segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

As amargas, não


Alvaro Moreyra





Agora é tempo de voltar. Para onde? Naturalmente para o céu, onde os anjos, irmãos remotos, que não desceram à terra, estão com a mesma infância e as mesmas asas. Eu não levo as asas com que vim. Desmanchei-as pela estrada. Levo as penas que sobraram. No percurso às avessas, encontro “um certo reino à esquina do planeta”. Dele recebi as primeiras imaginações. Descanso junto das sombras que me formaram assim, uma espécie de exilado. Se eu quisesse confessar do que fui construído, teria que dizer: de alguns poetas de Portugal e de alguns jesuítas de todo o mundo. O resto foi ornato. Bastante me pintaram. Bastante me rebocaram. Fiquei intacto sobre os velhos alicerces, no mesmo pé direito, com o estilo primitivo, de janelas abertas para a luz e para o ar.

No meu telhado, as andorinhas ainda fazem verão. Dos jesuítas não guardei nenhuma influência separada, exclusiva. Formaram-me pelo ambiente que formavam na minha sensibilidade. Sinto-os em geral. Lembro-me de um a um, fora de mim. Em mim, estão todos confundidos. Sem perceber, cumpro as ordens que me dão. Carrego o internato comigo. A marca é tão profunda que, já descendo para a velhice, muitas vezes acordo, tendo sonhado que estava lá, na casa enorme e soturna, junto do rio dos Sinos. Eis aí, talvez, a explicação dos meus jeitos de ser. Mas quem sabe se a explicação não é outra? Pode acontecer até que não haja explicação. Neto de portugueses, nasci com Portugal no sangue: era a pátria distante. As suas paisagens passavam em evocação na minha alma.

Como eu tinha de amar Fialho d’Almeida! Como eu tinha de amar Antonio Nobre! E Cesário Verde que, num verso, me descobriu o mundo: - “Madri, Paris, Berlim, São Petersburgo, o mundo!”, e que, morto, ainda ensinou: - “Sê natural, meu amigo, sê natural !” Ninguém mais natural do que Fialho d’Almeida! Era da terra, irmão do trigo, irmão da uva, e dava pão e dava vinho. Antonio Nobre, chego perto de você, como se lhe pedisse perdão de estar vivo, eu que tanto desejei morrer na sua idade, e deixar, tal qual você, uma imagem doce de melancolia. Apesar de tudo, nada mudou. Foi o vento, foi a chuva, foi a vida… coisas que se acumulam. Sempre lhe quero o mesmo bem. A minha juventude escondida é a Purinha, que também não morreu…

”… os homens, quase todos,
têm sido e são muito mais maus do que eu…”

Meu querido Antonio Nobre! Há quantos anos mora no “convento que há além da morte, e que se chama Paz !” Se eu soubesse o número, ligava o telefone para você e lhe perguntava se a paz, aí, é, como aqui, uma palavra apenas… apenas uma palavra de intervalo… *


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*Texto (sem título) extraído do livro As Amargas, Não…, de memórias, de Alvaro Moreyra, publicado pela primeira vez em 1954. A edição utilizada na transcrição é do Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1989, p.9.

Foto: Jorge Finatto

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Silêncio injusto

Jorge Adelar Finatto

O incompreensível silêncio de críticos e editores em torno da obra de Alvaro Moreyra é mais uma prova de que, no Brasil, de fato, lê-se pouco, mesmo entre aqueles que trabalham com literatura. Carlos Drummond de Andrade reconheceu em Alvaro a sua mais forte influência literária nos anos de formação. Isso bastaria para despertar o interesse dos estudiosos, e de todos quantos têm alguma dedicação aos livros, sobre o trabalho do escritor gaúcho (1888-1964). Um dos cronistas mais brilhantes que nossa literatura já produziu, Alvaro Moreyra merece ser lembrado e reeditado, pena de privar-se as novas gerações de um escritor sem igual, injustamente esquecido.

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