Jorge Adelar Finatto
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photo: j.finatto |
O amor - ou esse sentimento que aproxima pessoas solitárias e desamparadas como ele - inaugurou datas no calendário, pintou de lilás, azul e rosa o coração, tocou doces músicas no som do carro e do apartamento. Tornou-o uma pessoa melhor para si e para os outros.
Um dia, talvez, ela, que gostava tanto de gatos, regressará da nuvem onde foi habitar. Virá buscá-lo, como sempre fazia, para irem ao cinema, ao café, à livraria, ao Parque Harmonia ver o pôr-do-sol na beira do Guaíba.
Ela foi o único ser humano que conseguiu resgatá-lo da ilha. Morreu há três anos de uma doença que não vale a pena lembrar, foi embora depois de sorrir e dizer a ele que não devia se preocupar, tudo ia dar certo. Perdeu-a pouco antes de irem viver juntos.
Teve relacionamentos, depois, que não duraram.
Sente-se um morto-vivo sem a mulher que o acolheu na solidão de náufrago. Não consegue fazer o tipo leve, desses à vontade no mundo. Gosta de pensar as coisas, procurar sentidos. Uma amiga disse-lhe que ele era muito certinho. A vida não era.
Um dia ele sonhou ser feliz para sempre. Mas a realidade disse que para sempre é tempo demais.
A família dele, no passado, foi unida, mas agora vive dividida, os irmãos quase não convivem. A mãe, que em vida teceu com dedos de cristal os frágeis laços do afeto familiar, partiu antes do tempo. Ninguém a substituiu na difícil arte de evitar e, sobretudo, colar cacos. Os laços se partiram.
Ele voltou a viver na ilha depois da morte da companheira. Tornou-se um estrangeiro em sua própria cidade. Os amigos transformaram-se em meros conhecidos, foram se casando, criando filhos, separando, mudando de bairro, de cidade, de país. O seu mundo reduziu-se ao apartamento do bairro Bela Vista, ao trabalho, às idas ao mercado, às leituras, a uma eventual saída aos sábados.
O lugar onde vive - a remota ilha - só não é uma tapera porque a velha empregada da família aparece duas vezes por semana, dá um ar de casa àquele deserto. Os únicos seres vivos ali, além dele, são as hortênsias que cultiva na sala, em dois vasos, um em cada lado da janela.
As hortênsias acendem as manhãs, iluminam a casa na escuridão.
A janela é seu ponto de referência no planeta.
Dali pode ver a praça e as pessoas, as árvores e a rua, o céu, os outros edifícios.
De qualquer parte do universo um observador atento pode tê-lo como objeto de estudos. Todos os dias, no fim da tarde, está ele na janela.
No fundo, nunca a perdoou por tê-lo abandonado na vida.
O medo de amar afeiçoou-se a ele como as heras num túmulo de cemitério do interior.
A solidão o faz acariciar um felino invisível, na frente da televisão, até adormecer.
Se fez tratamento sobre esse viver tão desolado? Sim. Mas continua o mesmo homem enclausurado, estranho no mundo, sem saber o que fazer com as mãos na presença dos outros.
O sexo de ocasião nunca foi pra ele. Tem receio das pequenas memórias, quando a dona delas vai embora. O que para muitos é diversão e esquecimento, pra ele pode ser vertigem.
A primavera chegou com um cesto florido de lembranças.
As inconstâncias do clima, dias chuvosos, frios, deixam as pessoas entocadas em casa.
A praça passa vazia. A vida vista da janela perde o colorido.
Se ao menos ele tivesse um gato de verdade. Mas não sabe o que faria diante do olhar do bicho ao ver o dono tão desamparado pela casa e pela vida.
Os gatos percebem essas coisas, ela disse.
- Um dia desses vou sair lá fora, sentir o sol no corpo, ver as pessoas de perto. Ainda saio da janela-, ele pensa.
Com o gato no colo, ele adormece no sofá e, às vezes, até sonha.
Uma outra mulher. Nem precisava ser o grande amor. Um terno sentimento, um querer bem. Uma pessoa pra dividir a conversa, a palavra, dormir abraçado, ver um filme, ler um livro em silêncio, lavar a louça, caminhar na praça.
Uma mulher que queira ficar a seu lado, no fim da tarde, tomando chimarrão.
As intermitências da primavera fazem o coração girar louco na ventania.
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Foto: Jorge Finatto
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