Jorge Adelar Finatto
bandoneón. fonte: Wikipédia |
No fundo da cegueira pode haver muita luz. Foi o que pensei enquanto ouvia Juan Niebla tocar Adiós, Nonino, de Piazzolla, no seu velho bandoneón argentino. Perguntei-lhe de onde vinha a afinidade com o instrumento.
Isso foi ontem, quarta-feira, primeiro dia do outono, chuvoso e gelado outono. Ficamos na mesa com vista para o Vale do Olhar, no Café da Ausência, que fica na estação de trem. Conversamos até o entardecer. Conversa regada a bule de café preto com pão torrado passado em geléias de laranja, framboesa, figo e uva.
Disse ele que três anos depois de tornar-se músico da cidade, por concurso público, e assumir o posto na estação de trem, recebeu um convite. A jovem e bela viúva Alberta de Montecalvino pediu que fosse com ela a Buenos Aires.
A Dama da Biblioteca queria companhia para visitar a capital portenha, onde tinha um encontro marcado com um certo senhor Jorge De La Brume, com quem se correspondia há alguns anos.
A Dama da Biblioteca queria companhia para visitar a capital portenha, onde tinha um encontro marcado com um certo senhor Jorge De La Brume, com quem se correspondia há alguns anos.
- Acontece - afirmou Niebla, acomodado dentro do grosso capote azul-marinho - acontece que a intimidade dos missivistas transbordou das cartas para a vida. Alberta e este senhor descobriram que havia entre eles um mundo de coisas em comum, que não se resumia ao interesse pelos livros.
- O senhor De La Brume, que era escritor, teve a iniciativa do encontro. Mas havia um entrementes. Ele era cego, não podia viajar sozinho até Passo dos Ausentes para conhecê-la.
- O senhor De La Brume, que era escritor, teve a iniciativa do encontro. Mas havia um entrementes. Ele era cego, não podia viajar sozinho até Passo dos Ausentes para conhecê-la.
Continuou Niebla:
- Ele tinha muita vontade de conhecer Passo dos Ausentes, a cidade do fim do mundo, de que já ouvira falar. Ficou interessadíssimo nas histórias que Alberta contava nas cartas. Chamou-lhe especialmente a atenção o caso dos espelhos espirituais. (Nossos espelhos não refletem a imagem da pessoa, mas sim seus sentimentos.)
- O ano era 1956. Tirei férias, pegamos o trem e iniciamos a longa viagem ferroviária que durou oito dias até Buenos Aires, com várias baldeações pelo caminho.
- Numa terça-feira, Alberta e eu fomos, enfim, ao apartamento onde o escritor residia na companhia da mãe, uma senhora mui gentil. Então conversamos muito, De La Brume e eu, conversa de cegos.
- Alberta ficou numa outra sala com a mãe dele. Ele era um homem afável, recitou alguns textos que tinha na memória. Coisas dele e de outros. Disse que lia e escrevia com os olhos da mãe e de amigos. Ouvia a leitura de livros e ditava seus textos.
- Aquela foi uma tarde inesquecível. Ele estava absolutamente fascinado com a história dos espelhos. Expliquei que era verdade, eu muitas vezes ficara diante do espelho olhando as imagens dos meus sentimentos, antes de perder a visão. Eram pinturas iridescentes. Um bosque, um córrego esperto entre árvores, pássaros, vultos esgueirando-se em corredores escuros, pessoas solitárias sentadas na praça, um banco vazio, um homem partindo, uma mulher chorando, uma boneca queimada. E muitas outras imagens indecifráveis.
- Jorge de La Brume ficou enlouquecido com aquilo.
- Antes de nos despedirmos naquele dia, La Brume presenteou-me com este bandoneón, dizendo que seria meu companheiro. "Este bandoneón é irmãos dos livros da minha biblioteca, mora lá com eles. Agora ele será teu irmão", falou.
- Pediu-me que tocasse alguma coisa. Foi o que fiz, improvisando Les chemins de l'amour, de Francis Poulenc, num arranjo inspirado por aquele encontro mágico. Acho que nunca toquei tão bem uma peça de Poulenc. Contou-me Alberta, depois, que, enquanto eu tocava, uma lágrima escorreu na face do escritor (apoiava as mãos sobre a bengala, sentado na poltrona bege de couro).
- Nos três dias seguintes, ele e Alberta saíram a caminhar pelas ruas da cidade, foram a cafés, bibliotecas, livrarias, bosques. Fizeram muitas coisas juntos naqueles poucos dias. Alberta era elegante, culta e discreta (como é até hoje). Eu passei as tardes com a mãe do escritor, ouvindo casos, histórias, e provando o delicioso chá que ela servia. Toquei algumas músicas também.
- Jorge de La Brume e sua mãe fizeram questão de despedir-se de nós na estação de Buenos Aires. Lembro do cálido abraço que ele me deu. Uma tarde de outono muito fria como essa. Eu era jovem. Um cego emocionado com seu novo amigo e com o bandoneón.
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Juan Niebla, 88 anos, é músico da estação de trem de Passo dos Ausentes desde 1940, ano em que ficou cego aos 15 anos. Vice-presidente da Sociedade Histórica, Geográfica, Antropológica, Astronômica, Geológica, Artística e Antropofágica.
Alberta de Montecalvino:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/alberta-de-montecalvino.html
A estação de Passo dos Ausentes:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/12/a-estacao-de-passo-dos-ausentes.html
Música na estação de trem:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/05/musica-na-estacao-de-trem.html
A claridade do coração:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/04/claridade-do-coracao.html
Les chemins de L'amour, na voz de Véronique Gens:
http://www.youtube.com/watch?v=ex-IxBQndqM
Olá amigo, esta história é verdadeira? por favor me mande um email gaucho83@gmail.com
ResponderExcluirAbraço,
Jean-Pierre
Caro Jean-Pierre.
ExcluirA realidade é, por vezes, o mais inverossímil dos lugares, não é mesmo?
Obrigado pela visita.
Um abraço.
Jorge Finatto