Jorge Adelar Finatto
pinturas: Maria Machiavelli |
Habitava sozinho a quitinete diante do rio Guaíba. Um microcosmo formado por uma sala, que também era quarto, uma cozinha, um banheiro e uma janela.
Uns livros empilhados contra a parede, um radinho de pilha para ouvir as músicas da rádio da universidade, as últimas notícias (o mundo estava por acabar, só não sabia o dia).
Havia também quatro baratas (as sibilas) e algumas traças de saudosa memória.
Naquele mínimo universo, não havia liberalidades de espaço, de dinheiro (que se contava aos centavos para o ônibus e o prato feito do almoço) e muito menos de ternura.
Tudo minimalista.
Ele, as sibilas, as traças e os livros povoavam aquele território perdido, cercado de austeridade e solidão por todos os lados.
Sobre a pia da cozinha, o fogãozinho com duas pequenitas bocas. Essas bocas, como a dele, estavam sempre fechadas.
O calado morador não sabia e nem tinha disposição para cozinhar. Comer sozinho, todos os dias, deixa o cara desamparado. O que saía (ao amanhecer e antes de dormir) era uma singela e morna taça de café com leite, pão e manteiga.
Solidão, farelo de pão. A festa das baratas.
Lá fora, na rua, a ditadura militar.
O calado morador não sabia e nem tinha disposição para cozinhar. Comer sozinho, todos os dias, deixa o cara desamparado. O que saía (ao amanhecer e antes de dormir) era uma singela e morna taça de café com leite, pão e manteiga.
Solidão, farelo de pão. A festa das baratas.
Lá fora, na rua, a ditadura militar.
Às sete horas da manhã (que é quando os justos abrem os olhos para o sol que roça a veneziana), ele ligava o radinho para ouvir Bom dia, Mano, o ensaio falado do filósofo, poeta e desembargador José Paulo Bisol.
A cortina musical era a linda Voo sobre o horizonte, tocada pelo conjunto Azymuth (o cd com essa e outras músicas acaba de ser relançado pela Livraria Cultura, na sua Coleção Cultura).
Aquele era o momento de reunir forças antes de ir para a batalha. A palavra do Bisol tinha afeto, esperança, companheirismo. Carregava uma energia capaz de empurrar o vivente para o núcleo duro da realidade.
Havia naquelas frases um entusiasmo, uma ideia de que tudo na vida é possível. E, naquela altura, era mesmo.
(Palavras acendem um coração apagado.)
Havia naquelas frases um entusiasmo, uma ideia de que tudo na vida é possível. E, naquela altura, era mesmo.
(Palavras acendem um coração apagado.)
Com o bornal ao ombro e uma esperança difusa no peito, o sobrevivente saía então para enfrentar o mundo.
Gracias, Mano Bisol!
Esses pedaços de passado, do cotidiano porto-alegrense de décadas passadas me tocam diretamente.
ResponderExcluirDesconhecia este programa, mas haviam outras estratégias para driblar a vida difícil, a mente sonhadora em contraste à brusca realidade, a incerteza.
Excelente este teu momento, amplificado para a leitura de tantos.
Abraço.
Ricardo Mainieri
Às vezes a gente abre a gaveta e lá está aquele retrato esquecido. Olhamos mais um pouco e vemos que aquilo fez parte da nossa vida. Escrever é uma forma de não esquecer.
ResponderExcluirUm grande abraço.
JF