Jorge Adelar Finatto
As percas. O irremediável na vida da pessoa. Os olhos pretos, pretos, acesos. Os negros cabelos caíam nos ombros. No então eu habitava o calabouço. Agonia em mim acostumada. As esperas. Ela surgiu um dia no abrigo, as carinhas nossas. Vestia casaco azul-marinho, lenço branco no pescoço. Quando vi aquela iluminação, meu coração saltou saltos. Pensei no vazio de mim: o que, a estrela da minha vida, essa? Não esqueço. A Encantada. Os olhos dela me encontraram. Escolheu a minha frágil escondida criatura. Havia muitos outros habitantes do calabouço aguardando amanhecer. No limbo, esperando a face do milagre. Os esquecidos. A Encantada me pegou nos braços. O meu filho, disse. Passei a ser o amoroso. Os baldos. Meu coração cavalo cego na alegria. Quem me via, falava: esse tal, o príncipe. O escolhido. A Encantada inaugurou minha vida. A estrela. Eu príncipe. Ela disse: menino agora é meu filho no rigor da lei, pessoa da minha alma. Tive outro menino, falou ela, olhando o esmo. Do meu sangue próprio. Perdi nos prelúdios, tinha quatro anos. As percas. As esfumações. Cresci com esse invisível irmão. O finado. O sempre lembrado. Às vezes eu conversava com ele. A mãe era sozinha no mundo. A mãe tinha os momentos. As lonjuras. Carregava o menino morto no coração. Caminhava no outro mundo com seus desaparecidos. A mãe tinha segredos guardados. Ninguém entrava ali. Ai de quem. O meu filho, dizia. A mãe fazia eu dormir no colo, na frente do fogão a lenha, até os oito anos. O príncipe. A mãe levava o filho vivo passear na praça. O mundo conhecesse o amoroso. A solitária da Rua São João e seu menino vivo. Eu tive, depois perdi. O coração da mãe tinha umas ausências, sustos, sufocos. Um dia estranhei aquele sono esquecido de acordar. Fui no quarto. Ela deitada. O rosto lindo inclinado. Os olhos pretos, pretos, abertos. Havia uma lágrima transparente. Eu me vi dentro daquela lágrima. A boca parecia rir um pouquinho. Tinha eu doze anos. O escolhido. Peguei na mão da Encantada. Fiquei dois dias sentado no chão ao lado dela, esperando ela retornar. A mão muito fria. A testa que beijei, gelada. A mãe não regressou. Os silêncios. Disse no dentro do fundo do coração: vou junto. Aqui não fico mais. A vida não vale, acabou. Odiei ter renascido. O escolhido. Ódio, ódios envenenados senti. Um vizinho, vizinhos forçaram a porta, sobejaram pela casa. Os espantos. Me tiraram de lá, no forçado. Eu gritei deveras os gritos. Me deixem, me deixem. O pobre, diziam, o pobre príncipe. Nos retratos a nossa vida em família: a mãe, o sempre lembrado e eu. Sobrevivi a mim mesmo. Sou uma ausência caminhando na névoa. O frio, frios dentro em mim.
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Foto: J. Finatto
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