terça-feira, 12 de agosto de 2014

No tempo do Cine Vogue

Jorge Adelar Finatto
 
Retratos de Ingmar Bergman. fonte: site oficial*
 
Teve um tempo em Porto Alegre que assistir a filmes de Ingmar Bergman (1918 - 2007) era uma religião. O diretor sueco era o pastor de almas de muita gente por aqui, principalmente estudantes, intelectuais, trânsfugas em geral e perdidos na vida .
 
Era na época da ditadura civil-militar. Eu andava pelos 19 anos em 1976. O general Geisel era o presidente de plantão com o apoio de parcela da sociedade civil brasileira e de parte da imprensa.  Os direitos e as garantias individuais estavam fora da ordem jurídica. Ter ideias e opiniões diferentes dos que ocupavam o poder podia configurar crime do pensamento. Sim, muito parecido com o "1984", de George Orwell.
 
Nos regimes em que a escuridão vigora, as nuances são proibidas e qualquer sutileza é vista como inimiga. Todos são suspeitos (de alguma coisa) até prova em contrário. Era assim.

O Cinema Vogue, na Avenida Independência, era, como os demais de então, um cinema de rua. Tinha uma programação especial, considerada "cabeça". Um território de resistência em meio à repressão, assim como os bares da Esquina Maldita. 
 
A delicadeza era uma ilha deserta a mil milhas do continente.
 
Ingmar Bergman não tinha nada a ver com a ditadura no Brasil. Não sabia que era o pastor daquelas almas abismadas em voos interiores e travessias espirituais. Não sendo possível mudar a realidade, muitos buscavam outras claridades. Havia um mundo intangível a ser descoberto, onde os donos do poder e os emissários da morte não entravam.
 
Apesar da pobreza material em que eu vivia, e do escasso tempo para os assuntos do espírito, apreciava os itinerários bergmanianos através da consciência, da memória  e, sobretudo, do inconsciente. A manhã seguinte aos filmes de Bergman era sempre o cru desafio da luta pela sobrevivência.

O Brasil de então era (e, sinto dizê-lo, ainda é) um lugar onde reina uma grande violência social baseada na exclusão e na indiferença. O acesso às coisas da arte continua um privilégio para poucos. O país conseguiu livrar-se da ditadura, mas não logrou o mesmo com a corrupção, responsável direta pelo atraso e pelo sofrimento da maioria.
 
Devo dizer, também, que gostava de filmes de Teixeirinha e Mazzaropi, que assistia em outras salas tidas como menos cult, do povão. Havia um grande preconceito da classe média, principalmente entre universitários, em relação a esses filmes brasileiros. Uma coisa idiota como todo preconceito.
 
Essas lembranças me vêm porque andei revendo Morangos Silvestres (1957) e Fanny e Alexander (1982), duas obras-primas do grande cineasta. Me lembrei de mim e de nós. Da vida que foi e da que poderia ter sido. Da vida que passou, tempo finito.

Olhei com esperança para a vida que é e para a que vem vindo logo ali.
 
Viver pode até ser difícil para quem leva o coração entre as mãos, sem omiti-lo nas suas ações e decisões. Mas é infinitamente melhor do que ser mais um a roubar, a dar porrada, a pisar na cabeça dos outros, a destruir a vida alheia, a não ter valores.
 
Muita gente se perdeu no caminho em sinistras direções. Eu inventei tempo para a poesia e a arte em minha vida e tentei compartilhar. Foi e é uma maneira de não me perder e de não enlouquecer em meio a uma realidade tão absurda, desumana e violenta como a do nosso país.

Ave, maravilha.
 
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Site Oficial de Ingmar Bergman:
 
Os direitos humanos em Cuba:

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Bibliotecas

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

Tantos livros me assustam
trago uma ignorância milenar
guardada num lugar
claro do meu ser
uma ignorância - ou a sabedoria -
do sol às 7 da manhã

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Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Henrique do Valle: obra reunida*

Dia 21 de agosto, às 19 horas, na sede do Instituto Estadual do Livro (Rua André Puente, 318, bairro Independência, Porto Alegre), será lançado o livro Henrique do Valle: obra reunida (440 páginas, R$ 40,00), que traz textos publicados e inéditos do poeta Henrique do Valle (1958 - 1981), com organização, apresentação e notas de Paulo Seben.
 
SOBRE O AUTOR

Foto:
Ana Maria Lopes
de Almeida Bastos
Quem tem mais de cinquenta anos, frequentou o Bom Fim no final da década de 70, gosta de poesia e acompanhou os movimentos culturais daquele período, certamente já ouviu falar de Henrique do Valle, ou "Ike", como era conhecido. Quem tem menos de cinquenta, certamente vai se interessar pelo mais marginal e radical poeta da cena boêmia porto-alegrense dos Anos de Chumbo, morto aos 22 anos. Sua obra é agora resgatada pelo Instituto Estadual do Livro, juntamente com originais inéditos perdidos durante trinta anos.

Sobrinho do presidente deposto João Goulart, Henrique do Valle passou pela traumática experiência do exílio. Já por seu primeiro livro, A espessa verdade/La espesa verdad, publicado em Buenos Aires em 1973, aos 15 anos, foi considerado uma das grandes promessas da poesia no Rio Grande do Sul. Ike publicou ainda mais dois livros em vida: Vazio na carne (1975) e Anotações do tempo (1979); Do lado de fora é obra póstuma, publicada em 1981.

O poeta atormentado mergulhou fundo no álcool e nas drogas, todas elas, em especial o LSD e a maconha, que o levaram a várias internações e até à prisão, vivências transmutadas em poesia amarga, delirante - porém, paradoxalmente, capaz de alcançar uma consciência que superou o maniqueísmo daqueles tempos conflagrados.

Henrique do Valle conseguiu “expressar as aflições, os desesperos, as dúvidas de uma juventude sufragada num mar de acontecimentos convulsos que se debate entre o desejo de encontrar um rumo e a depressão de precoce desengano”, segundo Pedro Vergara. Nesse sentido, Ike era representante da chamada geração de “poetas marginais”, desencantada com o sistema e reprimida pela ditadura militar. Sua poesia está marcada pela denúncia social.
 
No entanto, Jorge Adelar Finatto, amigo do poeta, afirma: “a poesia de Ike é muito mais do que um depoimento de geração, relato de um tempo mau. A obra que deixou tem força interior e qualidade, vale por si, não é datada”.

A obra de Henrique do Valle vem agora a público acrescida de inéditos encontrados com amigos e familiares, numa edição conjunta IEL/Corag, com organização, apresentação e notas de Paulo Seben, professor de Literatura Brasileira na UFRGS.
 

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*Notícia publicada no site do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul:

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

A boneca de trapo

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 
Era uma dessas tardes que antecedem o outono em Passo dos Ausentes. O ar outonal nos deixa mais sensíveis diante das mudanças nas cores e das primeiras quedas de folhas. As seivas reúnem e concentram a força da natureza, evitando qualquer desperdício. Em dias assim, é uma sorte estar vivo.
 
Enquanto atravessava a Praça da Ausência, encontrei uma boneca de trapo caída no chão. Era feita de velhos panos coloridos. Os olhos eram dois botões verdes.
 
Os cabelos, fios de lã repartidos em duas tranças. A boca, um pequeno risco vermelho e sorria.
 
Apesar de perdida, a boneca não parecia muito triste. Apenas carregava um toque de melancolia no semblante, que desapareceu quando a levantei.  Acomodei-a no banco da praça, embaixo de um salgueiro, ao lado do lago.

Fui embora, não sem alguma dor. No início quis levá-la comigo, dar-lhe novo lar. Mas desisti ao pensar que quem a perdeu (uma criança tudo leva a crer) voltaria para buscá-la. Seria de cortar o coração não encontrar a sua boneca de trapo.

Viver tem dessas coisas. Nem sempre podemos ter o que nos encanta. Nem sempre, como no outono, a vida se exalta em delicadas mutações. Num dia, o céu azul nos ilumina, habitado aqui e ali por nuvens cor-de-rosa, o coração bate harmonioso. Noutro, pensamentos escuros, pesados, se espalham e a gente só imagina besteira.

A boneca de trapo me lembrou coisas que perdi na vida. Perdi e me conformei. Porque nada, absolutamente nada, nos pertence verdadeiramente nesse mundo.
 
Tudo que temos é emprestado. Um dia teremos de devolver. Nada é nosso.

Salvo, talvez, o meigo sorriso de uma boneca de trapo.

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Boneca artesanal da região serrana do Rio Grande do Sul. Texto revisto, publicado em 16 de março de 2011.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Homem é tudo frouxo

Jorge Adelar Finatto
 
Estrela Antares, rodeada por nebulosa amarelada (esquerda). Nasa
 
Em um domingo absolutamente banal, procuro alguma coisa que fuja ao absurdo trivial. Devia haver mais solenidade num dia desses na vida de um ser humano. Um pouco mais de tempero. Um pouco menos de tédio e cansaço.
 
Olho para os lados e o que vejo? Os semelhantes vivem momentos de grande intensidade filosófica, estética e emocional. Nada parecido com o enfado que é a minha jornada dominical.
 
Aposto que na casa ao lado os vizinhos celebram, entre acordes de Bach, a descoberta da cura contra a mediocridade e a melancolia. Por isso os vejo andar pelo quintal, quase flutuando, com aquele ar de quem encontrou as respostas.
 
O sujeito escondido e antipático da casa da esquina, o qual desconfio faz coisas inconfessáveis, não parece nem um pouco preocupado com o vírus ebola, com os terríveis ataques de Israel a civis em Gaza e com o medo ancestral da morte que me assolou a noite inteira, agravado pelo fato de ter que usar bengala nos últimos dias, porque o joelho esquerdo me dá dores rasgadas a cada passo e nem dormir consigo porque dói também deitado.

O preço a pagar pelas caminhadas nas montanhas atrás de destroços de estrelas cadentes nos Campos de Cima do Esquecimento.
 
A minha mãe diz ao telefone, pra me "consolar", que homem é tudo frouxo. "Se tivessem de parir, morriam todos na véspera. De enjoo." E assim parece ser.
 
Se ao menos eu pudesse subir num raio de luz até Antares e de lá admirar como são felizes, nas tardes de domingo, os habitantes dessa que é a estrela mais brilhante da Constelação de Escorpião.
 
Tudo acontece no domingo fora do meu território irrisório. Sinto uma inveja perversa da felicidade estampada na cara dos viventes da minha rua. Nenhuma angústia, nenhum remorso, nada. Todos sabem o que fazer, para onde ir, o que ler, o que ouvir e o que dizer, nenhum desassossego ou fastio.
 
Enquanto eu fico aqui com a bengala, diante da janela, esperando por uma magia que, sinceramente, acho que nunca vai acontecer.
 

domingo, 3 de agosto de 2014

Elegia 1975

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 

O vento não traz
notícias de longe

todos foram dormir
depois do vinho
 
só nós permanecemos
incomunicáveis
debaixo das estrelas

e do frio

um que outro fantasma passa
fugitivo na calçada
não perguntamos pela vida
passada ou futura


habitamos cada momento
com olhos de prisioneiros violentados

escutamos o silêncio que vem do rio


a fome imensa de liberdade
que nos anima e nos faz fortes
na tempestade que nos enlaça
nos joga contra a parede

nosso rosto parece

ao de toda gente
mas trazemos

segredos inviolados
noites de lobos feridos

olhamos a cidade morta
nenhum anjo nos acalanta

estamos vivos
e nunca doeu tanto


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Do livro Claridade, coedição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Composição

Jorge Adelar Finatto 
 
Van Gogh (Girassóis, 1888)
Van Gogh Museum, Amsterdam, 20 digital highlights
 
O anjo tombou morto
na terra alheia de uma tela


Van Gogh imagina Gauguin
asfixiando o anjo no jardim
com as mãos queimadas de sol

Dali encoberta a face de granito
com o manto de brilhantes
os brilhantes despojados do anjo

Di Cavalcanti entristece: era uma mulata
o anjo assassinado nas cores do jardim?

Portinari retira-se melancólico
Picasso adentra a gruta de um olho

A noite cai pesada de remorso

Nesse instante todos dão-se as mãos
e cantam a canção predileta do anjo
em volta do corpo estendido no chão


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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

The last bedroom of Van Gogh
O último quarto de Van Gogh
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2009/12/o-ultimo-quarto-de-van-gogh.html