segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Plazoleta Julio Cortázar

Jorge Adelar Finatto
 
Plazoleta Julio Cortázar. Palermo Viejo. Buenos Aires. photo: jfinatto
 
Uma vez que um parente nosso muito afastado chegou a ser ministro, conseguimos que ele nomeasse boa parte da família para a sucursal do Correio da rua Serrano.

           Julio Cortázar, in Correios e telecomunicações.* O conto se passa na calle Serrano, atual Jorge Luis Borges

Julio Cortázar. fonte: Wikipédia

Saí de Puerto Madero, o bairro mais novo de Buenos Aires, e fui a Palermo, um dos mais antigos e tradicionais. Esta a missão que me dei para aproveitar o início da tarde bonaerense: ver de perto a pracinha Julio Cortázar, no cruzamento das ruas Honduras e Jorge Luis Borges. Desci do táxi na frente.

Não havia ninguém ali naquela hora solar. No instante sufocante e tremeluzente é que se dá valor ao velho chapéu de palha, que não abandono nunca.

Plazoleta Julio Cortázar. Palermo Viejo. photo: jfinatto


photo: jfinatto
 
 
Nos fins de semana a plazoleta se transforma num local movimentado com sua feira de artesanato e outras criações. Palermo é um grande bairro. Os moradores nomeiam cada setor conforme suas características e idiossincrasias.
 
A pracinha Cortázar fica no que denominam Palermo Viejo ou Soho, considerado o centro do design da capital argentina. Em volta da praça e ao longo das ruas, encontramos casas antigas, coloridas,  bares, livrarias, restaurantes, lojas de vestuário, oficinas descoladas. É um bairro com vida noturna e diurna. Há também Palermo Hollywood, das produções para tv e cinema.
 
Não me demorei muito no local por causa do sol forte sob o céu chapado de azul com poucas nuvens. Um lindo dia, como se diz (embora, pra mim, dia lindo é com frio, cerração, chuva e, se possível, um poquito de nieve). Vá entender os abismos da alma humana.

photo: jfinatto
 
Nada de especial a mencionar em relação à praça, exceto que, no chão, há pedras para jogar amarelinha, título do famoso livro do escritor (Rayuela). Antigamente era denominada Plaza Serrano, nome pelo qual muitos ainda a chamam. O rebatismo foi uma homenagem da ciudad de Buenos Aires ao escritor ilustre e data de 1994. Fica no extremo da calle Jorge Luis Borges, que antes, por sua vez, se chamava Serrano. 
 
Cortázar, vale dizer, tinha especial afeição por Palermo, bairro que menciona várias vezes em sua literatura. Basta ler, por exemplo, os contos Simulacros Correios e telecomunicações, ambos do livro Histórias de cronópios e de famas. Aliás, este livro é um clássico da obra cortazariana, misturando o fantástico, o humor e uma certa melancolia.

Palermo Viejo (Soho). photo: finatto

Melancolia, de resto, que dificilmente se encontrará nos espíritos que se acham senhores de verdades absolutas e cujas existências não conhecem dúvidas nem angústias. (À noite, na solidão abissal do pré-sono, não suportam ficar com os próprios pensamentos.)
 
Jorge Luis Borges (1899-1986) viveu no bairro com  a família, na infância, entre 1901 e 1914, na casa número 2135. Em vários textos, o escritor faz alusão a Palermo, que habita sua memória afetiva.

Abençoados por Cortázar e Borges, os viventes de Palermo são personagens póstumos de um lugar que foi muito caro a ambos e que faz parte do que de melhor se produziu em literatura no século XX.

photo: jfinatto
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*Histórias de cronópios e de famas. Julio Cortázar. 12ª edição. Tradução de Gloria Rodríguez. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2009. pp. 27/28
 

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Saudade do outono

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
A mais bela das estações, para o mortal que escreve nesta rude página elétrica, é o outono. De boa vontade embrulharia o verão e o mandaria direto para o inverno.
 
Não quero desfazer das outras estações, cada qual com seus gostos. O verão, por exemplo: tem muita gente que gosta. Mas é no outono que eu renasço.
 
Outono significa transformação, as mudanças tão necessárias e urgentes para a vida seguir seu curso. É o recolher das seivas, reunião de forças, introspecção, preparo e passagem para um outro tempo.
 
Observei a copa dos plátanos esses dias e vi que começam a despontar os primeiros pigmentos amarelos nas folhas.

É pré-outono, uma notícia que a natureza mais íntima da flora nos manda em pleno verão. Para não esquecermos a beleza que está por chegar. A paisagem impressionista se anuncia. Nem todos percebem esses avisos. Só os ávidos por outono.
 
Os cáquis estão muito verdes ainda nos pés, mas crescem em silêncio entre as folhas e prometem doces dias em sua pele dourada.
 
O outono não é uma rainha decrépita, longe disso. É uma princesa discreta, sensual e misteriosa, que traz o véu com mil cores e tons, além de delicadas fragrâncias.

As nuvens são cor de açúcar queimado no entardecer.

Escrevo palavras de saudação ao outono que se aproxima, trazendo na bagagem seus ocres e amarelos, suas seivas, suas luminosas mutações, sua concentração na permanência da vida.

Um texto de fuga, alguém dirá, com alguma razão. A palavra há de servir, também, às vezes, para a evasão do real, sempre tão importante a fim evitar a loucura por excesso da realidade.

Eu ando mesmo com uma bruta saudade das delicadezas do outono em meio à barbárie destes dias.

As manhãs e tardes da estação das folhas cadentes prometem leveza nos traços iridescentes. A tristeza vai ter de esperar.
 

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

El fantasma de la isla

Jorge Adelar Finatto

Puerto Madero, Buenos Aires. photo: jfinatto


O que a gente leva da vida são uns recuerdos de viagem, Maria. É o que dizias, eu menino, lembra?

O que fica é um pouco de bruma nas mãos, quase nada. Uns retratos velhos, uns livros empoeirados, umas dores inconfessadas, uns remorsos, umas raivas, umas ilusões ressequidas pelo tempo. E a impressão de que, talvez, não vale a pena tanto cansaço. Não vale um caracol essa louca passagem para o nada.

Agora ando a reunir meus recuerdos de viagem, Maria. Como um menino que vira com ternura as folhas do seu álbum.

Por isso resolvi sair pelo Arroio Tega, nesta manhã, com meu barco de papel. Vou viajar, Maria. Levo dentro do barquinho a mala de prodígios (as histórias que me contavas para espantar o rugido do vento nos contrafortes da solidão, as noites frias de inverno que passavas comigo ao colo em volta do fogão a lenha).

O trem que custava, como custava!, a chegar na estação!

O barquinho é branco como nuvem e tem a vela azul-clara. Construí-o com uma folha de caderno escolar.

Hoje andei com ele na mão até a beira do arroio e, no fim da tarde, lancei-o suavemente na corrente e pulei dentro. Sentei ao fundo, na popa, e manejei o pequeno leme. Estamos navegando sob a claridade longínqua das estrelas.

Só os meninos e alguns poucos velhos sabem navegar num barco de papel. Vejo as luzes vermelhas de um avião piscando distantes no céu.

O barco de papel é frágil e breve como a vida. O tempo, Adamastor enfurecido, devora tudo que encontra pela frente e arrasta nossos barquinhos para o fundo das águas. Mas nem por isso desisto de navegar.

O instante de ternura é nossa plausível eternidade, Maria.

Vamos, barquinho, vamos deslizar entre as estrelas.
 

sábado, 31 de janeiro de 2015

Hibaku Jyumoku, vida vencendo a morte

Jorge Adelar Finatto 

Ponte no Jardim Japonês. Buenos Aires. photo: j.finatto

 
O Jardim Japonês, em Buenos Aires, no bairro de Palermo, é um enclave de delicadeza e harmonia num país que atravessa um momento muito difícil. Não só pelas dificuldades na economia como pelos embates políticos que, a exemplo do Brasil, parecem não levar a lugar nenhum.
 
A trágica morte do promotor federal Alberto Nisman, com um tiro na cabeça, em seu apartamento no bairro de Puerto Madero, no domingo, 18 de janeiro,  agravou muito a situação. Foi um aparente suicídio, mas há suspeita de assassinato.
 
Em 14 de janeiro, ele havia denunciado a presidente Cristina Kirchner e alguns aliados de ter um plano para encobrimento da suposta participação de iranianos no atentado contra a Associação Mutual Israelita-Argentina, em 1994, que matou 85 pessoas e feriu outras 300. Kirchner e membros do governo repudiaram a acusação.

A morte de Nisman causou comoção em todo o país. Desde então não sai da capa dos jornais, das rádios e televisões. As investigações prosseguem (e as discussões também). Por enquanto, não há indicação de autoria do crime nem confirmação de suicídio.
 
A Argentina é um belo país com um grande povo e não merece passar por esse tipo de situação. Assim como nós, no Brasil, não merecemos os casos absurdos de corrupção que se revelam todos os dias. Mensalão, Petrolão, etc., etc. Coisas tristes que haveremos de superar na medida do nosso esforço em construir uma nação melhor, muito melhor do que isso que se apresenta. Valha-nos Deus.
 
Jardim Japonês, Buenos Aires. photo: jfinatto

 Mas eu dizia que saí para andar no Jardim Japonês. É preciso se aproximar das coisas boas que restam e que, felizmente, não são tão poucas assim. Lá no suave jardim oriental há um bonito lago, pontes, peixes coloridos, quedas dágua, plantas, árvores, aves, flores, seixos. Caminhos de silêncio e recolhimento. Fazem parte da estrutura do parque uma casa de chá, restaurante, viveiro, espaços para reuniões e lojinha com produtos da cultura japonesa.

Olhemos as pontes. Elas nos fazem crer na possibilidade de encontro de opostos. Simbolizam o itinerário rumo ao amanhecer, num mundo marcado pela discórdia e pela violência. Ponte: caminho, ligação entre o humano e o divino.

Jardim Japonês, Buenos Aires, photo: jfinatto
 
O Jardim Japonês cultiva esperança e beleza em seus ambientes. Ali encontrei três árvores descendentes de outras que sobreviveram à bomba atômica que arrasou Hiroshima em 1945.

A essas árvores sobreviventes os japoneses dão o nome de hibaku jyumoku, que significa árvore sobrevivente do bombardeio atômico. Lá estão elas vivas, pequenas ainda, crescendo.
  
Ninguém acreditava que Hiroshima e Nagasaki, atingidas por bombas atômicas, teriam vida vegetal antes de 75 anos após os bombardeios. Não foi assim. Árvores sobreviveram em silêncio sob a terra, em suas raízes, e, na primeira primavera, mudas irromperam do solo devastado pela radiação. A vida vencendo a morte.

Que a história dessas árvores frutifique em nossos corações e nos anime a enfrentar os tempos difíceis que andam por aí. Ave, vida!

Jardim Japonês, Buenos Aires, photo: jfinatto
 

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Quinquilharias San Telmo

Jorge Adelar Finatto

Mercado de San Telmo, Buenos Aires, photos: jfinatto

Se algum dia uma grande catástrofe se abater sobre o planeta, será possível aos sobreviventes reconstruí-lo a partir das quinquilharias da Feira de Antigüidades de San Telmo, em Buenos Aires. Um passeio pelo bairro de San Telmo, aos domingos, nos permite encontrar, na Plaza Dorrego e pelas ruas do entorno, objetos de todos os tipos e épocas. A feira existe desde 1970 neste lugar boêmio e convivente.

Mas nem só de velhos objetos vive o bairro. Além dos expositores, que povoam a praça, as calçadas e o Mercado de San Telmo, existem artistas que fazem apresentações aqui e ali. Shows com dançarinos de tango, violonistas, cantores, marionetes, tudo isso e mais o que não tem fim se encontra em San Telmo. E, como não podia deixar de ser, há livros usados também, muitos livros.

No domingo em que lá estive, desabou uma chuva tremenda de tarde, fui para dentro do mercado. Só que, meia-hora antes, o pessoal da rua já cobria as mercadorias com plásticos. Eles sabem interpretar as nuvens portenhas.

photo: jfinatto

A Feira de San Telmo lembra, de algum modo, o meu escritório em Paso de Los Ausentes. Um pequeno território extraviado de San Telmo. Velha máquina fotográfica que não funciona há muitos anos, caleidoscópios, lunetas, quadros, telescópio, remo, espada, boleadeira, balaios, vidros, pedras, retratos, bijus, souvenirs, etc., etc. Um estranho lugar onde eu sou o quinquilheiro.

photo: jfinatto

A vida é feita de quinquilharias materiais e afetivas. Cada objeto guardado possui uma alma. Cada sentimento é um diamante. Todos reunidos formam esse museu particular que vamos construindo. E todos nós, dia mais, dia menos, nos transformamos também numa quinquilharia.

Sem nostalgia de vidas passadas (vivemos muitas vidas antes dessa de agora), vamos levando o barco (afinal, San Telmo é o padroeiro dos navegadores).

Quinquilharias vivas é o que somos. Mas, ao jeito de cada um, participamos da vida da tribo, assobiando e decifrando o tango que nos tocou dançar. Se erramos o passo ou o verso, acertamos os próximos.

photo: jfinatto

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Café Tortoni, escrita e medialuna

Jorge Adelar Finatto

Esculturas de Borges, Gardel e Alfonsina Storni. Café Tortoni. photo: jfinatto


Estou tomando um café no Café Tortoni, em Buenos Aires. Aproveito e leio essa bela descoberta que fiz em Montevideo: o texto enxuto, arrebatador e próximo ao leitor do escritor, pianista, inventor e compositor Felisberto Hernández (1902-1964).

Como alguém consegue escrever desse jeito? Puro espanto. E isso que comecei há não muitas páginas atrás o volume Los libros sin tapas* (Os livros sem capas), e nem sequer abri o outro, Las hortensias, do qual se fala muito bem, com prólogo de Julio Cortázar. Semelhante estranhamento só encontrei no argentino Macedonio Fernández e seu extraordinário Museu do Romance da Eterna.

São textos breves, que irrompem de repente na página e em seguida se espalham com intensidade de um caudal, algo como o Rio da Prata que começa pequeno no Rio Pelotas, a nordeste do Rio Grande do Sul, transforma-se depois em Rio Uruguai e mais adiante se encontra com o Paraná, formando este mar platense.

Houve uma vez no espaço uma linha horizontal infinita. Por ela passeava uma circunsferência da direita para a esquerda. Parecia que cada ponto da circunsferência coincidia com cada ponto da linha horizontal. (In Genealogia, p.66, tradução livre JFinatto).

Um dia me dei conta que estava próximo de perder a razão. Não me atrevia a afirmar se devia ter razão ou se devia perdê-la. Então me decidi viver espontaneamente: se espontaneamente a perdia, bem; e se espontaneamente não a perdia, também. (In Juan Méndez o Almacén de ideas o Diario de Pocos Días, p. 140, tradução livre JFinatto)

Não por menos manifestou-se Cortázar:

Basta iniciar a leitura de qualquer um de seus textos para que Felisberto esteja lá, um homem triste e pobre que vive de concertos de piano em clubes do interior, tal como ele sempre viveu, tal como nos conta desde o primeiro parágrafo. Mas assim que o reconhecemos mais uma vez – bom dia, Felisberto, tudo bem com você? Será que tem um pouco mais de dinheiro, que seus quartos de hotel são menos horríveis, que desta vez vão te aplaudir nos teatros ou cafés? Será que essa mulher que está te olhando te ama? -, nesse reconhecimento que ocupou apenas uns poucos parágrafos logo outra coisa se instala, o salto fulgurante para a única coisa que vale para ele: o estranhamento, o indizível contato com o imediato, ou seja, com tudo aquilo que constantemente ignoramos ou afastamos em nome do que se chama viver.**

Vir ao Tortoni como ao Café Brasilero, em Montevideo, virou uma espécie de vício, um santo vício que tenho me permitido nesses dias. Ah, sim, viciei-me, também, em medialunas, que são croissants, santos croissants, deliciosos croissants em forma de meia-lua (como dizem os nomes).

photo: Café Tortoni, extraída do site oficial***

Testemunho e dou fé: não existem medialunas no universo como as do montevideano Café Brasilero.

O Tortoni (Avenida de Mayo, 825), fundado em 1858, é um dos cafés mais antigos e tradicionais da capital argentina. Por ele passaram fregueses fiéis e veneráveis como Alfonsina Storni, Mario Benedetti, Jorge Luis Borges, Carlos Gardel,  García Lorca, Arthur Rubinstein, Ortega y Gasset e muitos outros.

As paredes exibem pinturas e retratos de diversos artistas, os móveis são bonitos. Em salas adjacentes apresentam-se espetáculos noturnos de tango.

É comum a formação de filas para entrar. Algo como 10, 15, 20 minutos de espera. Mas vale a pena estar no ambiente do século 19 e mergulhar numa espécie de túnel do tempo. Hoje, na mesa ao lado, estão dois cavalheiros vestidos com trajes daquela época, camisas alvas, gravatas de lacinho e cabelos lambidos, portando, claro, bengalas. Parecem atores, mas bem podem ser fantasmas (gentis fantasmas) que vêm do além só para estar no seu café de outrora. Nunca se sabe.

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*Los libros sin tapas. Felisberto Hernández. 1ª ed. El cuenco de plata, Buenos Aires, 2010.
** Fragmento extraído do site da Fundação Felisberto Hernández, Montevideo, Uruguai:
http://www.felisberto.org.uy/   
***Café Tortoni:
http://www.cafetortoni.com.ar/br/

sábado, 24 de janeiro de 2015

La que nunca tuvo novio

Jorge Adelar Finatto
 
Ruazinha do bairro Palermo Viejo, Buenos Aires. photo: jfinatto


Melancólica e linda canção. A que nunca teve namorado.

Estava no avião, indo para Buenos Aires, quando ouvi o belo disco Tango, do violonista e guitarrista argentino Luis Salinas. Música instrumental de alta qualidade, oferecida pelo serviço de entretenimento do barco voador.

Nunca tinha ouvido falar em Salinas. Fiquei impressionado com seu talento e com a inspirada seleção de repertório desse disco de 2007.

La que nunca tuvo novio. A melodia nostálgica, suave e doce deste tango de 1930 me levou a encontrar a mulher que nunca teve namorado, que triste!

E a vi horas sem fim na janela, olhando a calle desierta, onde algum moço passava de vez em quando, e ela então sonhava. Mas o moço apenas passava diante de sua janela, todos os moços passavam e se iam para outras moças em outras janelas.

Ela morava com a mãe, cuidava da casa e dos sobrinhos. Numa calle com casas coloridas e flores humildes nas janelas, num bairro distante.

Uma ruazinha perdida em Buenos Aires, um lugar escondido de Deus, um ermo esquecido ao sul do planeta. Igual a tantos no mundo. Lá ela morava.

Aos sábados, la que nunca tuvo novio se enfeitava com um vestido florido que ela mesma fizera e se ia pelas ruas do barrio com a sombrinha lilás doendo sob o sol. Olhava as vitrines, conversava na praça com as vizinhas, tomava refresco do vendedor ambulante.

Depois voltava sozinha pra casa por ruas estreitas. Assim passaram-se os anos. As amigas de infância se casaram, depois as filhas delas. A vida passou. E as vizinhas diziam: la que nunca tuvo novio. Pobrecita!

Essas coisas eu vi enquanto ouvia o dedilhado sensível e introspectivo do violão de Luis Salinas. Caminhei pela calle triste da mulher que nunca teve namorado.