Jorge Adelar Finatto
O poder e a vaidade perdem o homem.
Barcos de papel, às vezes, podem salvá-lo.
photo: j.finatto. cais de porto Alegre |
O pequeno barco do caderno escolar levanta âncora no bolso do homem sério e triste.
Um homem circunspecto, com tantos casos para decidir.
Quem o vê saindo assim para o trabalho, de manhã cedo, terno, gravata e pasta, não imagina o que leva no coração.
Olha o mundo através das grossas lentes dos óculos, carrega perplexidades e sonhos que ninguém percebe.
O barco de papel desliza entre as vagas do dia pesado e cinza.
O navegador sonha a fuga do real, ao avistar o Guaíba da janela do gabinete.
A cidade vive dentro do rio uma existência invertida. No fundo das águas habitam seres harmoniosos, os gestos são calmos, existe esperança.
O navegador planeja o exílio do mar de conflitos e sofrimentos em que mergulha todos os dias.
No fim da tarde, caminha até a beira do rio, retira o barco do bolso, solta-o na água. Larga a pasta, tira a gravata, o casaco, os sapatos, empurra a embarcação e salta para dentro.
O vento com cheiro de água doce e dos peixes que nela vivem expande a vela rumo ao Sul. Na quilha do barco o colorido infantil dos lápis de cor.
As ilhas observam a absurda solidão das pessoas no continente, a falta de amor, a falta de justiça.
Ele deita-se no fundo do barco, exausto, as mãos atrás da nuca. Olha as estrelas e a lua que aparecem aos poucos no céu. Anseia um lugar em que possa ter tempo pra sentir, pensar, conviver, olhar a paisagem.
Peixes prateados saltam pelos lados do barco, nadando na mesma direção.
O sol se põe.
Estar só no crepúsculo é o de menos.
Difícil é largar o barco dentro d’água, soltar a vela, buscar outras margens.
Difícil é não ser igual à pedra nem se dar por vencido.
No fim de todas as tardes, ele foge com o menino que mora dentro dele.
A felicidade civil de sentar no barco, olhando a cidade de longe, o movimento dos aguapés, a aquarela do pôr do Sol.
O rio abraça a cidade e suas dores.
O navegador do barco de papel presta atenção no ritmo das ondas, nas gaivotas, biguás, reflexos.
O rio está povoado de céu e peixes (sim, há peixes vivos, estrelas e nuvens dentro do rio).
Sinos tangem a música do entardecer sobre as águas do Guaíba.
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Texto publicado em 02 de janeiro, 2010.
Esta crônica é um convite à viagem que todos queremos fazer fora destas celas da civilização.
ResponderExcluirO simbólico de voltar a aceitar o menino que nos habita, a integração com a Natureza, tanta coisa que, quase cegos pela luta diária, deixamos de apreciar.
Sem dúvida, é uma de tuas melhores crônicas.
Abraço.
Ricardo Mainieri
PS - Estou gostando muito do livro sobre Oswald. O homem tinha uma língua ferina, não poupava quase ninguém. Era natural que a sociedade "careta" da época o colocasse à parte.
Meu caro Dr. Finatto:
ResponderExcluirParabéns pelo texto. Não o conhecia pois em 2010 não havia ainda experienciado Vosso Blog. Mas não posso me conter e cumprimentá-lo.
Minha ansiedade dissipou-se após ler a crônica.
Para mim é um texto pleno de conhecimentos xâmanicos entre Carlos Castañeda(a arte da espreita) e Jorge Luis Borges(os símbolos vitais).
Obrigado por partilhar as palavras.
Muito Obrigado
Meu Caro Amigo.
ResponderExcluirAgradeço a tua presença neste pequeno, mas sincero, espaço de convivência.
Obrigado pelas palavras generosas.
A porta está sempre aberta.
Um abraço.
Jorge Finatto
Caro Ricardo.
ResponderExcluirValeu pelo passeio no barquinho de papel. É importante sair um pouco, olhar o continente de longe. As verdadeiras ilhas vivem na cidade...
Ótimo o disco do Charlap. Parabéns pela escolha!
Um abraço.
Jorge Finatto
Amei o texto, a melodia de doçura e melancolia que transmite, sem se deixar cair no campo escorregadio do pieguismo.
ResponderExcluirUm texto belíssimo.
Agradeço ao meu amigo Ricardo Mainieri por tê-lo me apresentado. Voltarei sempre. Parabéns
Jade Dantas
Jade,
ResponderExcluirmuito obrigado, de coração, pela visita e pelo comentário.
Um abraço.
Jorge
Adelar, copiei este belo texto e estou divulgando no blog, com os créditos da crônica e da foto. Espero que gostes. Abs. Ricardo Mainieri
ResponderExcluirMeu Caro Poeta Ricardo.
ResponderExcluirSó posso agradecer o teu gesto. Visitar o teu blogue é, como sempre, motivo de alegria pra mim. Estar nele com o texto e a foto é uma grata felicidade.
Um grande abraço.
Jorge Finatto