segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Henrique do Valle

Jorge Adelar Finatto




A última vez que o vi foi na Praça Dom Feliciano.

Era uma dessas manhãs mágicas de Porto Alegre. Céu azul claro, vento leve, a luz âmbar escorrendo entre as árvores. Devia ser maio.

Aquele lugar, no início do século XX, tinha o nome de Praça da Misericórdia. Estava na frente, do outro lado da rua, do grande edifício da Santa Casa, como ainda hoje. Dali se podia avistar o Guaíba e os barcos passando ao fundo. Era o local de encontro do Grupo dos Sete, formado por jovens poetas simbolistas, entre os quais figuravam Alvaro Moreyra e Felipe D´Oliveira.

Naquele dia, meu amigo poeta estava acompanhado de uma linda mulher. Parecia feliz, em paz com a vida. Saí do encontro contente ao perceber nele uma celebração nova diante da existência, uma maior paciência em relação à difícil realidade cultural, humana e política daquele final dos anos setenta.

Pouco antes de morrer, em 1981, aos 22 anos de idade*, Henrique do Valle me confiou alguns poemas. “Espero que aproveites estes textos”, escreveu no envelope. Eu não estava em casa. Lembro que chovia muito naquela tarde. Na época, eu organizava uma revista literária com poetas de vários cantos do Brasil. Quando encontrei o recado, lamentei o desencontro. Queria muito conversar com ele.

Eis um dos poemas daquele envelope encantado:


Te chamei porque queria que guardasses
meus peixes e flores
agora que vou viajar.

Conhecerei novas terras, outras pessoas
e isso me enche de tanta alegria
que nem sei como expressar.

Prometo que te trarei presentes
e que te contarei tim tim por tim tim
tudo que passei.

Mas até eu voltar, dá uma força,
cuida bem dos meus peixes e flores.

Desde que o vi pela primeira vez, no inverno de 1978, tive poucos encontros com Henrique do Valle, que era sobrinho do ex-Presidente da República João Goulart. Nos cruzamos em cerca de seis ocasiões, na casa de amigos comuns, em algum bar da cidade ou mesmo na rua. Foram contatos iluminados.

Nos sentíamos à vontade um com o outro, como amigos de infância. Uma afinidade espiritual nos irmanava.

Trocamos poemas, impressões literárias, falamos do bem e do mal que sentíamos a nossa volta.

Resgatamos aqui e ali um sonho sobrevivente entre os escombros.

Os sonhos dificilmente podem ser ressuscitados individualmente, quando o que está em questão é a  falta de liberdade de expressão e a busca de identidade de indivíduos cercados pela opressão.

Por muito tempo deixei aqueles poemas guardados no envelope. Não estavam sós. A seu lado, na estante, habitavam outros poetas. Todos amigos espirituais do Henrique, irmãos em diferentes épocas e lugares, unidos pelo mesmo sentimento de estranhamento diante da existência. Poetas que, como ele, resistiram ante uma realidade violenta e repleta de existências vazias.

Alguns o tocavam de modo especial: Baudelaire, Shakespeare, Fernando Pessoa, Drummond, Mario Quintana, Artaud, Rilke, Rimbaud.

Henrique era natural do Rio de Janeiro, esteve em diversos países, e morou um tempo em Porto Alegre.

Passou pelo mundo atormentado como um anjo caído do céu.


Celeste tinha mãos ásperas
Carolina mãos medrosas
Luciana mãos esguias e finas.

Celeste, Carolina e Luciana
costumavam passar a noite na praça
tomando Pervitin.

Soube-se um dia
que Celeste, Carolina e Luciana
não iriam à praça nunca mais.

Montadas num carro de fogo
elas foram para uma praia deserta
e ficaram por lá, pescando mariscos.


É possível que ele tenha deixado cópias dos textos com outras pessoas. É provável, até porque ele nunca fez segredo de seus escritos, compartilhando-os com as pessoas mais chegadas.

Poetas como Henrique do Valle sobrevivem através de sua arte. Permanecem naquilo que para eles foi essencial : recolher em palavras a vida e a poesia de todos os dias.

Caçador de tesouros perdidos, o poeta não se intimida com os fracassos da procura, muito menos com o silêncio e a falta de saídas que o cotidiano e o meio impõem. Ingenuidade pensar que a luta do escritor se restringe ao âmbito da sintaxe. Os que a vivenciam na carne sabem que vai muito além. Henrique sabia disso e experimentou o desafio em todos os campos.

Muitas lições ele aprendeu. Outras trazia dentro de si, no sentimento e na intuição de poeta.


Uma flor num buraco da calçada
 

quando soltaram os cachorros loucos
eu estava fazendo chá
de ervas do campo

e de repente o espanto
tremendo a chaleira
e bombeando medo

larguei as ervas e danado
precipitei-me à janela

de onde vi
enormes matilhas
com olhos cheios de negra espuma

a espuma invadia a rua
e abraçava os postes, que caíam
cheios de óleo e náusea

engolia as pessoas
que alucinadas
enchiam o ar de berros

depois os cachorros foram embora
eu voltei ao meu chá

e lá fora a solidão
e uma flor quase despercebida ¹


Contou-me, certa vez, que durante uma temporada que passou em Buenos Aires teve oportunidade de conviver, na redação, com pessoas que trabalhavam na extinta revista Crisis. Ali pôde trocar informações e experiências com escritores reconhecidos e profundamente ligados à realidade latino-americana, entre os quais o uruguaio Eduardo Galeano.

A semente da poesia de Henrique do Valle, envolta em silêncio, prossegue rasgando as entranhas do medo.

O poeta denuncia a estupidez do autoritarismo e a arrogância dos que se arvoram em donos do mundo e da verdade.

Henrique é um caso raríssimo de poeta que, tendo vivido somente até os 22 anos*, foi capaz de escrever uma obra dotada de notável talento, lucidez e beleza.


Van Gogh


Não temas:
as estrelas e os pássaros
sorriem para ti

teu canto nunca morrerá
ele aponta nosso medo
a nossa falsa normalidade

mágico  das  tintas
ainda  hoje as  fadas
choram  nossa  estupidez ²


O poema, os fascistas e os parvos que o digam, não incomoda apenas as almas toscas. Também a prepotência dissimulada em indiferença. A falsa paz, inquilina da escravidão, que quer calar, mas não consegue, a voz dos que, como Henrique do Valle, não aceitam viver neste mar de violência e de esquecimento da dignidade humana.

Desnecessário dizer a importância que estes poemas têm para mim e para todos os que amam a poesia.

Sobretudo no que possuem de revelador da alma do poeta, do nosso tempo e de todos nós.

A poesia de Henrique do Valle só traz claridade. Sempre luz. O resto é interrogação, mistério e dor. Mas isso já não conta.

Dentro do tempo que lhe foi dado viver, disse o que tinha a dizer.

Só não ouviu quem não quis.

Os peixes e as flores de Henrique do Valle continuam vivos e bem guardados em muitos corações.

________________

* Li, recentemente, que Henrique nasceu em 1958, com o que teria 22 anos quando da morte, não teria completado 23 (esta nota foi escrita em 20 de setembro, 2012).
 
Este artigo foi publicado, pela primeira vez, no suplemento Letras e Livros, do jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, em 28 de maio de 1983.
 
1. Do lado de fora. Henrique do Valle. Editora Movimento. Porto Alegre, 1981, p. 134.

2. Idem, p. 92.

Imagem: fotografia do poeta Henrique do Valle publicada na contracapa do livro Do lado de fora.

Cresce interesse pela poesia de Henrique do Valle:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/07/cresce-interesse-pela-poesia-de.html



9 comentários:

  1. Tenho um livro fininho do Henrique, editado pela Movimento.
    Lá pelos 17 anos ele já escrevia surrealisticamente.
    Pena ter se ido tão cedo para Passárgada...
    Parabenizo tua lembrança, em forma de cronipoesia.

    Abraço.

    Ricardo Mainieri, ainda de férias...

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  2. O Henrique era uma pessoa muito especial. Ou seria um anjo-poeta em forma de gente? Tenho saudade dele.
    Abraço, Ricardo.
    JAF

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  3. Impressionante a qualidade da poesia do Henrique. Só me chamou a atenção que os poemas não têm títulos, seria um estilo ou no livro, que não tive acesso, constam títulos? Angelo Poletto, Florianópolis

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  4. Em tempo: retificando, os dois primeiros poemas não contêm título; os outros dois, estão devidamente titulados.

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  5. A qualidade dos poemas do Henrique, assim como a atualidade, é incrível, para alguém que só viveu 21 anos.
    Sim, alguns poemas têm título, outros, não.

    Obrigado pela visita.

    JF

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  6. Qual foi a causa da morte desse grande poeta?

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  7. Eu lembro quando esses poemas foram publicados no Correio do Povo, com a confirmação de que eram inéditos.

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    1. Caro Emílio.

      Lá se vão 32 anos que publiquei aquele artigo no velho, bom e muito saudoso Correio do Povo. O IEL lançou no ano passado um belo livro com a obra completa do Henrique.
      Um grande abraço.

      Jorge

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