terça-feira, 12 de novembro de 2013

Segredos do implúvio

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 

I

Dizem
que escrever
poemas
é ofício
de pouco valimento

mas pouco se revelou
sobre a memória
da sombra
as paredes úmidas
da velha casa de madeira
o soturno corredor
onde se morria
um pouco todos os dias
sem notícia
sem amanhã

II

alguém precisava
recordar
os soturnos habitantes
da rua humilde
na cidade serrana

lembrar o cheiro
de suas vestes
as pedras soltas
na porta das casas

os casacos pretos
nas manhãs de geada

III

nada ou muito pouco
se disse
dos segredos do implúvio

eu me pergunto por que
esse vazio em torno

estaria no silêncio
acre das caves
o destino de partir?

trabalho lento
nas escarpas
do coração

IV

não fossem
os trilhos
do trem
o barulho santo
do trem
atravessando
a madrugada
criando ao menos
em tese
a possibilidade
da fuga
muitos teriam
desistido de tudo
ali mesmo
como fez Chico
o Esquecido

V

o coração não é
assim mero

cresce em segredo
na dura colheita

não se esvazia
o coração
como se esgotam
as cisternas

VI

alguém precisava contar
a náusea persistente
a longa e tortuosa estrada
que desce na Capital

melhor não inventar
histórias
de castelos e linhagens
que nunca existiram
e se houve
federam
como podem feder
as escadarias
dessas obscuras passagens
perdidas no planeta
que recolhem
seres rastejantes

VII

o que se registra
no tombo do tempo
é que há um menino
imóvel
à beira da jovem defunta

naquele lugar
a despedida
com alguma flor
sussurros abafados

ele pergunta
onde ela foi habitar

o que vê
é a morte
e seu absurdo trabalho
convertendo em pó
a luz dos olhos

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Do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
 

domingo, 10 de novembro de 2013

Ilhas e taperas

Jorge Adelar Finatto 
 
photo: Eduardo Tavares. veleiro no Guaíba
 
 
Um dia desses saí a navegar pelo Guaíba no meu barco de papel.
Às vezes ele se chama Sonhador, outras, Solidão.
No itinerário, desembarquei em algumas ilhas.
Confesso me assustei com as taperas que encontrei.
Tapera, do tupi, aldeia extinta.
Habitação em ruína, lugar abandonado.
Filipo, o papagaio que sempre me acompanha, costuma dizer: tapera, é em nós que ela existe.
Nos nossos gestos vazios, nas nossas omissões, na impotência de mudar a vida, na indiferença.
De tão abandonadas, as ilhas se transformam em território de fantasmas.
Cada um de nós é uma ilha nessas águas tão fundas do viver.
Quando olho em volta da minha ilha, encontro outras ilhas. Muitas ilhas.
Apesar da quantidade e da proximidade, não formamos  um arquipélago.
Existimos isoladamente. Em certos dias flutuamos à deriva.
Os habitantes das ilhas querem falar e ser ouvidos.
Raros, contudo, dispõem-se a escutar.
Esse o flagelo que assola o mapa das ilhas.
Habitamos taperas modernas, com computador, blog, máquina de lavar, tv a cabo, aparelhos de som, ar-condicionado, elevador, secador de cabelo, mil coisas.
Em nosso íntimo, continuamos homens e mulheres das cavernas, com poucos amigos. Solitários, primitivos, ilhados.
Lutamos pra sobreviver, saímos à caça todas as manhãs, disputamos ferozmente espaços no  mercado de trabalho, no mercado de alimentos, no mercado das paixões. Com sorte, encontraremos nosso quinhão no mercado do amor.
Desconfiamos quando nos mostram o coração.
Dores e medos são curtidos no recesso como se não existisse mais ninguém no bairro, no edifício.
As nossas moradias, tugúrios onde nos escondemos. Planejamos a fuga para um lugar que não sabemos se existe, mas deve ser melhor.
Olho o movimento dos barcos na entrada do cais.
Ouço o ruído seco do vento na vela branca do veleiro.
Uma gaivota atravessa o rio.
O entardecer aprofunda o exílio.
Não conseguimos formar um arquipélago.
O Guaíba embala a solidão das nossas ilhas e taperas.

 
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A photo do Eduardo não é uma maravilha?  Texto revisto, publicado antes em 04 de fevereiro, 2010.
 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

António Zambujo vale um banquete

Carlos Alberto de Souza
 
António Zambujo. photo: Rita Carmo*
 
António Zambujo vale um banquete, mas saiu por quilo de alimento não perecível na gostosa noite da quinta (7/11) no Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os que foram assisti-lo saíram nutridos com o que de melhor a música pode oferecer. Cantor maravilhoso, repertório maravilhoso, músicos maravilhosos.
Em algumas canções, Zambujo lembrou Caetano, pela afinação, beleza vocal e gorjeios. Mas também lembrou Chico, de quem cantou Valsinha, um dos grandes momentos do espetáculo, curtido por representantes da colônia portuguesa de Porto Alegre. E até as onomatopeias de João Bosco se insinuaram na voz do gajo do Alentejo (por sinal, onde fica a Portoalegre deles).
Zambujo é de primeiríssima grandeza, mas, pelo que se viu no palco e após o espetáculo, nos autógrafos do seu CD Outro sentido, desprovido de estrelismo. Dividiram a cena com ele os virtuoses Ricardo Cruz (contrabaixo) - da estatura de um Jorge Helder -, Bernardo Couto (guitarra portuguesa), José Miguel (clarinete) e João Moreira (trompete). Todos tiveram o demorado e reconhecido aplauso da plateia, que quase lotou o espaço.
O brincalhão Zambujo disse esperar que tenha sido a primeira de outras apresentações na capital gaúcha. Tomara. Assim também devem pensar o simpático Wiliam, que veio especialmente de Santos (SP) para o espetáculo, e o casal Verissimo e Lucia, que aplaudiu o artista português.
Para terminar, vale dizer que no segundo e último bis, António Zambujo cantou Foi Deus, de Alberto Janes, acompanhado apenas do contrabaixo de Ricardo Cruz. Caiu-lhe bem o verso “...Foi Deus que me pôs no peito um rosário de penas que vou desfiando e choro ao cantar / Fez poeta o rouxinol / Pôs no campo o alecrim / Deu as flores à primavera / Ai... e deu-me esta voz a mim”.
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photo do site oficial do artista:
 Carlos Alberto de Souza é jornalista em Porto Alegre.
smcsouza@uol.com.br

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Anotações de primavera

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto




Aqui na Serra as flores começam a dar o ar da sua graça, e que graça elas têm! As mais vistosas, nesse momento, são as hortênsias e as rosas.

Obra de arte é a que nasce da intervenção humana. Mas se abstraímos esse fato, podemos dizer que existe arte na natureza. Uma beleza que sempre se renova e nem todos percebem. Não entendo como algumas pessoas conseguem ficar sem olhar as flores.

Em cidades grandes, a ocupação desordenada do espaço e a redução drástica de áreas verdes tornam essa observação mais difícil. Uma possível saída é cultivar flores e hortaliças em apartamentos (sem colocar vasos nas janelas, que podem cair e machucar alguém).

As flores são exemplo, por excelência, da arte natural. Mas há muito mais, as paisagens, as matas, os pássaros, as nuvens, o sol, as estrelas fixas e as cadentes, os animais, as águas dos rios e oceanos, as borboletas, os ninhos e tanta coisa.

Claro que estou falando da face suave, deixando de lado o feio portentoso. Não estou considerando a destruição do meio ambiente e a rude indiferença em relação à natureza (como se pudéssemos viver sem ela).

photo: j.finatto

Estou conversando, portanto, em meio aos destroços, tecendo levezas de primavera num cenário de desolação. Provisoriamente lírico. Não consigo viver sem esses vôos minimalistas. O excesso de realidade é um grande estraga-prazeres, derruba qualquer rasgo contemplativo.

Mas o fato é que, apesar de tudo, ainda encontro felicidade no traço delicado de uma flor, no seu perfume, na sua cor.

A Terra é um delicado jardim azul vagando no espaço.

E um dia talvez vamos descobrir que o ser humano é a mais bela das obras criadas, não só em beleza exterior como, principalmente, em atributos éticos. Isto acontecerá quando o dinheiro, a vaidade e o poder não forem mais a medida de todas as coisas.
 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O espantalho no milharal

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto

 
Se parar de escrever na casa do labirinto, nesta difícil procura de claridade, se o silêncio e o medo crescerem ao meu redor como um vasto milharal habitado por estranho espantalho vestido de negro, com grossas lentes nos óculos que não ampliam a progressiva e asfixiante pequenez das coisas, esse tal que desistiu do ofício de espantar, sendo ele próprio o contumaz espantado no oblíquo território da existência, se os amigos esquecerem de me visitar nas ermas noites de inverno, se um pássaro soltar o canto no galho da araucária diante da minha janela, se essas palavras que escrevi servirem, ao menos, pra distrair o leitor (?) do problema da morte e da inefável falta de sentido da vida, eu sentirei que valeu a pena.

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Araucária vista da janela, Passo dos Ausentes.
Texto revisto, publicado em 13 de abril, 2011.
 

domingo, 3 de novembro de 2013

El largo viaje de placer

Jorge Adelar Finatto
 

Um livro cativante, intenso do início ao fim, dos melhores que li nos últimos anos. A Longa Viagem de Prazer, contos do escritor uruguaio Juan José Morosoli (1899-1957), publicado em outubro de 2009 pela editora L&PM, com tradução de Sérgio Faraco, é dessas obras que lastimamos não ter conhecido mais cedo. São nove  pequenas histórias que tratam da vida solitária e comum de homens e mulheres que vivem no interior do Uruguai.

A grandeza humana e dramática que encontramos nesses personagens é a mesma presente nas grandes obras da literatura universal. A poesia pulsa em cada um desses relatos povoados de densa humanidade, nos quais nós, habitantes deste mundo ermo e estranho, nos reconhecemos como diante de um espelho.
 
A maestria literária de Morosoli coloca-o ao lado de importantes autores do continente americano, como Julio Cortázar, Juan Carlos Onetti, Borges, Guimarães Rosa, Steinbeck, García Márquez, Dyonelio Machado.
 
Conforme salienta, com rara sensibilidade, o editor, crítico literário e ensaísta uruguaio Heber Raviolo, no excelente prólogo que escreveu para esta edição, os seres morosolianos "se radicam num lugar, num pago, num pueblo, ou andam pelos caminhos sem destino, sem saber o que buscam e nem se de fato buscam, numa espécie de contemplação de si mesmos ou de sua própria condição. El drama del hombre de este tiempo es tal vez  el haber perdido la facultad de sentirse vivir, disse Morosoli, e no tempo estancado, que é o tempo de sua obra, suas personagens parecem empenhadas, obstinadamente, em sentir-se vivas, aferradas, sem o saber, a certas categorias humanas elementares e por isso mesmo essenciais. Viventes de um tempo morto, ou condenado a morrer, é o que poderíamos dizer dos seres morosolianos." (pág. 13). 
 
Ainda segundo Raviolo, o escritor deixou uma obra pequena, "mas sólida e absolutamente pessoal", centralizada nos relatos breves.
 
Juan José Morosoli nasceu na interiorana cidade de Minas e dela nunca saiu. Cedo abandonou os estudos para trabalhar. Entre outros ofícios, foi atendente de livraria e bazar, dono de dois cafés e teve um armazém e depósito de mercadorias.
 
Resta esperar que outros títulos de Morosoli sejam vertidos para o português e lançados no Brasil. E quem viajar ao Uruguai não esqueça de trazer na bagagem ao menos um livro deste grande autor.
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A Longa Viagem de Prazer, Juan José Morosoli, tradução de Sérgio Faraco, Coleção L&PM Pocket, Porto Alegre, 2009. Resenha publicada em 6 de setembro, 2010.
 

sábado, 2 de novembro de 2013

Os últimos acendedores de lampiões


Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 

No entardecer, quando o sol morre atrás do Contraforte dos Capuchinhos, os dois acendedores de lampiões saem às ruas para dissipar a escuridão. Érico tem 80 anos e Dyonelio, 85. São os últimos remanescentes da Companhia de Iluminação de Passo dos Ausentes.
 
Inauguram a luz com seu gesto, esconjuram as trevas.
 
A nostálgica claridade noturna de nossas 20 ruas é invenção de 80 lampiões nelas espalhados. É assim desde 1925. A cidade parou no tempo a partir de então.
 
Érico e Dyonelio exercem o ofício desde a adolescência, quando ingressaram na companhia como aprendizes. Com a aposentadoria dos acendedores mais velhos, e diante do brutal esvaziamento da cidade (os jovens muito cedo vão-se embora à procura de estudo, trabalho e aventura; os velhos acabam morrendo e mudam-se em definitivo para os campos da ausência), não houve renovação dos iluminadores.

Somos uma cidade perdida no tempo e no espaço. Somos poucos. Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento.
 
Os últimos acendedores de lampiões fizeram um pacto. Trabalharão até o dia da morte para não deixar a cidade entregue ao breu profundo. Eles acreditam que quando não mais saírem às ruas para acender os lampiões forças malignas tirarão proveito da escuridão e expulsarão nossa cidade do sistema solar.
 
Precisamos evitar a todo custo que se cumpra o presságio do padre Eleutério Ombra, enunciado em 1755, de que uma nova São Miguel das Missões se ergueria perto das nuvens, sobre altas montanhas, com graça e fulgor.
 
Advertiu, todavia, o velho sacerdote, que uma grossa sombra rondaria sempre esse lugar e poderia devorá-lo. Os filhos partiriam cedo para o mundo e não voltariam, deixando os pais envoltos nas eternas brumas da solidão.
 
photo: j.finatto

Depois que exércitos espanhóis e portugueses destruíram São Miguel, em 1756, alguns padres jesuítas e índios guaranis, sobreviventes do massacre, fugiram e fundaram Passo dos Ausentes.
 
Uma grande angústia, hoje, toma conta das pessoas por aqui. Vivemos numa cidade condenada ao desaparecimento. Cada um é insubstituível. Nem ao menos figuramos no mapa do Rio Grande do Sul, não há reconhecimento oficial por parte do governo.
 
Na capa do processo que tramita há quase duzentos anos no túnel burocrático, no qual postulamos elevação à condição de cidade, está escrito: burgo de fantasmas, vila mal-assombrada. Assim o governo nos trata.
 
O tempo, em Passo dos Ausentes, é uma ferida que não pára de sangrar.

Somos poucos. Somos invisíveis. Somos habitantes dos Campos de Cima do Esquecimento.

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Do livro A cidade perdida: as origens. Editora Vésper, Passo dos Ausentes, 2003.
Texto revisto, publicado no blog em 22 de janeiro, 2011.