sábado, 9 de junho de 2012

A cidade perdida: as origens

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Uma cidade de fantasmas habita um lugar ermo, no cume das montanhas, nos Campos de Cima do Esquecimento.

O leitor talvez se pergunte por que, afinal, Passo dos Ausentes, lugar onde escrevo essas linhas, não aparece no mapa do Rio Grande do Sul nem em nenhum atlas.

Muitas vezes também me fiz essa pergunta. Não encontrei até hoje uma resposta plausível. Para nós, habitantes desta cidade esquecida, a invisibilidade é um mistério difícil de entender.

Não nos veem e não nos sentem.

Nós o que vemos é a andança das nuvens nos contrafortes da solidão.

Oficialmente, não existimos. Não estamos no mapa.

De onde vem essa ausência?

A Sociedade Histórica, Filosófica, Geográfica, Literária, Geológica, Astronômica e Antropofágica de Passo dos Ausentes já encaminhou diversos expedientes aos órgãos do governo, em Porto Alegre, pedindo providências. As respostas são sempre evasivas. “Vamos examinar”, “estamos estudando”, “faltam dados verossímeis acerca da existência da cidade e sua história”.

Mas como? Acaso nos tomam por seres de papel e tinta?

Passo dos Ausentes é uma espécie de Atlântida, a lendária ilha perdida no fundo tenebroso do oceano.

Uma Atlântida invertida, é certo, que caiu para o alto e desapareceu a 1.800 metros de altitude.

Somos seres invisíveis, desaparecidos vivos. Mortos na memória oficial e nos meios de comunicação.

Don Sigofredo de Alcantis, nosso filósofo-mor, costuma dizer que fomos fundados por um grupo de índios guaranis e padres jesuítas. Eles vieram de São Miguel Arcanjo, após a destruição da redução ocorrida durante a Guerra Guaranítica, em meados do século XVIII, quando portugueses e espanhóis acabaram com os Sete Povos das Missões.

Don Sigofredo é o guardião da nossa memória.

A barbicha grisalha, entradas no cabelo, o cavanhaque branco em forma de v, as extremidades do bigode levantadas para cima como a perscrutar o misterioso universo, o velho pensador conta histórias sentado no banco da praça ou caminhando em volta dos seus jardins.

Os dias não se contavam em horas, mas em suspiros, afirma ele.

O rumor do vento nas coberturas de capim santa-fé das cabanas, na beira do Rio dos Ausentes, era a música daqueles inícios.

Depois aqui chegaram cinquenta pessoas, entre crianças, mulheres e homens, todos escravos foragidos de estâncias do sul do estado. Livres, integraram-se na comunidade local.

Após, vieram algumas famílias de andaluzes, fugidas da Espanha por razões não muito bem esclarecidas. Os espanhóis tinham sido recebidos com antipatia nas metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo. Traziam na bagagem ideias utópicas de conteúdo socialista.

O tempo passou. Mais tarde subiram as montanhas indivíduos russos, polacos, alemães, italianos, portugueses e um grupo de judeus e árabes que chegaram juntos.

Ninguém sabe ao certo como e por que essas pessoas vieram parar em Passo dos Ausentes.

Toda essa gente tinha em comum algum trauma de perseguição por razões políticas, filosóficas ou relacionadas à cultura e etnia.

Em Passo dos Ausentes, encontraram refúgio e paz para viver, reconstruir sua história, trabalhar e criar filhos. Não demorou muito para que a cidade se tornasse produtora de boa variedade de produtos agrícolas, de artesanato e de utensílios de pequena indústria. A prosperidade ocorreu no auge da estrada de ferro nos anos de 1940. O declínio veio com o fim da ferrovia na década seguinte.

A população da cidade, que não era grande, passou a diminuir. As pessoas começaram a ir embora em busca de um futuro.

A memória e o afeto têm nos preservado da extinção. Mas não sabemos até quando.

Íngremes e tortuosos são os caminhos através dos paredões de basalto.

Muito frio, chuva, vento e neblina nos separam do mundo.

Don Sigofredo diz que é do nosso modo de ser a saudade das estrelas que desapareceram há muitos milênios. A luz desses astros nos chega viajando pela noite do tempo infinito.

Somos testemunhas de uma claridade que se apagou.

Por que não estamos no mapa?

Somos invisíveis como a nossa história e a nossa cultura.

Às vezes nos reunimos na praça para ouvir a pequena orquestra sinfônica. O Concerto para Violão e Orquestra, de Heitor Villa-Lobos, é a música predileta de Don Sigofredo. Acho que é também a música de Passo dos Ausentes.

Somos poucos e invisíveis.

Na solitude das noites de dezembro ouvimos as histórias uns dos outros.

Não sabemos o que será da cidade e de nós.

Mas quem sabe alguma coisa nessa vida?

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Texto publicado em 25 de dezembro, 2009.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Histórias do fim do mundo

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


Nas antigas noites da Rua São João, os habitantes colocavam cadeiras na calçada.  Conversavam sobre o passado maravilhoso e o fim do mundo que estava próximo. Era uma maneira talvez de suportar o vazio daquela vida onde nada acontecia. 

Uns diziam que o mundo ia acabar em fogo. Um incêndio de proporções planetárias calcinaria os seres e todas as coisas.

Outros afirmavam que tudo ia terminar em água. Uma chuva, fininha no início, iria aumentando de volume até que ondas gigantescas mergulhariam a Terra em trevas de profundeza, onde nem os peixes sobreviveriam.

Do que Miguel observa e sente, o mundo ao redor está ruindo sem gritos nem estrondos. Como uma escultura de areia abandonada no vento da praia.

Um dia percebeu que continentes de memória e afeto desapareceram com os moradores que, como ele, emigraram para outras cidades.

Atlântidas à deriva num mar de esquecimento.

A passagem voraz do tempo erigiu ausências no coração de Miguel. Ele próprio está fora de contexto. Como uma fotografia que alguém recortou.

Em certas noites de insônia, ele acende a lamparina para espalhar claridade na escuridão da rua da infância.

As portas e janelas estão cerradas. Os habitantes da Rua São João flutuam no espaço. Ninguém mais sai para ouvir as histórias do fim do mundo embaixo das estrelas cadentes.

Às vezes, uma porta se abre vagarosamente. Um menino surge. Toma a mão de Miguel e anda a seu lado pela rua noturna onde ninguém mais vive.

Até que a aurora vem e o menino desaparece. Miguel segue seu caminho, deixando atrás a rua perdida. 

domingo, 3 de junho de 2012

Textos rasgados

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

A última palavra é sempre do autor. Mas a opinião de alguém em quem confiamos, com "bom olho", ajuda muito na revisão e seleção de textos.

Um dia desses fiz uma incursão por papéis escritos há muito tempo. Estavam dentro de envelopes num canto do armário. Sem remorso, rasguei quase todos. Não havia ali muito a salvar.

Não significa que aquelas páginas foram inúteis. Ao contrário, considero indispensáveis como exercício da expressão escrita. Com seus defeitos, abriram caminho para outras tentativas e acertos.

Não tenho o dom do texto instantâneo. Preciso de um tempo para reler e reescrever. As palavras necessitam respirar para se acomodar entre si. Como abóboras na carroça.

Por isso, gosto de deixar um pouco na gaveta para criar certo distanciamento.

Escolher entre o que fica e o que deve ser rasgado não é fácil. Começa que o criador está envolvido emocionalmente com a sua criatura e é cruel descartar um filho (pais sempre acham os filhos bonitos).

Neste processo, o rigor excessivo é tão prejudicial quanto a autocomplacência. A arte está em encontrar o equilíbrio.

A busca da perfeição (que não existe) pode levar a enganos como a poda demasiada dos ramos dessa árvore, a autocrítica impiedosa. Essa atitude não deixa espaço para a criação.

É difícil e sinuoso o percurso da escrita, mas nisso está também a sua beleza.

A última palavra é sempre do autor. Mas a opinião de alguém em quem confiamos, com "bom olho", ajuda muito na revisão e seleção de textos.

Escritores importantes estão aí para provar que não existe um tempo certo para começar a escrever e publicar. Cada um tem seu tempo. Entre os grandes autores que surgiram para a literatura já na idade madura, encontramos José Saramago e Cora Coralina.

O que não se pode, em qualquer caso, é desanimar. Temos de acreditar que ainda vamos conseguir escrever aquilo que queremos da forma mais bela. E isso acontecerá talvez na próxima página ou na manhã seguinte.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Depois de tudo

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


Depois de tudo ele quer só um banho. Não o tagarela e desajeitado das enfermeiras. Anseia um banho demorado, com direito de ficar só, recolhido, senhor de seus domínios.

Durante o tempo em que esteve longe do mundo e do próprio corpo, viajando na nuvem de morfina, sonhava sentar debaixo de uma cachoeira e ali ficar um dia inteiro sentindo a água cair.

Havia muitas árvores nesse lugar, camélias brancas, pássaros, um ar carregado de fragrância de mato, bom de respirar. Havia também uma mesa larga e comprida, onde gente da família e amigos se reuniam para o café da tarde.

Até os desaparecidos se chegavam na mesa para conversar com ele. Até mesmo o pai, imemorial ausência, surgiu no sonho e o abraçou calidamente, como nunca antes fizera.

Reencontrou o córrego da infância, entre os pinheiros. Caminhou descalço sobre os seixos, olhou o movimento ligeiro e colorido dos peixes na água. Recordou o jeito da saíra entrar e sair do ninho. A suave luz de maio a tudo envolvia.

Agora está de novo em seus domínios, o hospital ficou pra trás. Embaixo do chuveiro, a água morna escorrendo na cabeça, no corpo, ninguém pra segurá-lo, virá-lo dum lado pra outro feito joão-bobo. Sob a água, sentindo os seixos nos pés, o vento leve na face, os peixes no córrego, conversas na mesa larga dos afetos, ele celebra a dádiva de estar vivo.

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Texto publicado em 1º de julho, 2010.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

A fala de Pedrolino

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. Venezia. Os mascarados
 

Pertenço à ordem dos amorosos sem camélia.

Os que amaram e se pensaram amados sem o ser. Os quase. Os que saíram cedo da festa.

A dama. Meu coração perdido no infinito tabuleiro. O mundo é lugar de barbaridades. Dor, dores.

Chamava-se Alberta, Alberta de Montecalvino. Pertencia à nobre estirpe dos Albertos, de Passo dos Ausentes. Foi quando a vida aconteceu.

O sol brilhou entre as nuvens. Iluminou a escuridão da vida minha. O triste que eu fui. A Commedia dell'Arte tomou conta da minha existência. Pedrolino, Pierrô.

Estava na janela da mansarda, como sempre, olhando a vida passar.

Então ela atravessou a rua. Trazia a sombrinha vermelha, o vestido branco, laço azul na cintura. Os sapatinhos amarelos. Olhou pra mim e sorriu. Rasgou minha solidão.

Bailei no ar como folha de plátano no outono, lentamente fui cair a seus pés. Desci correndo, pulando os degraus da escada em espiral. Segui o inefável perfume. Enfim, alcancei a dama.

Perguntei se podia fazê-la feliz. Sim, sim.

As iluminações.

Passamos a freqüentar a Praça da Ausência, nas tardes ocres daquele outono. Um dia peguei-lhe na mão. Meu coração cavalo louco. Não dormi durante três noites.

Alberta meu sentimento. Camafeu cravado na minha alma. Ela me deu o lencinho branco perfumado, a letra A bordada em lilás. Guardei-o num lugar secreto, bem no fundo de mim.

Aqueles eram dias de ora-veja.

A dama, o tabuleiro, eu nunca aprendi a jogar.

Não canto outros amores, que não os tive, e, se os tivesse, silenciaria.

Então Arlequim apareceu. Os ódios pularam dentro de mim.

Arlequim e seus guizos, seus versos de algibeira, sua palavra sem valia, seu alaúde. Arlequim disse coisas, deitou falas, expandiu-se em canções. Antes calasse.

Bazófias.

Arlequim se espalha no mundo. Faz ares. Blasona. Explorador de musas, ladrão de amores. Arrebatou o coração de Alberta, os suspiros, até o corpo de violino que eu nunca toquei.

Eu calado sonhador do fim do mundo. Os devaneios da alma. Voltei só pra mansarda. Nem acreditei.

Quem me visse, a face esculpida da dor. Veio o inverno. Invernos.

O vero solitário da rua triste. O que olha a vida da janela. O que foi quase feliz.

O sem camélia.

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Texto publicado em 09 de junho, 2010.
Do livro Calado observador do fim do mundo. Editora Vésper, 2010, Passo dos Ausentes.
Outros detalhes do drama de Pedrolino em A fala do Arlequim, post de 30/10/10, e Alberta de Montecalvino, de 8/11/10.

Ulisses

Casa Fernando Pessoa, Lisboa

domingo, 27 de maio de 2012

Coração batendo na beira do lago

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


O sol mostra a cara entre as nuvens.

A pintura impressionista revela o traço leve, ligeiro, transparente.

Caminho ao redor do lago nesse dia de outono. Um momento de raro encontro.

As cores passam um sentimento de intimidade e delicadeza.

Não existe nada melhor do que esquecer os compromissos e andar na tarde de maio.

No outono, mais do que em outras estações, sentimos a transitoriedade das coisas.

photo: j.finatto

É um ritual de despojamento e recolhimento de seivas. A natureza guarda energia para os dias difíceis que virão. Um caminho de sombras a percorrer, uma passagem de frio e névoa.

Nunca a transformação fica tão clara.

Já não somos os mesmos que antes caminhavam ao redor do lago. O reflexo na água é de alguém que mudou.

A vida não pode ser levada tão a ferro.

É o que o outono nos ensina. Não vale a pena. Um pouco de leveza numa tarde de maio é o mínimo que devemos nos conceder.

Um pouco de distanciamento dos fantasmas.

Vamos entre as árvores, o silêncio, as cores.

Somos uma imagem dentro do lago, depois se apaga.

Tudo muda, tudo passa. Só ficará desse instante o leve traço do esforçado pintor.

Uma fotografia, um quadro, um poema, um rumor de folhas no vento.

Coração batendo na beira do lago.

photo: j.finatto

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photos: imagens de São Francisco de Paula, serra do Rio Grande do Sul.