Jorge Adelar Finatto
Aqui em Passo dos Ausentes existe um homem que vive na rua, perdeu a memória, não sabe quem é. Atende por Antônio. Desconhece o lugar onde nasceu, quem eram seus pais, ignora se tem parentes ou amigos. Ele faz esculturas de madeira. As mãos são trêmulas. As roupas, muito velhas, mas vê-se que é caprichoso.
A madeira ele procura em restos de construções, praças e terrenos baldios. Nesse fim de semana de Dia dos Namorados, ele fez algumas imagens de Santo Antônio. O que mais admira no santo? A humildade. O escultor considera essa qualidade a mais importante.
Observando suas obras expostas na calçada, percebe-se que tem inventividade e talento. Seus dedos tecem delicadas formas sobre o pobre material. Eis que, no ar, vão aparecendo os contornos, os volumes, as cavidades. O que antes era lixo agora ganha expressão, sentido, beleza.
O escultor sem nome e sem memória é, em si, um mistério. Um olhar que se abre para uma janela solta no espaço. Ele não tem plano de saúde, casa, salário, família. Seus amigos mais próximos são os pardais nas árvores.
Esse artista não deixa de ser alguém que, apesar de tudo, carrega uma espécie de felicidade. Penso nos fantasmas que, muitas vezes, entram pela nossa casa e tomam assento na nossa vida. Penso no quanto a lucidez pode ser dura e triste. Penso nas vezes em que queremos apenas esquecer. Porque há um peso insuportável nisso tudo, principalmente quando lembramos que somos só um sopro, um descuido, um até breve. Um fragmento na memória desmemoriada do tempo.
Por um momento tive inveja do escultor sem memória e sem nome.
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Foto: J. Finatto.
Da série: visite Passo dos Ausentes antes que acabe.
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