terça-feira, 19 de agosto de 2014

Somos os que estão por aí

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 
O mundo é um hospício sem muro. Estão todos soltos. A loucura é herança bem dividida entre os humanos. As partilhas registradas nos cartórios do desassossego.

A pessoa precisa ter reservas de luz pra suportar tanta escuridão.

Somos os que estão por aí. Os por enquanto. A gente mói e é moído. O que acha? O moinho triste da vida. Tem vivente que passa a existência sem receber um afago, um ora-veja. Os que. Pra eles não existe vem-aqui-meu-bem-me-dá-cá-um-beijinho. Só pedras, perdas.

Os esquecidos jazem no fundão do abismo. O mundo não presta atenção nos sem-afeto. Os outros, a turma dos contentes, dos bem amados, quando muito vivem pra si. Os que se acham. As almas leves. Corações secos.

O moinho pesado gira no esconso. Caminho de sombras.

Às vezes um resolve resilir o contrato com o eterno. Quase ninguém nota o último ato do infeliz. Nenhuma flor se colhe em sua difícil memória. Nenhum pensamento, nenhuma ternura. As indiferenças. Os giros insensíveis da roda de fazer pó e esquecimento.

Assim se afunda o coração dos bonecos de ventríloco.

Viver são uns suspiros, uns carinhos desaparecidos.

Alguns poucos levam a lanterna na mão. Esses, ao menos, ainda choram, se comovem, não se conformam, lutam, amam. Fazem os caminhos.
 
Por eles a aurora tece os fios rosados da manhã.

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Texto revisto, publicado antes em 13 de abril, 2010.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O escritor e seu carnaval

Jorge Adelar Finatto
 
pintura: Maria Machiavelli


O escritor sai sozinho pela rua no seu solitário bloco de carnaval. 

Como será uma fantasia de escritor? A cara pintada de palhaço, um adunco nariz de papelão. Nos olhos, grandes óculos redondos e pretos em forma de bicicleta. Um bigode de trilho de trem. Na cabeça, o chapéu de Napoleão, feito de folha de jornal. Um par de borzeguins vermelhos e amarelos, desamarrados.

Na esquina, ele se mistura ao cordão de foliões, deixa-se levar pelas ruas do bairro fantasiado da estranha criatura que, na verdade, é.
 
Ele vai com o cordão pelo meio da praça, de mãos dadas com a alegre mascarada que encontrou pelo caminho. Ela tem pequenos olhos azuis sob a máscara negra, cabelos pretos escorridos nos ombros.

O escritor e a mascarada dispersam-se do grupo. O dia amanhece. Encostados nas costas um do outro eles descansam num banco da praça. Ele com um cata-vento girando na mão. Ela com um hibisco vermelho preso no cabelo.

Uma chuva de verão começa a cair. Eles correm e entram no Café Aurora que, àquela hora, abre a porta aos primeiros fregueses. Pedem duas taças de café com leite, o pão ainda quente do forno, manteiga.

Enquanto isso, lá fora, sob a chuva azul, arlequins, colombinas e pierrôs passam molhados na calçada, cantando As Pastorinhas, de Noel Rosa e Braguinha.
 
Sombrinhas coloridas de frevo são arremessadas ao céu pelos foliões.
 
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*Na voz do Quarteto em Cy, ver Youtube.
Texto revisto, publicado antes em 22 de fevereiro, 2012.
 

sábado, 16 de agosto de 2014

A crônica de Nelson Rodrigues

Jorge Adelar Finatto

Nelson Rodrigues


Ah, é problemática a sorte de um velho "reaça", como me chama o Hélio Pellegrino.
                                                  Nelson Rodrigues
 
Um livro tem me cativado nos últimos tempos. É O óbvio ululante: as primeiras confissões, de Nelson Rodrigues (1912 - 1980). Foi publicado em 2007 pela Editora Agir. Não conhecia o trabalho literário do jornalista, escritor e dramaturgo nascido no Recife. O pouco que tinha visto de Nelson Rodrigues eram alguns filmes feitos sobre suas peças teatrais, e não gostava por me parecerem muito apelativos.
 
Mas bastou ler algumas linhas deste livro de crônicas, de pé na livraria, para ser fisgado por suas boas e saborosas histórias, entregues ao leitor em excelente escrita.

Em suma, descobri só recentemente a qualidade da literatura de Nelson Rodrigues.
 
Um senhor escritor. Não pode faltar na estante (ultimamente é um dos meus livros de cabeceira). As crônicas do Óbvio ululante foram publicadas no jornal O Globo, no período de dezembro de 1967 até junho de 1968, com exceção de duas, publicadas no Correio da Manhã em maio de 1967. Os parágrafos dos textos são numerados, numa espécie de evolução dos temas que vão surgindo.

Conforme diz a nota do editor, Nelson era, naquele época, uma personalidade cercada de frases lapidares por todos os lados.

Observo que ninguém estava livre de ser personagem das crônicas rodrigueanas, o que acontecia com certa freqüência inclusive com seus amigos e colegas. Nomes importantes da cultura e da política desfilam nas suas histórias, tais como Dom Hélder Câmara, José Lino Grünewald, Alceu Amoroso Lima, Olgário Mariano, Carlos Heitor Cony, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Proust, André Malraux e muitos outros.

"Era incômodo ser amigo e personagem do Nelson", afirma Cláudio Mello e Souza no prefácio da obra. E acrescenta:

Fui um deles. Sei do que falo. Tirava-nos de nossas realidades e nos transpunha para a sua imaginação, para o seu palco. Havia carinho? Talvez, mas tão impregnado de ironia que nunca soube, quando citado, se devia me humilhar ou me ofender. "Nem uma coisa nem outra", aconselhava o Otto [Lara Resende]. "Diga-se feliz e lisonjeado. Se reclamar, piora". Mais do que eu, ele sabia do que falava. Segui o conselho e me dei bem.
 
Há intimidade e originalidade na relação de Nelson Rodrigues com as palavras. Não à toa muitas de suas frases tornaram-se memoráveis, a começar pela própria expressão óbvio ululante, por todos conhecida. Muitas dessas criações traçam perfis sociológicos e psicológicos, como ocorre com o famoso complexo de vira-latas, para definir a baixa autoestima do brasileiro.

Mas Nelson não é apenas um fazedor de frases de efeito. Na construção do texto, percebe-se o capricho com que lapida a linguagem e o resultado, em geral, é de expressiva riqueza estética, apesar da circunstância de escrever para jornal.

Destaca-se nessas linhas o observador esmerado da vida, não obstante implacável, às vezes melancólico, às vezes bem humorado, quase sempre irônico, eventualmente injusto no julgamento de pessoas, mas ao mesmo tempo capaz de cálida ternura.

É difícil começar a leitura de uma crônica e não emendar logo em seguida na outra.

Veja o leitor algumas frases:

Para os meus três anos, o mar, antes de ser paisagem, foi cheiro. Não era concha, nem espuma. Cheiro. Meu pai, antes de ser figura, gesto, bengala ou pura palavra, também foi cheiro. Ninguém tinha nome na minha primeira infância. A estrela-do-mar não se chamava estrela, nem o mar era mar. Só quando cheguei ao Rio, em 1916, é que tudo deixou de ser maravilhosamente anônimo.  (pág. 17)

Eis o que eu queria dizer: - para mim, o amigo é o grande acontecimento. (pág. 27)

O ônibus apinhado é o túmulo do pudor. (pág. 33)

A pior forma de solidão é a companhia de um paulista. (pág. 48)

Morte tão leve como a euforia de um anjo. (pág. 107)

Cada época sepulta uns tantos autores. (...) O que envelheceu em Dickens não foi o próprio Dickens. Não. Foi a sua ternura que desapareceu da nossa época. Olhem em torno. Não há mais o terno, o compassivo. Vivemos uma época feroz. (pág. 268)

Fazia um frio de rachar catedrais. (pág. 271)

Este mundo é a casa do ódio. (pág. 319)

Se querem saber, não sei francês. Não sei nenhuma outra língua, além da minha. As coisas só existem na minha própria língua. (pág. 333)

Na Rua do Ouvidor há um ceguinho que toca violino. Seu repertório é um tango único e, repito, sempre o mesmo tango. (371)

Eu me mato, não para pagar as dívidas, mas os seus juros. As dívidas permanecem maravilhosamente intatas. (idem)

São apenas fragmentos recolhidos de um rico manancial. No interior dos textos, na arquitetura com que o autor constrói as crônicas, revela-se o trabalho luminoso.

Nelson Rodrigues é um atento e perseverante leitor de costumes e comportamentos. Analisa com obsessão o modo de ser e a visão de mundo do brasileiro. Nesse caminho foi capaz de compor grandes e reveladoras sínteses.

Ele próprio tornou-se personagem da absurda realidade: tendo falecido na manhã de domingo de 21/12/1980, aos 68 anos, no final da tarde daquele dia Nelson faria os treze pontos da Loteria Esportiva, num "bolão" feito com o irmão e colegas de O Globo...

É por autores como Nelson Rodrigues que a leitura se torna um exercício de encantamento e instigante reflexão. Não podemos passar longe dessas crônicas, sem sofrer irreparáveis perdas.

Ler continua sendo o melhor antídoto para atravessar tempos tão secos e difíceis como estes.

A vida com literatura já é difícil, imagine sem ela...

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O óbvio ululante: as primeiras confissões, Nelson Rodrigues, 445 páginas. Agir Editora Ltda., Rio de Janeiro, 2007. A frase de epígrafe deste artigo está na pág. 271 do livro. 

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O escândalo das hortênsias

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto


As hortênsias resolveram embelezar a cidade. Era só o que faltava.

Em meio a tanta desilusão, tanta feiura das almas, tanta gente má e casca grossa, vêm agora as hortênsias e decidem distribuir beleza e graça.

Um negócio muito estranho.
 
photo: j.finatto

Um verdadeiro escândalo aqui em Passo dos Ausentes.

Quando achava que não tinha mais jeito, quando nada mais esperava diante do triste espetáculo humano, as hortênsias surgem em silêncio, espargindo cor e delicadeza sobre cinzas.
 
O que mais nos espera?, eu pergunto, e já ninguém responde.

Tanta beleza é mesmo uma violência contra a desolação.
 
O que será feito da nossa histórica descrença no Brasil e em nós mesmos?
 
E o que restará do nosso olhar melancólico sobre o sentido da existência? É o fim dos tempos.

Devia ser aberto, imediatamente, um inquérito contra as hortênsias por tamanho absurdo e desacato à ordem estabelecida, verdadeiro atentado violento ao pudor a céu aberto.
 
Mas ninguém faz nada, este é realmente o país da impunidade.

Nem maldizer a vida em paz a gente pode agora.
 
É o fim da picada.


photo: j.finatto

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O título podia ser A sagração da primavera, uma feliz recordação da música de Igor Stravinsky, diante da estação que se aproxima (chega em setembro).
Texto revisto, postado antes em 12/12/2011.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

No tempo do Cine Vogue

Jorge Adelar Finatto
 
Retratos de Ingmar Bergman. fonte: site oficial*
 
Teve um tempo em Porto Alegre que assistir a filmes de Ingmar Bergman (1918 - 2007) era uma religião. O diretor sueco era o pastor de almas de muita gente por aqui, principalmente estudantes, intelectuais, trânsfugas em geral e perdidos na vida .
 
Era na época da ditadura civil-militar. Eu andava pelos 19 anos em 1976. O general Geisel era o presidente de plantão com o apoio de parcela da sociedade civil brasileira e de parte da imprensa.  Os direitos e as garantias individuais estavam fora da ordem jurídica. Ter ideias e opiniões diferentes dos que ocupavam o poder podia configurar crime do pensamento. Sim, muito parecido com o "1984", de George Orwell.
 
Nos regimes em que a escuridão vigora, as nuances são proibidas e qualquer sutileza é vista como inimiga. Todos são suspeitos (de alguma coisa) até prova em contrário. Era assim.

O Cinema Vogue, na Avenida Independência, era, como os demais de então, um cinema de rua. Tinha uma programação especial, considerada "cabeça". Um território de resistência em meio à repressão, assim como os bares da Esquina Maldita. 
 
A delicadeza era uma ilha deserta a mil milhas do continente.
 
Ingmar Bergman não tinha nada a ver com a ditadura no Brasil. Não sabia que era o pastor daquelas almas abismadas em voos interiores e travessias espirituais. Não sendo possível mudar a realidade, muitos buscavam outras claridades. Havia um mundo intangível a ser descoberto, onde os donos do poder e os emissários da morte não entravam.
 
Apesar da pobreza material em que eu vivia, e do escasso tempo para os assuntos do espírito, apreciava os itinerários bergmanianos através da consciência, da memória  e, sobretudo, do inconsciente. A manhã seguinte aos filmes de Bergman era sempre o cru desafio da luta pela sobrevivência.

O Brasil de então era (e, sinto dizê-lo, ainda é) um lugar onde reina uma grande violência social baseada na exclusão e na indiferença. O acesso às coisas da arte continua um privilégio para poucos. O país conseguiu livrar-se da ditadura, mas não logrou o mesmo com a corrupção, responsável direta pelo atraso e pelo sofrimento da maioria.
 
Devo dizer, também, que gostava de filmes de Teixeirinha e Mazzaropi, que assistia em outras salas tidas como menos cult, do povão. Havia um grande preconceito da classe média, principalmente entre universitários, em relação a esses filmes brasileiros. Uma coisa idiota como todo preconceito.
 
Essas lembranças me vêm porque andei revendo Morangos Silvestres (1957) e Fanny e Alexander (1982), duas obras-primas do grande cineasta. Me lembrei de mim e de nós. Da vida que foi e da que poderia ter sido. Da vida que passou, tempo finito.

Olhei com esperança para a vida que é e para a que vem vindo logo ali.
 
Viver pode até ser difícil para quem leva o coração entre as mãos, sem omiti-lo nas suas ações e decisões. Mas é infinitamente melhor do que ser mais um a roubar, a dar porrada, a pisar na cabeça dos outros, a destruir a vida alheia, a não ter valores.
 
Muita gente se perdeu no caminho em sinistras direções. Eu inventei tempo para a poesia e a arte em minha vida e tentei compartilhar. Foi e é uma maneira de não me perder e de não enlouquecer em meio a uma realidade tão absurda, desumana e violenta como a do nosso país.

Ave, maravilha.
 
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Site Oficial de Ingmar Bergman:
 
Os direitos humanos em Cuba:

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Bibliotecas

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

Tantos livros me assustam
trago uma ignorância milenar
guardada num lugar
claro do meu ser
uma ignorância - ou a sabedoria -
do sol às 7 da manhã

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Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Henrique do Valle: obra reunida*

Dia 21 de agosto, às 19 horas, na sede do Instituto Estadual do Livro (Rua André Puente, 318, bairro Independência, Porto Alegre), será lançado o livro Henrique do Valle: obra reunida (440 páginas, R$ 40,00), que traz textos publicados e inéditos do poeta Henrique do Valle (1958 - 1981), com organização, apresentação e notas de Paulo Seben.
 
SOBRE O AUTOR

Foto:
Ana Maria Lopes
de Almeida Bastos
Quem tem mais de cinquenta anos, frequentou o Bom Fim no final da década de 70, gosta de poesia e acompanhou os movimentos culturais daquele período, certamente já ouviu falar de Henrique do Valle, ou "Ike", como era conhecido. Quem tem menos de cinquenta, certamente vai se interessar pelo mais marginal e radical poeta da cena boêmia porto-alegrense dos Anos de Chumbo, morto aos 22 anos. Sua obra é agora resgatada pelo Instituto Estadual do Livro, juntamente com originais inéditos perdidos durante trinta anos.

Sobrinho do presidente deposto João Goulart, Henrique do Valle passou pela traumática experiência do exílio. Já por seu primeiro livro, A espessa verdade/La espesa verdad, publicado em Buenos Aires em 1973, aos 15 anos, foi considerado uma das grandes promessas da poesia no Rio Grande do Sul. Ike publicou ainda mais dois livros em vida: Vazio na carne (1975) e Anotações do tempo (1979); Do lado de fora é obra póstuma, publicada em 1981.

O poeta atormentado mergulhou fundo no álcool e nas drogas, todas elas, em especial o LSD e a maconha, que o levaram a várias internações e até à prisão, vivências transmutadas em poesia amarga, delirante - porém, paradoxalmente, capaz de alcançar uma consciência que superou o maniqueísmo daqueles tempos conflagrados.

Henrique do Valle conseguiu “expressar as aflições, os desesperos, as dúvidas de uma juventude sufragada num mar de acontecimentos convulsos que se debate entre o desejo de encontrar um rumo e a depressão de precoce desengano”, segundo Pedro Vergara. Nesse sentido, Ike era representante da chamada geração de “poetas marginais”, desencantada com o sistema e reprimida pela ditadura militar. Sua poesia está marcada pela denúncia social.
 
No entanto, Jorge Adelar Finatto, amigo do poeta, afirma: “a poesia de Ike é muito mais do que um depoimento de geração, relato de um tempo mau. A obra que deixou tem força interior e qualidade, vale por si, não é datada”.

A obra de Henrique do Valle vem agora a público acrescida de inéditos encontrados com amigos e familiares, numa edição conjunta IEL/Corag, com organização, apresentação e notas de Paulo Seben, professor de Literatura Brasileira na UFRGS.
 

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*Notícia publicada no site do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul: