Era uma dessas tardes que antecedem o outono em Passo dos Ausentes. O ar outonal nos deixa mais sensíveis diante das primeiras quedas de folhas e mudanças de cores e seivas na natureza. Em dias assim, estar vivo é uma sorte.
Encontrei uma boneca de trapo caída no chão da Praça da Ausência. Era feita de velhos panos coloridos. Os olhos eram dois botões verdes. Os cabelos, fios de lã repartidos em duas tranças. A boca era um pequeno risco vermelho e sorria.
Apesar de perdida, a boneca não parecia muito triste. Talvez um leve toque de melancolia no semblante. Afinal, alguém a deixara para trás. Levantei-a do chão e acomodei-a no banco da praça, embaixo de um salgueiro.
Fui embora, não sem um pouco de dor. No início quis levá-la comigo, dar-lhe um novo lar. Mas desisti ao pensar que quem a perdeu pudesse vir buscá-la e seria de cortar o coração não encontrar a sua boneca de trapo.
Viver tem dessas coisas. Nem sempre podemos ter o que nos encanta. Num dia, o céu azul, nuvens cor-de-rosa, o coração batendo harmonioso. Noutro, nuvens escuras e pesadas se espalham e a gente só pensa besteira.
A boneca de trapo me lembrou coisas que perdi na vida. Perdi e me conformei. Porque nada, absolutamente nada, nos pertence de verdade nesse mundo. Tudo que temos é emprestado. Um dia teremos de devolver. Nada nos pertence. Salvo, talvez, o meigo sorriso de uma boneca de pano.
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Foto: J. Finatto. Boneca artesanal da região serrana do Rio Grande do Sul.
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