sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Navegador de barco de papel


Jorge Adelar Finatto

O poder e a vaidade perdem o homem.
Barcos de papel, às vezes, podem salvá-lo.


photo: j.finatto. cais de porto Alegre


O pequeno barco do caderno escolar levanta âncora no bolso do homem sério e triste.

Um homem circunspecto, com tantos casos para decidir.

Quem o vê saindo assim para o trabalho, de manhã cedo, terno, gravata e pasta, não imagina o que leva no coração.

Olha o mundo através das grossas lentes dos óculos, carrega perplexidades e sonhos que ninguém percebe.

O barco de papel desliza entre as vagas do dia pesado e cinza.

O navegador sonha a fuga do real, ao avistar o Guaíba da janela do gabinete.

A cidade vive dentro do rio uma existência invertida. No fundo das águas habitam seres harmoniosos, os gestos são calmos, existe esperança.

O navegador planeja o exílio do mar de conflitos e sofrimentos em que mergulha todos os dias.

No fim da tarde, caminha até a beira do rio, retira o barco do bolso, solta-o na água. Larga a pasta, tira a gravata, o casaco, os sapatos, empurra a embarcação e salta para dentro.

O vento com cheiro de água doce e dos peixes que nela vivem expande a vela rumo ao Sul. Na quilha do barco o colorido infantil dos lápis de cor.

As ilhas observam a absurda solidão das pessoas no continente, a falta de amor, a falta de justiça.

Ele deita-se no fundo do barco, exausto, as mãos atrás da nuca. Olha as estrelas e a lua que aparecem aos poucos no céu. Anseia um lugar em que possa ter tempo pra sentir, pensar, conviver, olhar a paisagem.

Peixes prateados saltam pelos lados do barco, nadando na mesma direção.

O sol se põe.

Estar só no crepúsculo é o de menos.

Difícil é largar o barco dentro d’água, soltar a vela, buscar outras margens.

Difícil é não ser igual à pedra nem se dar por vencido.

No fim de todas as tardes, ele foge com o menino que mora dentro dele.

A felicidade civil de sentar no barco, olhando a cidade de longe, o movimento dos aguapés, a aquarela do pôr do Sol.

O rio abraça a cidade e suas dores.

O navegador do barco de papel presta atenção no ritmo das ondas, nas gaivotas, biguás, reflexos.

O rio está povoado de céu e peixes (sim, há peixes vivos, estrelas e nuvens dentro do rio).

Sinos tangem a música do entardecer sobre as águas do Guaíba.

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Texto publicado em 02 de janeiro, 2010.

8 comentários:

  1. Esta crônica é um convite à viagem que todos queremos fazer fora destas celas da civilização.
    O simbólico de voltar a aceitar o menino que nos habita, a integração com a Natureza, tanta coisa que, quase cegos pela luta diária, deixamos de apreciar.
    Sem dúvida, é uma de tuas melhores crônicas.

    Abraço.

    Ricardo Mainieri

    PS - Estou gostando muito do livro sobre Oswald. O homem tinha uma língua ferina, não poupava quase ninguém. Era natural que a sociedade "careta" da época o colocasse à parte.

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  2. Meu caro Dr. Finatto:
    Parabéns pelo texto. Não o conhecia pois em 2010 não havia ainda experienciado Vosso Blog. Mas não posso me conter e cumprimentá-lo.
    Minha ansiedade dissipou-se após ler a crônica.
    Para mim é um texto pleno de conhecimentos xâmanicos entre Carlos Castañeda(a arte da espreita) e Jorge Luis Borges(os símbolos vitais).
    Obrigado por partilhar as palavras.
    Muito Obrigado

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  3. Meu Caro Amigo.

    Agradeço a tua presença neste pequeno, mas sincero, espaço de convivência.
    Obrigado pelas palavras generosas.

    A porta está sempre aberta.

    Um abraço.

    Jorge Finatto

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  4. Caro Ricardo.

    Valeu pelo passeio no barquinho de papel. É importante sair um pouco, olhar o continente de longe. As verdadeiras ilhas vivem na cidade...

    Ótimo o disco do Charlap. Parabéns pela escolha!

    Um abraço.

    Jorge Finatto

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  5. Amei o texto, a melodia de doçura e melancolia que transmite, sem se deixar cair no campo escorregadio do pieguismo.
    Um texto belíssimo.
    Agradeço ao meu amigo Ricardo Mainieri por tê-lo me apresentado. Voltarei sempre. Parabéns
    Jade Dantas

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  6. Jade,

    muito obrigado, de coração, pela visita e pelo comentário.

    Um abraço.

    Jorge

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  7. Adelar, copiei este belo texto e estou divulgando no blog, com os créditos da crônica e da foto. Espero que gostes. Abs. Ricardo Mainieri

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  8. Meu Caro Poeta Ricardo.

    Só posso agradecer o teu gesto. Visitar o teu blogue é, como sempre, motivo de alegria pra mim. Estar nele com o texto e a foto é uma grata felicidade.

    Um grande abraço.

    Jorge Finatto

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