O Cavaleiro da Bandana Escarlate
Jorge Mautner e o diretor Heitor D'Alincourt no tapete vermelho (Foto: Cleiton Thiele/Pressphoto |
Na sexta-feira, 17, ainda com olheiras e calafrios da gripe (que me derrubou por cinco dias no quarto de hotel), compareci ao cinema para o último dia do Festival de Gramado (único a que pude assistir).
Não comuniquei antes ao autor do blog o meu estado, achando que me recuperaria a tempo. Nada disso. Henriette, a gentil francesa que está em minha casa (de visita) há 25 anos (ela afirma que ainda não decidiu se ficará comigo ou se retornará a sua iluminada Paris), estranhou a ausência dos textos sobre o festival (conforme me havia comprometido no post do dia 10), subiu a serra para ver o que estava acontecendo. Me salvou.
A doce demoiselle jogou-me no banco traseiro do meu antigo Citroen (preto, com aqueles paralamas ondulados que até parecem pista de tobogã), trouxe-me de volta para o solar aqui na Praça Maurício Cardoso, onde convalesço. Coloquei as chinelas e o roupão de Marcel Proust, e entrei no espírito.
Contou-me ela (acho que gosto dessa garota mais do que pensava) que durante a penosa viagem de Gramado a Porto Alegre (o fordeco não passa dos 50 km/h) eu delirei. Era a febris maledicta falando em mim.
Segundo Henriette, conversei com seres invisíveis, entre eles Glauber Rocha. No meu delírio, o glorioso cineasta baiano assegurou que estava voltando a fazer filmes. O projeto imediato era filmar A terceira margem do rio, conto de J.G. Rosa (inventor da obra-prima universal Grande sertão: veredas).
Não comuniquei antes ao autor do blog o meu estado, achando que me recuperaria a tempo. Nada disso. Henriette, a gentil francesa que está em minha casa (de visita) há 25 anos (ela afirma que ainda não decidiu se ficará comigo ou se retornará a sua iluminada Paris), estranhou a ausência dos textos sobre o festival (conforme me havia comprometido no post do dia 10), subiu a serra para ver o que estava acontecendo. Me salvou.
A doce demoiselle jogou-me no banco traseiro do meu antigo Citroen (preto, com aqueles paralamas ondulados que até parecem pista de tobogã), trouxe-me de volta para o solar aqui na Praça Maurício Cardoso, onde convalesço. Coloquei as chinelas e o roupão de Marcel Proust, e entrei no espírito.
Contou-me ela (acho que gosto dessa garota mais do que pensava) que durante a penosa viagem de Gramado a Porto Alegre (o fordeco não passa dos 50 km/h) eu delirei. Era a febris maledicta falando em mim.
Segundo Henriette, conversei com seres invisíveis, entre eles Glauber Rocha. No meu delírio, o glorioso cineasta baiano assegurou que estava voltando a fazer filmes. O projeto imediato era filmar A terceira margem do rio, conto de J.G. Rosa (inventor da obra-prima universal Grande sertão: veredas).
Mas tudo não passou de um desejo inconsciente, aflorado quase in extremis.
* * *
O que mais gostei, nesse derradeiro dia da mostra competitiva, foi Jorge Mautner, o filho do holocausto, direção de Pedro Bial e Heitor D'Alincourt. Sempre me interessou a visão irreverente, criativa e reveladora que Mautner tem do nosso país e do nosso mundo.
De origem judaica, seus pais emigraram para o Brasil, fugindo do holocausto. Ele nasceu a 17 de janeiro de 1941 no Rio de Janeiro. Uma parte de sua família foi morta nos campos de concentração nazistas.
Jorge Mautner é filho dessa história e daquela outra, muito mais rica e luminosa, que começa com seu nascimento no Brasil, passa pela formação em cultura tão diversa como a brasileira e continua no escritor, filósofo, músico, compositor e artista que ele se tornou.
Sua construção humana está toda marcada pela experiência existencial no cadinho chamado Brasil, onde tudo que no mundo se divide aqui se encontra, gerando uma outra coisa.
A terna babá com quem Jorge conviveu até os sete anos era ialorixá e o levava ao terreiro de candomblé, no qual o menino ouvia os batuques, via as cores, movimentos. Nunca mais esqueceu.
Mautner vê o mundo a partir do Brasil, com sua miscigenação, suas mesclas culturais, seus modos de ser e fazer, seu rico acervo de influências em todos os campos, tudo isso e mais a prática da tolerância pela necessidade de convivência com o diferente.
Jorge, presente no Palácio dos Festivais em Gramado, disse antes da projeção do filme:
Ou o mundo se brasilifica ou virará nazista.
E afirmou, também: Esse filme representa a amálgama do Brasil universal. (...) Árabes e judeus aqui são sócios.
Isto e muito mais temos a admirar neste belo documentário-documento: a revelação do que somos e do que podemos vir a ser. O filme ganhou três prêmios (Kikitos): melhos fotografia, melhor roteiro e melhor montagem, na categoria dos longas-metragens nacionais.
Estará, digo eu, no convívio de opostos e de diferentes, nessa aceitação da alteridade, na transposição para um outro estágio civilizatório a possível contribuição brasileira para um novo mundo, muito mais fraterno e humano.
Gostei do filme por tratar dessas questões de forma aberta, com esperança, sem endurecer interpretações, pelo contrário, abrindo possibilidades para o futuro que aqui já começou, mestiço e plural, em direção ao homem e mulher solidários, nesse novo tempo no qual ansiamos viver.
Agora desligo a máquina pois Henriette me busca para sorver o caldo verde (enclave lusitano em nosso viver), sob a pérgula, no jardim. Olho para nós assim e penso que somos dois adoráveis velhinhos (espero que essa garota não volte para a França tão cedo).
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