sábado, 21 de setembro de 2013

O navegador de estrelas

Jorge Adelar Finatto
 
Nebulosa do Camarão. Autor: Observatório Europeu do Sul
 

A Nebulosa do Camarão é considerada pelos astrônomos uma efervescente maternidade de estrelas. Um grande número desses astros ali nasce e se aninha calidamente entre as nuvens de gás. A imagem mais nítida dessa região do espaço, situada a 6.000 anos-luz da Terra, foi divulgada na quarta-feira (18/9) pelo Observatório Europeu do Sul.
 
As fotografias foram feitas pelo Survey Telescope (Telescópio de Rastreio) um dos mais potentes do mundo, na localidade de Paranal, ao Norte do Chile, onde se situa o observatório. Naquele lugar estão os maiores telescópios em atividade no planeta.

O Survey Telescope tem 2,6 metros de diâmetro e foi construído em torno da câmera OmegaCam, que é capaz de produzir fotografias em resolução bastante alta, de até 268 megapixels.
 
Recém-nascidas, quentes, brilhantes, candentes, assim são as estrelinhas que a nebulosa dá à luz, fazendo daquele recanto do universo um verdadeiro berçário.

Não sou especialista no assunto, longe disso, mero navegador de estrelas nesta estação de fim do mundo que é Passo dos Ausentes, lugar tão longínquo e pouco freqüentado como aquele território perdido no espaço. Mas acho que a Nebulosa do Camarão é lugar dos mais ternos e alegres que existem, com suas inumeráveis estrelas bebês.

As infantas se espreguiçam, fazem graça, ensaiam primeiras palavras e movimentos no aconchego da imensa nuvem azul.

A distante maternidade, situada na Constelação de Escorpião, brilha na vastidão do cosmos.

As estrelinhas irradiam pó de luz no breu frio do infinito que a tudo separa e devora. São elas que iluminam a alma do viajante do espaço quando, solitário e fatigado, passa naquelas paragens em sua nave.

De olhar o céu não me canso. Seria bom que as pessoas olhassem mais para as estrelas. Astrônomo feito a facão, habitante dos Campos de Cima do Esquecimento, tenho às vezes impressão de ouvir as risadas e as vozes das pequenas criaturas no sopro do vento estelar.

Enquanto isso, a bordo do telescópio caseiro, rastreio o universo à procura da estrela que um dia fugiu dos meus olhos, desapareceu e nunca mais.

Quem sabe ainda nos encontraremos numa outra constelação.
 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Um barco atravessa a alma da cidade

Jorge Adelar Finatto
 
photos: j.finatto
 
No sábado saí pelo Guaíba de barco. Esse rio é a alma de Porto Alegre. Entre a cidade e o rio, uma coleção de embarcações, pequenas ilhas e crepúsculos.
 
Poucas cidades têm um rio assim para espelhar-se, matar a sede e tomar banho. Mas o esgoto é uma página difícil que teima em não se resolver.
 
As gaivotas povoam a solidão, voando sobre os navios que partem no rumo do mar. São cerca de 300 quilômetros de água doce que remetem Porto Alegre ao Atlântico pela Lagoa dos Patos.
 

Fiquei um tempo olhando o azul do céu, sentindo o balanço das ondas, avistando o continente ao longe. Na altura da antiga chaminé, no Parque Harmonia, muita gente caminhava, corria ou andava de bicicleta pela via que margeia o rio (nos fins de semana interrompe-se ali o tráfego de veículos). Alguns biguás sobrevoavam o espelho.
 

A luz de começo de outono se derrama sobre a paisagem. A delicadeza das cores espalha-se no enlace de céu, vela e cais.
 
Tenho a impressão que fico alguns anos mais moço toda vez que navego pelo Guaíba.
 

Os aguapés divagam solitários, soltos e vivos nas águas.

Eu sou o efêmero capitão de um barco que atravessa o cartão-postal.
 

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Texto revisto, publicado originalmente em 4 de abril, 2011.
 

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Noturno da minha rua

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto

 
Essa é a hora em que os olhos se fecharam e todos dormem. Só eu não dormi na minha rua. Não posso dormir. Existe muita coisa calada querendo falar. 

No edifício da esquina uma luz se acende, não sei se numa sala ou num quarto. Talvez seja outra insônia igual a minha. Talvez uma sede em busca de um copo dágua. Talvez uma saudade da infância. Talvez um remorso. Talvez um medo. Talvez uma perda (isso que eu e meu silêncio conhecemos bem a essa hora).
 
Há uma luz que nunca se apaga no edifício daquela colina do outro lado. Pode ser alguém doente naquele apartamento, ou alguém conversando com fantasmas, ou que ficou só e acontece que não consegue dormir sozinho.
 
Muitas coisas eu vejo da minha janela noturna.

Uma mulher atravessa a rua fumando, a brasa vermelha flutua na escuridão em direção ao desconhecido, desaparece.

O olhar tem vida efêmera na furna.

As únicas realidades da noite que são belas e não têm fim são os sonhos das crianças.
 
Eu sinto uma falta absurda de alguma coisa que não está mais aqui. Queria de volta o meu anjo da guarda pra conversar nessa hora despida e inerme, em que não há defesa possível, porque estamos muito sós, já é muito tarde, e todos na casa e na rua dormem. Como falar dessas coisas com alguém, se nem ao menos sabemos do que se trata? 
 
Vou até a janela velar a estrela que brilha solitária acima da minha rua. Peço a ela que não me deixe sozinho na furna fria.
  

sábado, 14 de setembro de 2013

Blobfish, a melancolia de um rosto

Jorge Finatto

photo: blobfish. Greenpeace/Rex Features

A Sociedade de Preservação dos Animais Feios (Ugly Animal Preservation Society*) fez um concurso pela internet para escolher o bicho mais feio do mundo em 2013.

O objetivo dessa sociedade inglesa é chamar a atenção para animais pouco visíveis, pouco conhecidos e nem tão bonitos assim, que, no entanto, desempenham seu papel no ecossistema, merecendo, como os ursinhos panda que todos acham lindos e fofos, ser protegidos.

Participaram da eleição mais de 3 mil votantes. O eleito no curioso certame foi blobfish, ou peixe gota, com nome científico de psychrolutes marcidus. Ele habita as profundezas do Oceano Pacífico, e agora é o mascote da UAPS.

Blob tem aparência de gente. Tem um ar inteligente, tímido, mimoso e melancólico.

A expressão taciturna é de alguém desamparado no mundo. Mais que isso, percebo nele a tristeza dos que a sociedade rotula, não sem crueldade, de estranhos ou feiosos.

Procuro entender o que vai na alma de BLOB. É visível que ele não gosta da situação criada à sua volta, incomoda-o a exposição a que está sendo submetido.

Seu semblante parece dizer-nos: me deixem em paz, detesto sensacionalismo ecológico, principalmente este que está sendo feito em relação à minha discreta pessoa.

Julgar alguém pela aparência é um hábito leviano e prepotente que leva, não raro, a erros grosseiros. Imperdoáveis injustiças cometem-se em nome das aparências. Nós, os que não somos lindos, nos ressentimos com isso. Por isso entendo o sentimento de indignação de Blob.

Fazer julgamento pelo aspecto exterior é coisa de néscios e brutamontes, os quais, infelizmente, tomam conta do planeta desde sempre.

Não será este, por certo, o caso da Sociedade de Preservação dos Animais Feios, cujo objetivo, ao que parece, é justamente proteger de maus-tratos e da extinção criaturas da natureza pouco atrativas esteticamente, isto é, feias na visão do senso comum (quantas barbaridades se cometem com base no tal senso comum!).

O senso comum tem feito misérias ao longo da história. Hitler chegou ao poder e fez o que fez com base no senso comum da Alemanha da época. As ditaduras sul-americanas, mas não só, idem.

Uma pessoa jamais pode dar-se o direito de não pensar. Do contrário há sempre o risco de outros o fazerem por ela e, em seu nome, cometerem grandes desatinos e crimes. O espírito crítico é fundamental em qualquer situação, pena de aceitar-se o horror como algo normal e o mal como coisa banal.

Continuando. No que concerne aos padrões de beleza normalmente aceitos, são em geral vazios, mesquinhos, privilegiando a crosta dos viventes mais que o conteúdo. Coisa tola.

Mas, afinal, o que é feio e o que é bonito, não é, Blob? Acaso existirão o feio e o belo absolutos? Não haverá nisso uma margem de subjetivismo, de nuvem e de negociação?

Por causa da ditadura das aparências, um dia, na tentativa de evitar comparações estéticas com outros seres, e os sofrimentos daí decorrentes, os ancestrais de Blob resolveram habitar o fundo profundo do oceano.

Adaptaram-se com o passar do tempo, vivendo no silêncio e na solidão das águas de profundeza, onde poucos resistem. Os marcidus suportam bem grandes pressões no corpo gelatinoso. Acima de tudo, acho que eles queriam ficar longe da maldade humana, dos julgamentos desumanos. Mas não adiantou muito, infelizmente, pois os parentes de Blob continuam sendo alvo de pesca predatória.

Frotas de traineiras que utilizam redes de arrastão, na Austrália e Nova Zelândia, ameaçam de extinção a família blobfish. Na ânsia de pescar sem limites, acabam capturando peixes como ele, que sequer é comestível. Em princípio, portanto, não interessa à pesca, mas é preso no embalo das redes.

Blob não entende, e eu muito menos, por que, sendo tão parecido com os humanos, foi justamente ele escolhido como animal mais feio do mundo.

- Mas como?, pergunta ele incrédulo. - Será que as pessoas não gostam de se olhar no espelho, será que têm vergonha de sua aparência, não se acham suficientemente belas? A autoestima do ser humano anda assim tão baixa?

Difícil entender, amigo Blob. Creio que a maioria não atenta para o que realmente importa, que está no coração e nos valores de cada um, e não na fachada. Triste mundo. Mas se serve de consolo, Blob, digo que, pra mim, tu és um dos seres mais bonitos que eu já conheci.

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*Ugly Animal Preservation Society
http://uglyanimalsoc.com/

Biodiversidade
http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL1463377-5603,00.html

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Um Van Gogh guardado no sótão

Jorge Adelar Finatto

Pôr-do-sol em Montmajour. photo: Reuters
 
Nesta segunda-feira (9/9), o Museu Van Gogh¹, de Amsterdam, anunciou a descoberta de mais um quadro de Van Gogh (1853-1890). Trata-se de Pôr-do-sol em Montmajour (Sunset at Montmajour), pintado pelo artista em Arles, sul da França, em 1888.

A pintura revela uma natureza abundante, colorida, com plantas retorcidas e a ruína de uma parte da vetusta abadia de Montmajour, ao alto, situada a poucos quilômetros de Arles, onde o pintor gostava de ir. A cena se passa ao entardecer, sob um céu em que predominam os tons claros.

A obra foi apresentada pelo diretor do museu, Axel Rüger (à esquerda na foto abaixo). Ele disse que um achado desta importância ainda não havia ocorrido na história do museu (inaugurado em 1973), tratando-se de um acontecimento raro.

A pintura pertence a um colecionador particular, que prefere não se identificar. Mede 93,3 centímetros de comprimento por 73,3 de altura. Será exibida ao público no MVG a partir de 24 de setembro próximo.

photo: apresentação do quadro no Museu Van Gogh
fonte: AFP

A informação mais curiosa que li é que o quadro estaria guardado no sótão da casa do proprietário. Segundo divulgado, um industrial norueguês teria adquirido a obra nos anos 1970. Ela chegou a constar do catálogo de Theo Van Gogh, irmão do artista. Submetida a exame nos anos 1990, sua autenticidade foi rejeitada pelo MVG.

Agora, porém, ao refazer o estudo, dois peritos da instituição analisaram a pintura durante dois anos, numa pesquisa aprofundada que levou em conta o estilo do pintor, o material por ele utilizado, a técnica, bem como sua correspondência com Theo.

Nas numerosas cartas, ele sempre abordava com Theo os trabalhos que estava desenvolvendo. Numa missiva de 5 de julho de 1888, Van Gogh descreve ao irmão o cenário que a tela ora descoberta mostra:

"Ontem, ao pôr-do-sol, estive num matagal pedregoso em que cresciam carvalhos muito pequenos e retorcidos, tendo ao fundo uma ruína sobre a colina, e campos de trigo no vale. Uma cena que não poderia ser mais romântica, à la Monticelli, o sol despejava seus raios muito amarelos sobre os arbustos e a terra, numa verdadeira chuva de ouro (tradução livre)."² Na mesma carta, o pintor diz ter feito um estudo pictórico do local, mas que ficou abaixo do que desejava fazer.
 
Conforme o MVG, a obra se insere num período muito importante, considerado por alguns o auge de sua produção, no qual compôs quadros como Os girassóis, O quarto e A casa amarela.
 
Van Gogh não tinha ateliê nem alunos. Era um artista solitário e errante, andava para cima e para baixo com sua caixa de pintura às costas. Costumava levantar cedo para o trabalho (queria aproveitar a luz) e nada na sua vida importava mais do que pintar. A pobreza sempre esteve a seu lado. Ironicamente, hoje seus quadros estão entre os mais caros do mundo e museus importantes sonham em realizar uma exposição com seu trabalho.
 
Autorretrato com chapéu de feltro, 1888

Morto aos 37 anos, num suposto e nunca esclarecido suicídio³, em Auvers-sur-Oise (cidadezinha perto de Paris), Van Gogh trazia o arco-íris dentro do peito. Em sua breve passagem pela Terra, revelou ao mundo a beleza das cores, as quais libertou em força e luz. Na sua mão, as formas e sentimentos ganharam outra dimensão.

O traço de Van Gogh é único como única foi sua solidão e sua dedicação à arte. Uma vida profundamente sofrida que, no entanto, só retribuiu com felicidade.
 
Em cada obra que nos legou, Van Gogh entregou um pedaço de seu coração.
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1.Museu Van Gogh:
http://www.vangoghmuseum.nl/vgm/index.jsp?page=330698&lang=en
2.Carta:
http://www.vangoghletters.org/vg/letters/let636/letter.html
3.O último quarto de Van Gogh (The last bedroom of Van Gogh)
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2009/12/o-ultimo-quarto-de-van-gogh.html
 

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Vênus e Lua: um flerte no céu

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto. 8/9/2013


A Lua crescente mais parecia um sorriso no céu. Uma casquinha flutuando nas escuras alturas. Um pouco mais acima, à direita, o planeta Vênus na forma de um ponto luminoso. Para o observador, ambos desciam em direção à linha do horizonte, a oeste, devido ao movimento de rotação da Terra sobre si mesma. Uma visão e tanto.
 
Isso aconteceu no domingo. Estava no escritório no início da noite e achei muito bonito aquele envolvimento astronômico entre nosso satélite natural e o planeta azul brilhante. O fenômeno não é comum de acontecer (não me lembro quando o assisti aqui nos Campos de Cima do Esquecimento, se é que isso ocorreu alguma vez). Fiz as fotografias.

photo: j.finatto. 8/9/2013
 
Em determinado instante do flerte entre os astros, Vênus se escondeu atrás do luminoso sorriso da companheira. Depois tornou a aparecer na parte inferior da Lua. Enquanto isso, bem lá no alto estava o planeta Saturno e, abaixo de todos, Mercúrio.
 
Uma conjunção rara como essa faz a gente se sentir testemunha de algo maior e belo. Por essas e outras, costumo olhar para o céu à espreita de maravilhas. E não é que acontecem?

photo: j.finatto. idem
   

domingo, 8 de setembro de 2013

O manuscrito de Borges

Jorge Adelar Finatto
 
fonte: AFP
 
A semana reservava uma boa notícia para os admiradores da obra de Jorge Luis Borges (1899-1986). Na quinta-feira (5/9), a Biblioteca Nacional da Argentina anunciou que foi encontrado um manuscrito do escritor argentino entre as páginas da revista literária Sur, edição de fevereiro de 1944, num exemplar que pertenceu ao autor. O achado ocorreu no depósito da hemeroteca da biblioteca.
 
Trata-se do último parágrafo que Borges acrescentou ao conto Tema do traidor e do herói (Tema del traidor y del héroe), que estava publicado na referida revista sem este trecho. O manuscrito de poucas linhas foi feito numa folha de papel timbrado da biblioteca. Pouco tempo depois, o conto foi publicado acrescido com este parágrafo no livro Ficções (Ficciones), editado em 1944.
 
A descoberta resulta do trabalho realizado pelo Programa de pesquisa e busca de registros borgeanos da Biblioteca Nacional, que rastreia livros que foram manuseados por Borges durante os anos em que foi diretor da instituição, entre 1955 e 1973. O mestre costumava fazer anotações nas margens das publicações. A procura também se estende a outros volumes que pertenceram a ele e que estão na biblioteca, como no caso deste exemplar da Sur encontrado no depósito.
 
O diretor cultural da BN, Ezequiel Grimson, destacou que este é o primeiro manuscrito importante de Borges sob a custódia do Estado argentino, uma vez que todos os outros foram vendidos para o exterior ou se encontram em poder de particulares. 
 
Já o diretor da biblioteca, Horacio González, informou que o manuscrito será oportunamente exibido ao público.

photo de Jorge Luis Borges.
fonte: Fundación Internacional Jorge Luis Borges
 
Para os devotos de Borges, entre os quais me incluo, é uma felicidade o achado deste vestígio do mestre. O que pode parecer pouco para alguns, para os iniciados na obra do escritor é um pequeno tesouro.

Lembro que, um ano após assumir o cargo de diretor da Biblioteca Nacional da Argentina (1955), por determinação médica, Borges não pôde mais ler nem escrever.

A nuvem da cegueira invadia sua existência. Uma ironia para quem passou a vida no meio dos livros e teve nas bibliotecas seu ambiente natural. O pai do escritor, Jorge Guillermo, ficara cego ainda mais jovem do que o filho, interrompendo uma sonhada carreira de escritor.

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Borges e a névoa do tempo:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/03/jorge-luis-borges-e-nevoa-do-tempo.html