segunda-feira, 5 de junho de 2017

El viejo faro

Jorge Finatto
 
objetos do Farol de San Juan de Salvamento. photo: jfinatto*


O VELHO FAROL abandonado de San Juan de Salvamento observa o Fim do Mundo. Vive na memória de extintas luzes que iluminavam a escuridão profunda do oceano.
 
Nessas noites glaciais de junho, o fantasma de Julio Verne caminha pela Isla de Los Estados com uma lanterna na mão. Habita a ilha já sem o peso da ampulheta. Convive em silêncio com os personagens do antigo livro que um dia escreveu sobre este território onde a Terra acaba.

Do alto rochedo observa o Atlântico e o Pacífico. O vento fustiga-lhe a face.

O velho escritor, criador de sonhos, é ele mesmo agora um sonho. E mora na sua ilha como o faroleiro de um farol abandonado. Carregará sempre a lanterna da palavra.

eixo central original do farol. photo: jfinatto
 
Estou na janela da mansarda amarela sobre a Baía de Ushuaia. Tarde de domingo. Uma fina neblina arrasta o véu diáfano sobre o Canal de Beagle.
 
A memória das coisas passadas e vividas não pode ser cemitério. Tem de ser maternidade.

Abram-se, por favor, todas as janelas e corações. Deixemos a luz penetrar a sombra.

Celebremos as vidas que estão e as que hão de vir.

Sejamos claros e benignos como as luzes do velho farol e a lanterna do escritor.

restos do farol foram recolhidos; estão no Museu Marítimo de Ushuaia

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*Museu Marítimo de Ushuaia reúne o que sobrou do velho farol. 
 

sábado, 3 de junho de 2017

A solidão do fim do mundo

Jorge Finatto
 
Isla de lobos marinos. Tierra del Fuego. photo: jfinatto

Haverá solidão maior  que a do homem que cuida do farol nestas Ihas do Fim do Mundo? Haverá vida mais austera que a desse alguém cujo ofício é velar para que os navios não se estraçalhem nos rochedos traiçoeiros do mar tenebroso da Terra do Fogo, cemitério de navios e intrépidos marinheiros, sul absoluto, onde se encontram as águas congelantes do Atlântico e do Pacífico?
 
Julio Verne (1828 - 1905), no livro El Faro del Fin del Mundo, ambientado na Isla de Los Estados, a extremo leste da Tierra del Fuego, tem uma visão menos trágica do isolamento do homem do farol. O farol de que trata a obra é o de San Juan de Salvamento que funcionou na ilha entre 1884 e 1902.
 
Antes de mais, importa ressaltar o notável detalhamento que Verne faz da Isla de Los Estados (terreno, fauna, flora, clima) como se por lá tivesse passado alguma vez (nunca veio ao Fim do Mundo). Os requintes de imaginação, a capacidade narrativa e de pesquisa do escritor francês são superiores.

Mas voltemos, distante leitor, à solidão, tema recorrente destas páginas, na lonjura onde me encontro, em Ushuaia.

Julio Verne. Wikipédia
 
Diz-nos Julio Verne:
 
"(...) a monotonia que implica viver num farol nunca é perceptível, em regra, para os faroleiros. A maior parte deles são antigos marinheiros ou pescadores, e não se preocupam com os dias e as horas".¹

Talvez, talvez, digo eu. E o próprio Verne nos lembra:

- O Farol do Fim do Mundo! Sem dúvida que aquele nome se ajustava àquela ilha isolada de toda terra habitada e habitável.²

Olhando este mar escuro e revolto de inverno, sem qualquer amparo, onde só Deus pode valer a criatura humana em seu deserto, sou tentado a achar que a vida, neste território perdido, é um desafio que nos leva ao limite físico e psicológico. Mas a solidão também tem lá sua beleza e poesia.

Pero hay que tener ganas para soportar.

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¹-² El Faro del Fin del Mundo. Julio Verne. Agebe, 1ª ed. Buenos Aires, 2005. págs. 23, 9. Traducción: Ricardo Healy. Tradução livre dos trechos citados, do espanhol para o português, de J.Finatto.
 

quarta-feira, 31 de maio de 2017

Navegando pelo Canal de Beagle

Jorge Finatto 

visão a partir do canal. photo: jfinatto



O FRIO É RIGOROSO e cortante. Mal se põe o pé pra fora da porta do barco e vem o impacto do ar antártico.

A viagem mais interessante em Ushuaia é, sem dúvida, ao longo do Canal de Beagle, caminho de mar onde se encontram Atlântico e Pacífico, que são velhos rabugentos, temperamentais, gelados e perigosos. Nada se compara à sua força nem à vida que trazem nas entranhas, nas ilhas e nas cercanias.

Faro del Fin del Mundo. photo: jfinatto

Beagle era o nome do veleiro utilizado pelo naturalista britânico Charles Darwin quando andou por estas bandas do fim do mundo, fazendo reconhecimento geográfico e estudos científicos. O barco era comandado pelo capitão Robert FitzRoy.

Como se sabe, Darwin desenvolveu a teoria da evolução na obra A Origem das Espécies, impactante e inovadora por contrastar com o criacionismo cristão. A contradição foi superada e, hoje, a própria Igreja Católica aceita a ideia da evolução.

A fauna e a flora que se percebem nas muitas ilhas chilenas e argentinas (separadas por uma linha imaginária), aliadas à paisagem inesquecível, mudam a nossa visão da natureza ao perceber a vida lutando e sobrevivendo nas condições mais adversas.

Ilha de pedra com lobos, leões marinhos e aves. photo: jfinatto

A Terra do Fogo nos leva a uma nova visão da natureza e nos remete a uma reflexão sobre nosso decisivo papel para a preservação de todo esse patrimônio que não é só da humanidade, mas diz respeito a todos os seres vivos.

A vida é bela e grande demais para ser resumida aos interesses humanos.

Ilha dos Pássaros. photo: jfinatto
  
Estamos no lugar dos grandes silêncios, álgido mar, montanhas nevadas da Cordilheira dos Andes, gelos eternos , ilhas rochosas, animais marinhos, aves, bichos da terra. Percebemos que somos apenas parte de um ambiente que é muito maior. Precisamos fazer por merecer a companhia e a paisagem.

Ilha de pedra com lobos, leões marinhos e aves. photo: jfinatto

domingo, 28 de maio de 2017

Postales del fin del mundo

Jorge Finatto
 
restos do Faro de San Juan de Salvamento. photo: jfinatto
 
ESSE título é o nome de um vinho argentino, da Bodega del Fin del Mundo, localizada na Patagônia. Não cheguei a beber o vinho ainda, mas o gosto já começa pelo nome. Palavras com sabor. 
 
Da fato, daqui da Tierra del Fuego mandam-se cartas e postais desde o fim do mundo para os afetos espalhados pelos quatro cantos do planeta. Em Ushuaia existem várias caixas coletoras do correio argentino em locais diversos. Ao menos aqui no fim do mundo, a correspondência de papel continua viva. Para a alegria de visitantes que vêm de todos os lugares e gostam de mandar postais.

caixa de correio. photo: jfinatto
Livraria

Na Boutique del Libro, uma boa livraria situada na Av. San Martín, confirmei o que acima foi dito. Vi sobre o balcão um envelope de carta aberto. Perguntei ao livreiro: aqui ainda se usa enviar e receber cartas? Ele respondeu sí, sí, por supuesto! E disse que era uma carta de uma leitora dos Estados Unidos que tinha gostado da librería.
 
Boutique del Livro, photo: jfinatto
 
Comprei livros de Rodolfo Walsh e Ricardo Rojas, dois importantes da literatura  argentina. E uma edição de El Faro del Fin de Mundo, de Julio Verne. Além da variedade de obras e autores, em diferentes idiomas, pode-se sentar, descansar um pouco e ler.

Julio Verne

Em seu livro O Farol do Fim do Mundo (1905), Julio Verne ambienta a história na Isla de Los Estados, situada na Terra do Fogo, porém a extremo leste, depois de atravessar o Estreito de Le Maire. Pois nesta ilha ficava o Faro de San Juan de Salvamento, que o escritor chama justamente de O Farol do Fim do Mundo, no qual se inspirou para escrever a obra.
 
Impressiona como o autor descreve o local em seu isolamento e desolação, quando se sabe que nunca esteve nesta região. Devia ter muito boas fontes entre os homens do mar. É ainda hoje lugar inóspito, reserva natural, com população de menos de 10 pessoas.
 
El faro foi instalado pela Marinha argentina para orientar os navios que se arriscavam a fazer a perigosa travessia do Atlântico ao Pacífico, sendo aquela região um enorme cemitério de navios. Funcionou de 1884 a 1902, quando foi substituído por outro, na Isla Observatorio, ao norte e próxima à dos Estados.

réplica do farol S.J. de Salvamento. photo: jfinatto
 
peça superior do velho farol. photo: jfinatto

Os restos do Faro de San Juan de Salvamento encontram-se guardados no Museu Marítimo de Ushuaia, na réplica dele ali construída, e valem a visita.
 
O Faro del Fin del Mundo, na entrada da Baía de Ushuaia, chama-se, na verdade, Les Éclaireurs, e não é o tratado no livro de Verne.
 
 Puco-puco

la gaviota Puco-puco. photo: jfinatto
 
La gaviota Puco-puco é uma amiga que conheci no porto de Ushuaia. Estava eu ali levando neve por cima e fotografando (tudo pela arte...). Quando ela sai do mar e vem parar bem na minha frente. Comecei a conversar com Puco-puco (este é o nome que revelou). Utilizei a voz que costumo usar nessas ocasiões. Um pouco ridícula mas funciona. Claro que Puco-puco entendeu tudo, pois me olhava e parecia compreender o que lhe dizia. Disse-lhe que era muito bonita e que estava feliz por tê-la como amiga antártica.
 

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Neve branca contra fundo escuro

Jorge Finatto

Ushuaia, Av. San Martín, 25 maio 2017. photo: jfinatto
 
A NEVE começou a cair na quarta-feira. Durante a quinta não parou, cobrindo calçadas, telhados, carros e os barcos do porto. As montanhas ficaram ainda mais brancas.
 
25 de maio é feriado nacional, dia da Revolução de Maio de 1810, acontecimento que culminou com a independência da Argentina em 9 de julho de 1916. As ruas têm bandeiras e faixas azuis comemorativas. 
 
A maior parte dos estabelecimentos não funcionou. Arrisquei uma ida à livraria mas as portas estavam fechadas. Então o negócio foi andar um pouco (só um pouco) pela rua e voltar ao hotel. O capote azul-marinho e o chapéu ficaram alvos e molhados. Mas a esta altura, longe do Brasil e de sua imensa loucura política, tudo vale a pena. Longe do noticiário, a cabeça alivia e a gente respira um pouco. Parece que existe vida além da demência.
 
porto de Ushuaia, 25 maio 2017. photo: jfinatto
 
Ouvi dizer, mas não posso acreditar, que o soberano da hora convocou as Forças Armadas para "garantir a ordem" em Brasília em decorrência de manifestações políticas contra o governo (?). Regredir aos tempos da intervenção militar? Os militares aceitariam a medonha tarefa? Garantir que ordem exatamente? Essa que está entronada e que é uma continuação da que vem há pelo menos 14 anos e deixou o país nesse estado? Não dá para acreditar, só pode ser boato. Alguém diga que é mentira, por favor.
 

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Faro del Fin del Mundo

Jorge Finatto
 
Faro del Fin del Mundo (Les Éclaireurs). foto: jfinatto

A palavra USHUAIA vem do povo originário Yámane e significa baía (ou porto) em direção ao poente; ou baía penetrando no poente (oeste). À margem do Canal de Beagle, que une o Atlântico ao Pacífico, Ushuaia, cidade mais austral do mundo, como toda a Patagônia possui um dos mais impressionantes ecossistemas da Terra. A paisagem e os seres vivos que a habitam são de uma beleza e diversidade únicas.

vista a partir do porto. photo: jfinatto
 
A Baía de Ushuaia situa-se no interior do canal. O porto da cidade recebe navios de cruzeiro no verão e daqui partem outros tantos em direção ao continente antártico. Aqui a Cordilheira dos Andes corre de leste a oeste, estando a norte da cidade.  A entrada da baía é sinalizada pelo Farol del Fin del Mundo para evitar que os navios tropecem pelo caminho.

Ushuaia. photo: jfinatto

Uma linha imaginária corre pelo Canal de Beagle, separando Chile e Argentina. Todavia o olho do visitante não separa o que Deus uniu: ambos os países aparecem belamente misturados. O frio é glacial.

hora do soninho. lobos marinhos. photo: jfinatto
 
ilha de pássaros. photo: jfinatto

Naveguei nessa terça-feira pela baía durante três horas e fiz fotos. O catamarã para em pontos estratégicos de observação, próximos das muitas ilhas de pedra que surgem aqui e ali. Nelas vemos uma linda fauna de lobos e leões marinhos, pinguins, gaivotas e diversas outras aves. Em algumas as árvores têm os troncos retorcidos pela força implacável dos ventos. O vento úmido do Pacífico castiga a região.

O Canal de Beagle é literalmente abraçado pelas montanhas da cordilheira. Os picos nevados avançam pelas águas do mar até que desaparecem como o pôr-do-sol. O resto vem depois, imenso, assombroso, branco, azulado,  povoado de silêncio e mistério, e atende pelo lindo nome de Antártida.

montanha da Cordilheira dos Andes. photo: jfinatto
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Faro é a palavra espanhola para designar nosso farol de sinalização para navios. Em bom portunhol, aqui aparecem misturados farol e faro. 

terça-feira, 23 de maio de 2017

Ushuaia, a cidade do fim do mundo

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto 21 maio 2017
 

QUANDO O AVIÃO da Aerolíneas Argentinas começa a descer e atravessa o almofadão de nuvens, a quase dez mil metros de altitude, inicia-se a aproximação de Ushuaia. A visão que então se descortina é deslumbrante e perturbadora.
 
As primeiras imagens revelam a majestade da Cordilheira dos Andes, com suas montanhas cobertas de gelo e neve, numa extensão que a vista não ousa alcançar (cerca de oito mil km), percorrendo vários países da América do Sul. Num cálculo feito a olho da janela do avião, estimo entre dois e quatro mil metros a altura dessas elevações nesse ponto.
 
A maior montanha do maciço (e das Américas) alcança quase sete mil metros (6.960), o Aconcágua (Sentinela de Pedra), em Mendoza, também na Argentina. Prosseguindo, avista-se o Estreito de Magalhães, passagem entre o Atlântico e o Pacífico.

Estreito de Magalhães. photo: jfinatto
 
Ushuaia, a mais de três mil km de Buenos Aires, é a última cidade ao sul do planeta, a mais austral (La Cuidad del Fin del Mundo), capital da Província da Terra do Fogo, fundada em 1884, com cerca de 60 mil habitantes. Depois dela, a álgida e desabitada (salvo exploradores e cientistas) Antártida. O Canal de Beagle, em frente, com cerca de 240 km de comprimento, faz também a ligação entre os oceanos Atlântico e Pacífico.
 
A Patagônia (na parte mais meridional da América do Sul) é uma das regiões mais belas do mundo. Nela sente-se a presença de Deus no silêncio das vastas extensões solitárias. Aqui no fim do mundo os extremos se encontram. E não há espaços para vidas isoladas. As pessoas precisam umas das outras para enfrentar a ausência.
 
Aqui é o fim do mundo. Solitude, imensidão. Ventos gélidos, impossíveis. Lugar onde as mãos precisam se dar. Começo talvez de uma nova quimera.