domingo, 12 de maio de 2019

Homem grande, coração de guri

Jorge Finatto
 
Flor de maracujá. photo: jfinatto
 

O FATO é que as datas festivas ou efemérides existem. Podem até ter um sentido comercial, buscando levar as pessoas ao consumo. Mas às vezes é difícil ignorá-las. Hoje, por exemplo, Dia das Mães. Não há como não pensar na mãe de modo mais sentimental. E quem já não tem mãe, como no meu caso, fica calado no seu canto. Disfarça, vai até a janela, sentindo um aperto no peito.
 
Lembro Dela me levando no meu primeiro dia de escola em Porto Alegre. Eu tinha sete anos e acabara de chegar do interior onde vivia com os avós. Tudo era estranho. O Guaíba com seus barcos e navios, a enorme chaminé do Gasômetro, a praça e a praia que havia onde hoje é o Parque Harmonia. A avó tinha morrido há pouco tempo.
 
Naquele dia Ela me vestiu com o uniforme engomado, camisa branca e gravatinha azul, me passou um leve perfume e, antes de eu entrar no portão, me segurou e disse "esse é teu primeiro dia, um dia muito importante. Tu serás um grande homem".
 
Hoje, olho com saudade aquele momento precioso (a esperança que ela tinha no seu menino). Olho com o coração dolorido. Ela não está mais aqui para um abraço. Pequeno, pequeno homem.
 

domingo, 5 de maio de 2019

Os meus velhotes

Jorge Finatto
Café, Museu Chaplin, Vevey, Suíça. photo: jfinatto

ELES REÚNEM-SE às quartas e sábados num café. Sempre na mesma mesa. São quatro, às vezes cinco. Não faço parte do grupo. Chamo-os de "os meus velhotes" com secreta intimidade. Nunca conversei com nenhum deles. É provável que nem deram pela minha presença.

Velhotes são carinhas passados dos 70 que insistem em viver e, ainda mais, em conviver. Na minha paisagem afetiva, essas figuras importam. Trazem a marca da resiliência, persistem na amizade e na vontade de levar o barco adiante. Eu admiro e gosto de pessoas assim.
Quando ando meio desanimado, vou ver os meus velhotes. Sento na mesa costumeira, peço o café, leio alguma coisa. Entrementes acompanho com discrição a reunião do grupo. De alguma maneira, aqueles cabelos brancos me dizem que vale a pena, que existe felicidade no fato de continuar respirando e ir ao encontro dos amigos para um bate-papo num café.

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Pontos de luz

Jorge Finatto

Entardecer em Montreux, Suíça. photo: jfinatto
 

A POESIA existe principalmente fora dos livros de versos. Conseguir reter um pouco desse mistério em forma de poema é tarefa para poucos.
 
Pra quem escreve, o olhar do outro é fundamental. Só o outro pode reconhecer sentido no texto. Sem ele, não tem razão de ser. É como deixar um livro aberto sobre a mesa do quintal, exposto aos ventos, à chuva, ao sol. Os olhos do pássaro, da borboleta e da formiga jamais poderão desvelar o que está escrito. 
 
A descoberta da arte nos torna mais humanos. Os museus, salas de concerto e bibliotecas guardam fragmentos do belo. Mas a maior parte da beleza está em outros lugares, à espera de ser desvendada pela sensibilidade de cada um.

O belo é para sentir e para pensar. O belo pode ser muitas coisas. Às vezes tudo misturado. Só não pode ser a favor da morte e da desintegração do ser humano. Obras de arte são pontos de luz soltos na escuridão cósmica.
 

terça-feira, 23 de abril de 2019

A pele cor-de-rosa da chuva

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

O SER HUMANO tem direito constitucional de andar nas nuvens. Sentimental algaravia. Ah, um dia livre por aí. O que ela mais gosta.

As horas difíceis, cotidianas, que a vida tem. Poucos momentos de gozo. Vida bonsai. Um ermo. Os medos, medo, medo. Um dia se deu conta de que. Olhou no espelho, estranhou. Quem é essa? Deus!
 
Vivia no austero, secreto, precavido jeito.

Desde que ele se foi, enfim, aquela madrugada. (Por que tinha de ser justo de madrugada?) Adeus, adeuses. Casa abandonada. Depois só quireras, uns fanicos de dar dó, cacos quebrados. Ninguém mais.
 
Dia feriado, sábado, domingo, aniversário: nenhum fio de luz embaixo da porta, escuridão completa. Ninguém vem, ninguém nunca nada. Coração solitário de bandeja, corvos vorazes.
 
Noites em claro, sede. Janela aberta sobre a cidade e neons. Vazio. Invoca rezas antigas, banho de madrugada, copo dágua gelada, dorme diante da tv. Quem é essa?
 
A solidão de batom pintada na cara. Ocos dias de viver. Malezas.
 
Ah, bem-vindo, vento de maio. Chuva. Na chuva sente-se protegida, agasalhada. Sai a divagar caminhos molhados. Os longes habitam a sua alma. Peixes coloridos soltos no ar. Sopram presságios no voo de algodão das gaivotas. O rio escorrendo lentamente.
 
Moças saltam das janelas, invadem as ruas como ela. Anêmonas. Saias flutuam. Sombrinhas navegam no vento.
 
A esperança. Ninguém pode viver sem, nem ela nem. Se solitude fosse abraço.

Instantes migalhas de vida são. Breves eternidades. Venham os dias.

O amanhecer sobre nuvens. Venha esse novo amor de onde vier. 

Felicidade é relâmpago. Farândola no coração.

A pele cor-de-rosa da chuva.

Outono, outonos.
 
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Texto revisto, publicado em 9 de abril, 2010.
 

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Renascer de cinzas

Jorge Finatto
 
Igreja de Canela, 21.04.2019. photo: jfinatto
 
 
Que a RESSURREIÇÃO DE CRISTO inspire o renascimento de muitos.

Que volte a chover na terra calcinada dos nossos corações.
 

sábado, 13 de abril de 2019

A mulher do retrato

Jorge Finatto

photo da photo: jfinatto


E, NO ENTANTO, ela está ali, viva, na pequena moldura sobre a mesa do vendedor de quinquilharias na feira de antigüidades da Plaza Constitución em Montevideo. Encontrei-a na sexta-feira, 13/02/2015.

A brisa, um pouco fria, conversava com as folhas dos plátanos. O sol calmo espiava entre os galhos.
 
Viva e bela, lá está a jovem mulher desconhecida de 120 anos atrás. O semblante revela paz. Ou pelo menos resignação. Viver lhe traz algum encanto? Será feliz? Que sonhos acalentará?

Ela vestiu o seu vestido mais bonito pra tirar a fotografia. Sabia talvez que a imagem ia atravessar o tempo e oferecer-se a olhos curiosos no futuro distante.

O retrato caiu do toucador no casarão abandonado da Ciudad Vieja. Muitos anos se passaram na sombra. Um dia entrou num baú e foi levado ao antiquário. Depois à praça onde agora brilham, sob os plátanos, os olhos da bela mulher.
 
O que é uma fotografia? Um instante que não se deixa apagar. 

Um fragmento de vida congelado no tempo.

Uma face de mulher que não se perdeu graças ao registro.
 
Pequena eternidade de luz.
 
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Texto revisto, publicado em 14 fev. 2015.
 

domingo, 7 de abril de 2019

A casa do fantasma

Jorge Finatto

photo: jfinatto. Bologna

E POR FALAR em fantasmas, a coleção deles não para de aumentar. Alguns já partiram há muito tempo (o tempo humano é farelo, ele sabe). Outros ainda estão por aqui mas não foram mais vistos.

Os habitantes do oblívio. Ele mesmo é um tipo de fantasma. Um que caminha entre luz e sombra, dia e noite, preto e branco, visível e invisível.

As ruas são as mesmas mas os antigos moradores viajaram a outros planetas. Ele ficou olhando o fim de tarde desenhado numa aquarela.

Abril chegou com seu discreto frio, seus silêncios, suas quaresmeiras em flor. 

Esta vida é uma aquarela. No início as cores e formas são vívidas e transparentes. Depois vão se apagando como um entardecer.

A beleza habita a casa do efêmero, ele pensa.

E ousa sentir.