sábado, 22 de junho de 2013

O calepino de Dante

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto. Venezia


O VENTO geme como um bicho malferido nas esquinas, sacode as placas na rua, portas, janelas, enlouquece os ponteiros do relógio da estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes.

Um lamento emana do interior do sino da igreja da praça.

Um cenário de filme de assombração. Aqui acontecem coisas do outro mundo.
 
Os fantasmas somos nós, habitantes dessas terras frias e invisíveis situadas nos Campos de Cima do Esquecimento.

Lá fora, a chuva molha a solidão da rua. Somos peixes no aquário, nadando de um lado para outro dentro de casa, tentando enxergar, sentir alguma coisa nesse enorme vazio. Peixes à procura de qualquer coisa mais que silêncio e oblívio. Agora que o inverno chegou.
 
Vivemos nessas remotas e íngremes alturas, no sul do continente, entre inóspitas nuvens.

Este lugar é a última estação antes do fim do mundo.

photo: jfinatto. Venezia

Os poetas sabem do que eu falo, não digo coisas inaugurais (quem me dera). Digo o trivial da humana condição e não mais do que isso: quireras.

Neste território pequenino existem coisas de espantar.

Um dia, não me lembro quando, andava eu numa fondamenta (caminho que vai à beira de um canal) distante e perdida de Veneza. Caminhava do meu jeito naquela cidade, isto é, olhando as coisas de perto por causa da difícil visão (óculos fundo de garrafa).

Naquela cidade tudo é insondável, úmido labirinto, e eu, quase cego, gosto de me perder em labirintos.

As janelas das casas daquela fondamenta, onde cheguei não sei como, tinham flores e cordas com roupas estendidas secando, mas não havia ninguém morando nelas. Uma doideira. O vento percorria o canal assobiando uma canção terna e delicada, sem começo nem fim.

Descobri, então, o vetusto casarão de uma livraria abandonada. A livraria ficava mais ou menos perto da Ponte de Rialto, no Grande Canal. Entrei lá abrindo uma porta escura e muito pesada, difícil de empurrar.

Canal veneziano. photo: j.finatto

Sentei numa cadeira de couro marrom diante de uma mesa. Ao lado um pequeno vitral amarelo e azul deixava penetrar um sopro de luz solar. Estantes repletas de livros se projetavam para o interior.

Descobri sobre a mesa um calepino de capa lilás.

Abri o caderno, quase encostando os olhos nele. Na terceira página estava escrito: Dante Alighieri, 1319. Li sem fôlego as primeiras anotações do mestre florentino.

Só então percebi do que se tratava, o tesouro que tinha em mãos: eram esboços de poemas misturados a notas de diário, rascunhos de cartas e pequenos desenhos.

A música que o vento tocava lá fora, me dei conta quase sem poder acreditar, era a Valsa dos Ausentes, de Pixinguinha.

O mundo é muito pequeno, o mundo é um suspiro.

Antes de sair da estranha livraria, guardei o calepino de Dante no fundo do meu alforje. Desde aquele insólito evento nunca mais nos separamos. Nunca antes contei esta história.

(Às vezes me pergunto se isso de fato aconteceu ou terá sido um sonho, o espírito aturdido por esses ventos andarilhos de Passo dos Ausentes, nas longas e inóspitas madrugadas.)

O calepino de Dante é o consolo que trago na vida. Quando o leio, como nessa hora longínqua, sentado na cadeira de palha diante da mesa do escritório, tomando café preto com biscoitos de polvilho, esqueço tudo de ruim.

O medo de morrer não encontra asilo nessa hora quase solene.
 
Nem tudo é solitude nesses caminhos.

Passagens luminosas habitam o breu.

Tem orquídeas e magnólias povoando o jardim lá fora. Ramos novos brotam entre as folhas secas.

Um tempo de busca-vida, este.

Esta página, notícia do invisível.
 
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Texto revisto, publicado anteriormente em 10/12/12.
 

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