terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Entrevista com Heitor Saldanha

Jorge Adelar Finatto


Heitor Saldanha

 
exploro o pulso da forma
para poder deformá-la
e passo
sou minha ultrapassagem
(Heitor Saldanha)


Conheci o poeta Heitor Saldanha nos idos e sobrevividos de 1980.

A descoberta de sua poesia foi uma forte revelação. O elevado nível de criação poética e o apurado trato da linguagem colocam-no entre os principais autores do gênero no Rio Grande do Sul e no Brasil. Por essas coisas que a gente não consegue entender, permanece desconhecido.

Nascido na Serra do Caxambu, município de Cruz Alta, em 28 de abril de 1910, ao longo da vida Heitor fez várias coisas. Tocou viola, cantou versos de improviso, foi funcionário da Viação Férrea e servidor público, entre outras atividades. Acima de tudo, foi um homem comprometido com o humanismo e a poesia, sempre atento ao que se passava com os semelhantes.

A indiferença jamais fez parte do seu modo de ser.

A infância passou-a na região serrana de Cruz Alta, entre bichos e os rios Fiúza e Caxambu. A mãe do poeta, Dona Amélia Gonçalves Dias Saldanha de Vasconcelos, era descendente do poeta Gonçalves Dias. O pai, Otávio Saldanha de Vasconcelos, era repentista, tocava violão, cantava, tinha temperamento expansivo e escrevia bilhetes que encantavam o filho.

Em meados de 1946, junto com Raymundo Faoro, Sílvio Duncan, Luís Carlos Maciel, Vicente Moliterno, Pedro Geraldo Escosteguy, Fernando Castro, Joaquim Azevedo e outros, fundou o Grupo Quixote, que seria reconhecido em todo o país por sua atividade cultural. Em 1947 os integrantes do grupo lançaram a revista Quixote, cujo lema era uma frase do filósofo espanhol Miguel de Unamuno: “Vamos fazer uma barbaridade”. O Grupo desenvolveu intensa agenda literária e artística até o ano de 1961, quando deixou de existir.

No início da década de 1950, Heitor decidiu ir trabalhar nas minas de carvão da cidade de São Jerônimo, perto de Porto Alegre. Durante dois anos e meio desceu ao fundo do poço e viu como era a vida dos mineiros, com o sentimento e o olhar de um mineiro. Ali encontrou o tema do livro “As Galerias Escuras” (1969), obra considerada um marco da poesia social brasileira. Os mineiros souberam do livro e deram de presente ao poeta uma lanterna de mina, a única possibilidade de luz nas escuras galerias.

Em 1958 foi viver no Rio de Janeiro, onde permaneceu por doze anos, retornando depois a Porto Alegre. Aqui viveu até a morte em 1986. No Rio fez relações com Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, de quem foi muito amigo, Aníbal Machado, Ferreira Gullar, os irmãos Campos, João Antônio, Moacyr Félix, entre outros.

A obra de Heitor Saldanha possui voz luminosa, e fala por muitos.

Quem lê seus poemas sabe que está diante de um grande poeta, dono de um lirismo e de uma visão de mundo que penetram de forma vertical na experiência humana. Ao mesmo tempo, seus versos descolam-se da realidade e viajam até a mais alta transcendência.

Heitor despertou para a literatura já homem maduro. O encontro foi decisivo para ele e para a poesia.

É um dos melhores poetas que conheço, podendo figurar ao lado dos principais nomes da literatura em língua portuguesa.

Uma coletânea de seus livros, intitulada “A Hora Evarista”, foi publicada em 1974 pelo Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul e Editora Movimento, com as obras “A Hora Evarista” (1974), “A Nuvem e a Esfera” (1969), “As Galerias Escuras” (1969) e “A Outra Viagem” (1951).

Artesão refinado na arte de escrever, pensador na linhagem de José Ortega Y Gasset, aprendi com ele uma notável lição de humildade e compromisso com a vida de todos os seres.

Em julho de 1981, entrevistei Heitor Saldanha. Fiz as perguntas por escrito. Ele respondeu em alguns dias,  escrevendo as respostas em folhas brancas, a letra muito clara e azul. É um documento que guardo com zelo e carinho. Pretendo um dia entregá-lo a uma instituição que se disponha a cuidar de sua memória e seu acervo.

Recordo com saudade os encontros que tivemos e as longas conversas, no apartamento dele e na Praça Maurício Cardoso, ambos no bairro Moinhos de Vento.

A falta de memória cultural e uma vocação voraz para o modismo e para a autopromoção sem limites nos fazem esquecer autores essenciais como Heitor Saldanha. Perdemos todos. É mais do que hora de republicar a obra do poeta, e de dar a conhecer os livros inéditos que deixou. A poesia por certo sairá revitalizada, em tempos de profunda anemia poética como o que vivemos.

A seguir transcrevo uma parte da entrevista.

JAF - A que se deve o silêncio do público e da crítica em relação à tua obra? Tu te consideras um escritor difícil ou incompreendido?

HS - Difícil avaliar o interesse do público e da crítica sobre o que escrevemos, principalmente se tratando de poesia. A gente até desanima quando pensa nessas coisas. Você vê: um grande poeta como João Cabral de Melo Neto, um dos maiores da atualidade: raramente, a não ser entre os poetas e outros artistas interessados no que é bom, se encontram leitores e se ouvem comentários sobre a obra desse notável pernambucano. De maneira que, com esse exemplo, dentro da minha humildade, considero mais ou menos respondida a pergunta.

JAF - Quando foi que a poesia surgiu na tua vida e quando passaste a usá-la como meio de expressão?

HS - Fui repentista, cantador de versos de improviso desde menino. Só mais tarde, 1945, por aí, descobri que a poesia está em tudo, dentro e fora de nós. Tudo que existe é poesia e o que não existe também. Então comecei a ler e escrever com entusiasmo. E em 1951 publiquei “A Outra Viagem”. Entusiasmo que recebeu o apoio do crítico e poeta Guilhermino César, que muito me ajudou com sua orientação segura.

JAF - A poesia de “A Hora Evarista” é ao mesmo tempo lírica e reflexiva, fato que se verifica em outras obras como “A Outra Viagem”, “As Galerias Escuras” e “A Nuvem e a Esfera”. A tua visão de mundo atual ainda acolhe o ser lírico no cotidiano brutal do mundo de hoje?

HS - Depois disso fui trabalhar nas minas de carvão de São Jerônimo; conheci no fundo de mina a luta dos trabalhadores da mineração. Isso me deu uma mais ampla visão de vida e de sentimento humano, temperando melhor meu instrumento de expressão. Lá escrevi “As Galerias Escuras”, e mais tarde, em 1974, reuni os quatro livros num volume só, “A Hora Evarista”.

Sim, o lirismo existiu, existe, e existirá. É rara uma composição ou um ato de nossa existência, por mais realista que seja, onde não se sinta um sopro de lirismo, felizmente. Como disse, a poesia está em tudo, ela canta muito, embora nossos ouvidos por vezes não consigam escutá-la.

JAF - Como tu convives com teus livros? Gostaria de refazê-los?

HS - Não convivo muito com meus livros. Depois de escritos e publicados, guardo alguns poemas de memória, mas não penso em refazer nada, o importante é tocar pra frente. Há muita coisa a fazer.

JAF - O que o Modernismo significou na tua obra?

HS - Já comecei dentro do Movimento Modernista, apesar de conhecer os clássicos, como é natural. A escola moderna nos deu mais liberdade, melhor aproveitamento das imagens, sem a rigidez de metros e rimas muitas vezes enganosos. Nem por isso deixei de cometer alguns sonetos e poemas rimados, quando me pareceram válidos.

JAF - O que poderia dizer sobre o escritor porto-alegrense Alvaro Moreyra?

HS - Alvaro Moreyra conheci no Rio, fomos companheiros e amigos. Ele era uma criatura boníssima, plena de sensibilidade e ternura, como se pode perceber em tudo quanto escreveu com talento e beleza.

JAF - Há condições de sobreviver escrevendo poesia?

HS - Nem pensar nisso. Quanto melhor for a poesia de um poeta mais ele correrá risco de morrer de fome se pretender viver do lucro que essa poesia possa dar.

JAF - O que representa a tradução para a língua espanhola dos teus poemas, feita por Atílio Jorge Castelpoggi no livro “Muestra”, de 1963, pela Editora Mirto, de Buenos Aires?

HS - A tradução de meus poemas para o espanhol está bem feita pelo poeta Castelpoggi. Ele conhece bem o português, e é bom poeta. O espanhol é bastante musical e ele soube temperar a coisa. A edição era pequena e foi bem aceita pelos argentinos. Ficou por lá mesmo.

JAF - Fazer poesia é algo solitário em que o poeta se coloca à parte do mundo ou é um momento de comunhão do indivíduo com seus semelhantes e com a vida que o cerca?

HS - A meu ver o poeta não faz poesia, faz o poema. O poema, como qualquer outra forma de arte, é uma comunicação entre as criaturas, aquelas que estão em condições de recebê-la.

JAF - Quem é Tribino?

HS - Ah, esse é um caso meio complicado. Pela primeira vez me perguntam quem é Tribino. O livro está inédito há 25 anos. Foi escrito numa época em que levei uma vida boêmia, bastante alucinada e perigosa. De começo chamava-se “Memórias do Louco Tribino”. Depois resumi para “O Louco Tribino” e por fim deixei apenas “Tribino”, já que a loucura será encontrada no texto. É uma rapsódia. Dos meus livros é o que me toca mais fundo. “Tribino” viveu sempre comigo, conquistou sua independência e não morrerá quando eu morrer.

JAF - Fala um pouco da tua permanência no Rio de Janeiro e da convivência lá com Drummond e outros intelectuais.

HS - Durante os 12 anos que morei no Rio de Janeiro, convivi com muita gente boa, a começar pelo grande Carlos Drummond a quem prezo muito e o visitava de vez em quando. Ele é um homem solitário e de pouca conversa, mas sempre atencioso com os companheiros.
Minhas grandes amizades foram Clarice Lispector, a genial escritora que infelizmente perdemos; Helena Jobim, Maura Lopes Cançado, poeta Paulo Armando, José Louzeiro e muitos outros.

JAF - O homem Heitor Saldanha é diferente do poeta? A relação entre a tua vida e a obra é visceral ou uma não interfere na outra?

HS - Não. Acho que o poeta é que é um pouco diferente do Heitor Saldanha, é mais imprevisto, impulsivo e inconformado. De qualquer maneira se completam e se ajudam na medida do possível.

JAF - Como foi a tua infância?

HS - Conforme conta Tribino, minha infância aconteceu na Serra do Caxambu, município de Cruz Alta (”Ô Caxambu, rio bonito), entre bichos e rios, onde meu pai foi colono e comerciante.
Como foi essa infância? Dou a palavra a Tribino :

“Há muito tempo numa serra chamada serra do Caxambu um menino sofreu um acidente, e ao menino estremunhado o pai fez-lhe mijar nas mãos e beber sua própria urina, que, segundo se dizia, era muito bom pra machucado por dentro. A beber pra não morrer é que o menino bebeu. Mas nunca mais se apagou de seu espírito a idéia de que todo aquele que bebe sua própria urina mais cedo ou mais tarde vira um bicho qualquer”.
O menino desceu e andou com as águas do Caxambu.

JAF - Alguns livros que tu amas.

HS - Começando pelo Brasil, “A Maçã no Escuro”, de Clarice Lispector; “Os Ratos”, de Dyonelio Machado; “Primeiras Estórias”, de João Guimarães Rosa. Depois vem “Aurelia”, de Gérard de Nerval; “O Lobo da Estepe”, de Hermann Hesse, entre outros.

JAF - Estás preparando algum novo livro?

HS - Tenho três livros inéditos, engavetados: “Galgonda e outros motivos”, poesia; “Canção para ninar gigante”, poemas humorísticos, e o já mencionado “Tribino”.

JAF - Como é o teu método de trabalho?

HS - Nunca tive método de trabalho. Nem tenho paciência para isso. Sempre escrevi a qualquer hora e em qualquer parte quando sinto necessidade de escrever.

JAF - Que mensagem darias a um jovem escritor?

HS - Que não siga o exemplo do que ficou dito acima. Que se organize, se puder, estude, trabalhe muito e selecione seus textos antes de publicá-los.

JAF - E o Grupo Quixote?

HS - O Grupo Quixote nasceu de uma reunião de jovens (na época) em 1947.
Sílvio Duncan, Pedro Geraldo Escosteguy, Vicente Moliterno, Manoel Walter Miranda, Luís Carlos Maciel, Wílson Chagas, Raymundo Faoro, Heitor Saldanha, Fernando Castro, Walmor Marcelino, Joaquim Azevedo e Jorge César Moreira.

O grupo atuou intensamente, tirou diversos números da revista Quixote, fez conferências, exposições de poemas ilustrados aqui, na Argentina e Uruguai; editou livros. E em 1958 realizou o 1º Festival Brasileiro de Poesia com participação de escritores brasileiros, argentinos e uruguaios, mantendo, inclusive, sessões públicas de revistas orais de poesia, jornais murais e sessões públicas de teses e comunicações. Instituiu prêmios de poesia durante o festival, etc.

Logo depois os componentes do grupo começaram a se dispersar rumando para outros estados da Federação e outros países. E assim extinguiu-se a “Associação Cultural Quixote”, que durante 10 anos prestou relevante serviço à Arte e à Cultura.

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Imagem: Desenho de Heitor Saldanha feito pelo artista francês Michel Drouillon. Fonte: Fascículo sobre o poeta editado pelo Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1984.

2 comentários:

  1. Um material raro, Adelar.
    Pouco se tem falado ou divulgado deste poeta qualificado.
    Alguém social e lirico, simultaneamente, uma mescla muito interessante.
    Foi bom conhecer mais detalhes de sua vida e obra.

    Abraço.

    Ricardo Mainieri

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  2. Heitor é um dos poetas mais importantes que temos no Brasil. Pena que só uns poucos sabem disso.

    Um abraço, Ricardo.

    JF

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