 13 e os 15 anos não teria conhecimento nem maturidade suficientes para escrevê-lo com tal profundidade. Na apresentação do livro*, informa-se que após a morte de Otto Frank, em 1980, aos 91 anos, os documentos (diário e outros papéis que o integram) foram entregues ao Instituto Estatal Holandês para Documentação de Guerra, em Amsterdam. Consta que o referido instituto mandou fazer uma profunda investigação a respeito, a qual concluiu por autênticos os documentos.

O texto passou por revisões gramaticais e, quiçá, de estilo antes da publicação. Houve seleção do que seria publicado, o que, em princípio, é natural: apenas uma parte do que se escreve se transforma depois em livro.

Realmente chama a atenção que uma pessoa tão jovem tenha escrito essas páginas. Todavia, cada indivíduo é um universo e talentos há que se revelam muito cedo. Por outro lado, é sabido que o sofrimento acelera ferozmente o amadurecimento do ser humano, que em condições tais queima etapas e se vê obrigado a antecipar uma visão adulta do mundo.

Sobre o diário manifestaram-se com admiração pessoas como o ex-presidente americano John F. Kennedy, o ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela e o escritor italiano e ex-prisioneiro de Auschwitz Primo Levi.

O testemunho

O relato de Anne Frank é, antes de tudo, bem escrito. Prende a atenção do leitor pela forma como é construído e pela matéria-prima com que trabalha. Anne conta como eram os dias no Anexo Secreto, as angústias, os conflitos, as perplexidades, tristezas, pequenas alegrias, esperanças e o medo sempre à espreita.

O texto surge como exercício de liberdade (a única possível naquelas condições) e resistência num ambiente absolutamente adverso. O confinamento de mais de dois anos num espaço pequeno, a convivência difícil de pessoas fragilizadas física e psiquicamente, o cerceamento da individualidade e dos sonhos, o desespero, a ausência dos direitos mais elementares, tudo isso faz do diário um documento único.

O testemunho de Anne Frank conta uma história que jamais poderá ser esquecida. Vale para todos nós. O nazismo continua atuante, seja através de organizações clandestinas, seja em coisas como o racismo e o ódio aos direitos humanos. Existem os que acreditam na superioridade de algumas pessoas, nações e culturas em relação às outras. Esse tipo de gente acha que os 'inferiores' precisam ser submetidos a qualquer custo. Contra essa barbárie aniquiladora do outro precisamos ficar atentos.

A palavra de Anne Frank, no seu apelo à dignidade da vida em contraste com a brutalidade diabólica e insana do totalitarismo, nos ajuda a refletir e a nos posicionar. E, sobretudo, a não esquecer.

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* O Diário de Anne Frank, tradução do inglês para o português de Ivanir Alves Calado, Edições BestBolso, 11ª edição, Rio de Janeiro, 2010.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A rua antiga me atravessa

Jorge Adelar Finatto


Colonia del Sacramento, Uruguai. photo: j.finatto


A vida se esconde na rua antiga.
A saudade mora aqui desde antes do mundo ser inventado.
Os passos dos habitantes se ouvem na longínqua estrela.
Quem nos vê, quem nos vale nesse labirinto?
A vida inteira no postigo.
Tantas coisas eu sonho.
Tantas coisas eu sinto.
As pedras da rua antiga são diamantes do oblívio.
O tempo nela escorre feito lágrima.
Ninguém vê essa cicatriz aberta na face do planeta.
Calado observador do fim do mundo.
A rua antiga me atravessa.

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Do livro Calado Observador do fim do mundo, Editora Vésper, Passo dos Ausentes, 2010.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Pietá com véu

Jorge Adelar Finatto


photo: Samuel Aranda. Prêmio World Press Photo 2011


A dor humana não tem fim.
A mulher recolhe em seus braços o corpo do homem que sofre.
Pietá moderna, o véu encobre-lhe a face, mas não esconde o gesto.
Mãos de zelo amparam o sangue e a lágrima.
Tudo explode ao redor.
Esses braços re-velam a proteção consoladora, a redenção do amor humano.
O resgate da urgente ternura, templo da compaixão.
O que essas mãos salvam está muito além do que as palavras podem.
O véu já não oculta, revela.


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Texto inspirado na fotografia do espanhol Samuel Aranda.
Aranda é o vencedor do World Press Photo 2011, divulgado na sexta-feira, 10/02. Mais importante concurso mundial de fotojornalismo, a imagem escolhida foi a de uma mulher de véu integral a abraçar homem ferido durante a revolta popular no Iêmen. O resultado foi anunciado em Amsterdam pelos organizadores do evento. A  fotografia foi escolhida entre mais de 100 mil. Na edição, foram analisados  trabalhos de 5.247 profissionais de 124 países.
Fontes: Agência Lusa e jornal Expresso, Portugal.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A aventura do flamingo cor-de-rosa

Jorge Adelar Finatto


Flamingo. Foto: Aaron Logan. Fonte: Wikipédia


O flamingo pousou na popa do veleiro quando passávamos pela Ilha do Barba Negra, na Lagoa dos Patos (que, àquela hora, brilhava sob o sol amarelo e intenso da tarde de fevereiro).

Pousou ao lado de Filipo, o papagaio marinheiro, que estava sentado e distraído na beira do barco, os olhinhos fechados, peito estufado respirando a brisa. Filipo deu um pulo de susto, o boné de marinheiro caiu na água. O flamingo recolheu-o com o bico.

Essas surpresas acontecem na vida de quem navega. Tínhamos saído para dar um giro com nosso veleiro Solitário, a fim de ver as belezas do rio, suas ilhas e pássaros. E também para ficar distantes do ruído e do trânsito violento da cidade, da correria agressiva e sem sentido.

Filipo indagou do flamingo, na linguagem das aves, qual era seu nome e de onde vinha. Ele respondeu que se chamava Arquibaldo e que vinha de Amsterdam, sua cidade natal, na Holanda. Vivia com a família num barco abandonado num dos canais daquela bela cidade. Estava em viagem de férias com os pais e irmãos quando o inesperado aconteceu.

Amsterdam. photo: j.finatto


Na altura do arquipélago dos Açores, uma tempestade dispersou a família de flamingos e arremessou Arquibaldo em outra direção, separando-o do grupo. Depois de vencer o medo e a ventania, voou muito e pegou carona num navio. Acabou chegando ao sul do Brasil após vinte dias. Estava exausto e atordoado com os últimos acontecimentos.

Os flamingos, em geral, têm a plumagem cor-de-rosa. Em Arquibaldo essa cor é ainda mais viva, um rosa antigo belíssimo. Providenciamos uma boa alimentação e um bom descanso para nosso novo amigo.

Arquibaldo é um flamingo adolescente e observador, com bom humor e espírito de aventura. Sentiu-se tão bem que pretende ficar conosco até o final do verão, quando então regressará para junto de sua família na casa-barco de Amsterdam.

O peixinho Moisés, nosso companheiro de navegações, saltou do rio para o interior do barco e ficou dentro do balde conversando com Arquibaldo. Na Ilha das Pedras Brancas, rumamos em direção ao Parque da Harmonia e, daí, para o velho cais de Porto Alegre, sempre ouvindo a incrível história do mais novo membro da tripulação.

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Mais aventuras do veleiro em:

Navegador de barco de papel
http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2011/08/navegador-de-barco-de-papel.html

A volta do barco de papel
http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2010/10/volta-do-barco-de-papel.html

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Bom dia, Mano Bisol

Jorge Adelar Finatto


pinturas: Maria Machiavelli


Habitava sozinho a quitinete diante do rio Guaíba. Um microcosmo formado por uma sala, que também era quarto, uma cozinha, um banheiro e uma janela.

Uns livros empilhados contra a parede, um radinho de pilha para ouvir as músicas da rádio da universidade, as últimas notícias (o mundo estava por acabar, só não sabia o dia).

Havia também quatro baratas (as sibilas) e algumas traças de saudosa memória. 

Naquele mínimo universo, não havia liberalidades de espaço, de dinheiro (que se contava aos centavos para o ônibus e o prato feito do almoço) e muito menos de ternura.

Tudo minimalista.

Ele, as sibilas, as traças e os livros povoavam aquele território perdido, cercado de austeridade e solidão por todos os lados.

Sobre a pia da cozinha, o fogãozinho com duas pequenitas bocas. Essas bocas, como a dele, estavam sempre fechadas.

O calado morador não sabia e nem tinha disposição para cozinhar. Comer sozinho, todos os dias, deixa o cara desamparado. O que saía (ao amanhecer e antes de dormir) era uma singela e morna taça de café com leite, pão e manteiga.

Solidão, farelo de pão. A festa das baratas.

Lá fora, na rua, a ditadura militar.

Às sete horas da manhã (que é quando os justos abrem os olhos para o sol que roça a veneziana), ele ligava o radinho para ouvir Bom dia, Mano, o ensaio falado do filósofo, poeta e desembargador José Paulo Bisol.

A cortina musical era a linda Voo sobre o horizonte, tocada pelo conjunto Azymuth (o cd com essa e outras músicas acaba de ser relançado pela Livraria Cultura, na sua Coleção Cultura).

Aquele era o momento de reunir forças antes de ir para a batalha. A palavra do Bisol tinha afeto, esperança, companheirismo. Carregava uma energia capaz de empurrar o vivente para o núcleo duro da realidade.

Havia naquelas frases um entusiasmo, uma ideia de que tudo na vida é possível. E, naquela altura, era mesmo.

(Palavras acendem um coração apagado.)

Com o bornal ao ombro e uma esperança difusa no peito, o sobrevivente saía então para enfrentar o mundo.

Gracias, Mano Bisol!