segunda-feira, 28 de março de 2011

Os últimos acendedores de lampiões

Jorge Adelar Finatto



No entardecer, quando o sol morre atrás do Contraforte dos Capuchinhos, os dois acendedores de lampiões saem às ruas para dissipar a escuridão. Érico tem 78 anos e Dyonelio, 83. São os últimos remanescentes da Companhia de Iluminação de Passo dos Ausentes. Inauguram a luz com seu gesto, esconjuram o breu.

A nostálgica claridade noturna de nossas 20 ruas é invenção de 80 lampiões nelas espalhados. É assim desde 1925. A cidade parou no tempo desde então.

Érico e Dyonelio exercem o ofício desde a adolescência, quando ingressaram na companhia como aprendizes. Com a aposentadoria dos acendedores mais velhos, e diante do brutal esvaziamento da cidade (os jovens muito cedo vão-se embora à procura de estudo, trabalho e aventura; os velhos acabam morrendo e mudam-se em definitivo para os campos da ausência), não houve renovação dos iluminadores.

Somos poucos.

Os últimos acendedores de lampiões fizeram um pacto. Trabalharão até o dia da morte para não deixar a cidade entregue às trevas. Eles acreditam que quando não mais estiverem nas ruas para acender os lampiões forças malignas tirarão proveito da escuridão e expulsarão nossa cidade do sistema solar. Precisamos evitar a todo custo que se cumpra o presságio do padre Eleutério Ombra, enunciado em 1755, de que uma nova São Miguel das Missões se ergueria perto das nuvens, sobre altas montanhas, com graça e fulgor. Advertiu, todavia, que uma grossa sombra rondaria sempre esse lugar e poderia engoli-lo.


Depois que exércitos espanhóis e portugueses destruíram São Miguel, em 1756, alguns padres jesuítas e índios guaranis, sobreviventes do massacre, fugiram e fundaram Passo dos Ausentes.

Uma grande angústia toma conta das pessoas por aqui. Vivemos nesta cidade condenada ao desaparecimento. Cada um é insubstituível. Nem ao menos figuramos no mapa do Rio Grande do Sul.

Somos poucos. Somos invisíveis. Somos habitantes dos Campos de Cima do Esquecimento.

O tempo, em Passo dos Ausentes, é uma ferida que não para de sangrar.

_______________

Do livro A cidade perdida: as origens. Editora Vésper, Passo dos Ausentes, 2003.
Texto publicado no blog em 22 de janeiro, 2011.
Fotos: J. Finatto

2 comentários:

  1. Érico e Dyonelio, que achado, Adelar.
    Aqueles clássicos gaúchos que, ainda, nos traziam luzes com sua palavra escrita.
    Depois que foram para os campos do céu, o que de novo, e bom, surgiu?

    Abraço.

    Ricardo Mainieri

    ResponderExcluir
  2. De fato, Dyonelio e Erico são escritores gaúchos e universais. A madeira de cerne com que construíram suas obras não se encontra mais por aí. Provavelmente existe, mas tá difícil encontrar. Tem muita gente preocupada com a academia de belas-letras. Que tempos!

    Abraço, caro Ricardo.

    JF

    ResponderExcluir