quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Viagem aos moinhos de vento

Palomar Boavista

Moinhos de vento em Campo de Criptana. Foto de Lourdes Cardenal, 2004. Fonte: Wikipédia.


Não há nenhuma alma nas ruas desertas e nevoentas de Passo dos Ausentes a essa hora tardia. Inútil, com a bruma desfiando suas brancas sedas por aí, querer perscrutar o firmamento atrás de corpos celestes. Nenhuma galáxia, nenhuma estrela, nenhum cometa, nenhum farelo de luz. O frio congela os ossos e os astros.

Sentando no observatório, na cadeira de balanço, me enrolo no velho pala de lã crua. Deixei acesa a luminária de fraca claridade, no canto da sala, ao lado do telescópio. Estou meio dormindo, meio em vigília.

Sonhei que o avô me esperava lá fora, na rua, sob o poste de luz amarela. Me acenou embaixo do guarda-chuva e do boné, fazendo sinal para ir ao seu encontro. Fui. 

Cego, o avô se apoiou no meu ombro, como sempre fazia, e saímos a caminhar na escuridão. Falou das coisas da vida e da saudade que sentia do mundo.

- Trouxe os óculos? - perguntou. Nunca esqueça dos óculos.

O avô ama os livros que leu no tempo em que ainda havia luz nos seus olhos. Alguns trechos guardou na memória. No sonho, ele me pediu para acompanhá-lo numa visita a Campo de Criptana, pequena povoação na região de La Mancha, na Espanha.

- Foi ali que Dom Quixote travou a famosa batalha contra os gigantes, que, na verdade, eram apenas moinhos de vento. Vamos lá conhecer a maravilha de perto. Criptana é a cidadezinha mais bonita da Mancha, com suas casas brancas contra o céu azul. Leia pra mim, Palomar, em voz alta, o capítulo VIII, primeira parte, do Dom Quixote, antes de entrarmos no pueblo.

Acordei com o som da chuva batendo no telhado. Tirei os óculos, me enrodilhei no pala feito gato e cerrei os olhos outra vez. Voltei a caminhar com o avô, ouvi suas histórias e visitamos juntos a terra dos moinhos de vento, nessa noite fria de névoa e ausência.

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Palomar Boavista é astrônomo-mor em Passo dos Ausentes.


4 comentários:

  1. Conheço o professor Palomar de longa data. Quando Hubble veio ao Brasil na década de 20, os dois fizeram uma viagem ao Chile para inaugurarem um novo telescópio no Deserto do Atacama. E a amizade estreitou-se nos vários copos de vinho chileno desgustados nas madrugadas frias. Hubble antes de ir embora para suas plagas, descobriu uma coisa em comum: ambos eram bacharéis em direito mas somente o Professor Palomar se estabeleceu como advogado: Hubble nunca passou no exame de ordem dos Estados Unidos mas a humanidade ganhou um excelente astrônomo.

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  2. Meu caro.

    Este mundo é mesmo pequeno.
    O professor Palomar passa a maior parte do seu tempo no observatório, vive com a cabeça nos astros.No meio da tarde e no meio da manhã, Alice, com quem vive desde a criação do universo, leva-lhe uma fatia de queijo com goiabada. Perguntei-lhe certa vez quem era na foto em que aparece ao lado de um cidadão engravatado. Respondeu Palomar: Ah, é o Ed. Percebo agora que se referia ao nobre colega, dele, Edwin Powell Hubble.
    Mundo pequeno esse. Além de tudo, gira!

    Um abraço.

    Jorge Finatto

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  3. Eis a maior prova da existência de Passo dos Ausentes.
    No entanto, caro Adelar, acanhado eu confesso que no começo tinha minhas dúvidas.
    Hoje sei das pessoas notáveis que lá residem e, por óbvio, alguém reconheceria ao menos uma entre tantas.

    Tenho que te contar, também, o fato de eu ficar bispando as motos no trânsito, na esperança de avistar o Cavaleiro, ainda que de relance.

    Um abraço ausente e até logo!

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  4. Caro amigo.

    Esta é a terra da vera ausência. Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento. Sabemos que somos seres em viagem, nada permanece, estamos em permanente trânsito. Alguns nos tomam por gente de tinta e papel. Capaz! Viver na bruma é nosso doloroso ofício.

    Um abraço.

    Jorge Finatto

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